estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v.6 n.3 (2018), p.66 - 81
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Notas sobre hegemonia, poder
e guerra em Gilpin
Notes on Hegemony, Power and War in Gilpin
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2018v6.n3.p66
Rafael Duarte Villa
1
Debora Garcia Gaspar
2
Recebido em: 20 de fevereiro de 2018
Aprovado em: 19 de maio de 2018
R
Alguns autores como William Wohlforth sugerem que o campo de Relações
Internacionais teria ido mais longe e se desenvolvido melhor, se as teorias e o
campo epistêmico de Robert Gilpin houvessem desempenhado o papel de um
acontecimento intelectual contrafatual. Nosso argumento é que o ecletismo
tanto temático, quanto teórico de Gilpin – capaz de abraçar causalidades
materiais, ideias e instituições –, que caracteriza sua obra, aparentemente o
teria impedido de sistematizar um quadro teórico e um conjunto de conceitos,
limitando as possibilidades de chegar a ser o pensador contrafatual (ao
neorrealismo), conforme reivindicado por Wohlforth. No entanto, sua obra,
aparentemente dispersa, é composta de três grandes eixos de pensamento
– estabilidade hegemônica, suas reexões sobre o status contemporâneo do
Estado e sua teoria da mudança política, bem como seu impacto sobre a guerra
– e o que dá unidade e coesão aqueles três eixos é o conceito de hegemonia (no
sentido de poder material).
Palavras-chave: hegemonia, estabilidade, guerra, neorrealismo
A
Some writers like William Wohlforth suggest that the eld of international
relations would have gone further and better if Gilpin’s theories and epistemic
eld had played the role of a counterfactual intellectual event. Our argument is
that Gilpin’s both thematic and theoretical eclecticism – capable of embracing
material causality, ideas and institutions – that characterizes Gilpin’s work
seemingly prevented him from systematizing theoretical framework and a set of
concepts thus limiting the possibilities of becoming the counterfactual thinker
(to neorealism) claimed by Wohlforth. Nevertheless, his seemingly dispersed
work is composed of three major axes of thought – hegemonic stability, his
reections on the contemporary status of the state and his theory of political
change its impact on war – and what gives unity and cohesion to those three
axes is the concept of hegemony (in the sense of material power).
Keywords: hegemony, stability, war, neorealism
1. Possui graduação em Ciência
Política - Universidad de los Andes
(Venezuela-1988), mestrado em Ciência
Política pela Universidade de São Paulo
(1992) doutorado em Ciência Política
pela Universidade de São Paulo (1997),
livre docência pela Universidade de
São Paulo (2007) e pós-doutorado pela
Columbia University (2008). Atualmente
é professor associado da Universidade
de São Paulo - no departamento de Ci-
ência Política e no Instituto de Relacões
Internacionais (IRI-USP).
Rio de Janeiro/Brasil
ORCID: 0000-0002-8751-6020
2. Possui graduação em Relações
Internacionais pela Universidade de São
Paulo (2007) e mestrado em Economia
da Indústria e da Tecnologia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2010) e é doutora pelo Programa de
Pós-graduação em Economia Política
Internacional da UFRJ. Professora do
Departamento de História e Relações
Internacionais da UFRRJ.
Rio de Janeiro/Brasil
ORCID:0000-0003-4381-9705
Villa, Rafael Duarte; Gaspar, Debora Garcia Notas sobre hegemonia, poder e guerra em Gilpin
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Introdução
William Wohlforth sustenta que quando Robert Gilpin publicou
War and Change in World Politcs, há três décadas, o realismo estava pronto
para grandes empreendimentos, dado que a tradição realista fora reaviva-
da e modernizada – causando profundas consequências para a disciplina
de Relações Internacionais – graças à sólida resposta do neorrealismo de
Kenneth Waltz e de sua obra Theory of International Politics. Para Wohl-
forth, se o quadro esboçado por Gilpin tivesse obtido o mesmo grau de
atenção e renamento alcançado pelas teorias de Waltz, o realismo teria
muito mais relevância para explicar os dilemas dos grandes poderes, se
comparado a teoria da balança de poder. Sem questionar a imporncia
de Teoria da Política Internacional de Kenneth Waltz, Wohlforth sugere
que o campo de Relações Internacionais teria ido mais longe e se desen-
volvido melhor, se as teorias e o campo epistêmico de Gilpin houvessem
desempenhado o papel de um acontecimento intelectual contrafatual.
Porque esse contrafatual não aconteceu?
Robert Gilpin é considerado um autor clássico dentro do campo
de Relações Internacionais. Suas contribuições coadunam sua grande in-
uência teórica e ponto de partida de diversas teorias críticas, chegando
às formas como os docentes da área organizam a apresentação de auto-
res e ideias em suas aulas. Como exemplo, sua tipologia das correntes
de Economia Política Internacional (EPI) (Liberalismo, Mercantilismo,
ou nacionalismo, e Marxismo)
3
são amplamente tomadas como formato
didático de se apresentar os termos do debate para os estudantes. Junto
com Stephen Krasner, Gilpin desenvolve o que cou conhecido como a
posição neorrealista em EPI.
Gilpin é amplamente reconhecido por não respeitar as fronteiras
acadêmicas, intercambiando contribuições das mais diversas áreas das
Ciências Sociais. Isso confere às suas obras uma perspectiva bastante am-
pla, que serve de guia para uma grande variedade de alises, ainda que,
como apontam alguns críticos, não contemple estudos mais especícos
e fechados. Como coloca Danspeckgruber (2012, p. 114, tradução nossa)
“Numa época em que a academia se tornou altamente especializada, Gil-
pin é um lembrete de que os melhores estudiosos pensam amplamente
ao longo do tempo, disciplinas e espaço”
4
. Nos temas e discussões espe-
cos de EPI, por exemplo, Gilpin tem uma preocupação em trabalhar
sempre na fronteira teórica entre Relações Internacionais e Economia,
recuperando obras clássicas nas Ciências Econômicas e sempre se atuali-
zando nos debates correntes.
De outro lado, preocupações com os assuntos mais duros da polí-
tica internacional, de alta política, como sugerem os realistas, tais como
segurança e guerra, são também densamente tratados por Gilpin. Uma
das preocupações principais que permeia toda a obra do autor, mas que
é delineada de forma mais especíca em War and Change, é a questão da
mudança no poder internacional nas relações internacionais, em especial,
a ascensão e queda das grandes potências. Isso coloca Gilpin ao lado de
outros teóricos que se baseiam da ideia de ciclos (Paul Kennedy em linha
compatível, Giovanni Arrighi, na matriz neogramsciana). Inevitavelmen-
3. Gilpin usou o termo mercantilismo em
US Power and Multinational Corporation
(1975) e nacionalismo em Political Eco-
nomy of International Relations (1987)
4. “At a time when academy has beco-
me higly specialized, Gilpin is a remin-
der that the best scholars think broadly
across time, disciplines and space”
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te, o tratamento concedido ao tema colocou Gilpin na linha de frente das
discussões que marcaram os anos 1980 sobre o suposto declínio hege-
mônico dos Estados Unidos, em relação à ascensão japonesa e europeia.
Esse debate perde fôlego ao longo dos anos 1990, devido à manutenção
ou “retomada” da liderança americana, exacerbada pela queda da União
Soviética e pelo m da Guerra Fria, mas é retomado mais recentemente
nas discussões que se formam em torno da rápida ascensão econômica e
militar da China.
Nosso argumento é que o ecletismo, tanto temático quanto teóri-
co – capaz de abraçar causalidades materiais, ideias e instituições –, que
caracteriza a obra de Gilpin aparentemente o impediu de sistematizar
um quadro teórico e um conjunto de conceitos, limitando as possibilida-
des de chegar a ser o pensador contrafatual (ao neorrealismo), conforme
reivindicado por Wohlforth. No entanto, sua obra, aparentemente dis-
persa, é composta por três grandes eixos de pensamento – estabilidade
hegemônica, suas reexões sobre o status contemporâneo do Estado e
sua teoria da mudança política e seu impacto sobre a guerra – e o que
dá unidade aqueles três eixos é o conceito de hegemonia (no sentido de
poder material).
Do ponto de vista metodogico, nós revisamos uma série de obras
seminais escritas por Gilpin tais como War and Change (1981) e The Poli-
tical Economy of International Relations (1987) e destacamos alguns de seus
mais proeminentes comentadores, como Benjamin Cohen e William Woh-
lforth, procurando alinhar elementos que nos permitem mapear de manei-
ra mais precisa a tese esboçada acima. Nossa argumentação se concentrará
em três eixos do pensamento de Gilpin: teoria da estabilidade hegemônica,
sua visão estadocêntrica e suas reexões sobre guerra e balança de poder.
Este artigo está organizado em três partes. Na primeira parte,
os temas mais específicos de EPI são ressaltados, a partir da teoria da
estabilidade hegemônica (TEH), junto a comércio e finanças. Na se-
gunda, é destacada a visão estadocêntrica de Gilpin. Já na terceira par-
te, o tema central é a relação entre poder econômico e poder militar,
que é, concomitantemente, base para a tese gilpiana sobre a mudança
nas relações internacionais
Pensando a estabilidade hegemônica
Em diversas passagens de seus textos, Gilpin destaca seu apreço
pelo nível de crescimento econômico e pelo grau de cooperação inter-
nacional (entre as economias ocidentais centrais) que foi alcançado no
período entre o nal da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos
1980. Nos livros de 1975
5
e de 1987, a TEH, já delineada em obras anterio-
res, é destrinchada em suas especicidades econômicas, a partir da ideia
central de que o estado hegemônico provê uma estrutura permissiva, na
qual as relações ecomicas internacionais ocorrem. Ao mesmo tempo,
conforme declina o poder hegemônico, devido à própria instabilidade da
dimica do mercado internacional, ou do sistema capitalista, coloca-se a
possibilidade e a necessidade do surgimento de uma nova liderança políti-
ca, de forma a garantir a manutenção da ordem econômica internacional.
5. “US Power and the
Multinational Corporation”
Villa, Rafael Duarte; Gaspar, Debora Garcia Notas sobre hegemonia, poder e guerra em Gilpin
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Muitos autores atribuem a ideia original da TEH – e Gilpin concede
os devidos créditos – à Charles Kindleberger (1973), em World in Depres-
sion: 1929 -1939. Na obra, Kindleberger teria lançado a lógica subjacente do
argumento: nos últimos dois séculos, haveria uma correlação aparente
entre domínio de grandes potências e estabilidade econômica, vericadas
na Pax Britannica e na Pax Americana (COHEN, 2011, p. 26). No perío-
do analisado por Kindleberger, teria havido ausência de liderança, com
a Grã-Bretanha não mais capaz de desempenhar a função e os Estados
Unidos capazes, porém não dispostos. Para sustentar a famosa armação
de que para que a economia internacional seja estabilizada, é necessário
um, e apenas um, estabilizador, Kindleberger recorreu à teoria da ação
coletiva, utilizando-se da linguagem dos bens públicos. Dessa forma, as-
sim como, domesticamente, o estado deve prover as bases não geradas
pelo mercado (regulação, coleta de impostos, organização institucional,
sistema de preços), para o funcionamento do sistema econômico interna-
cional, o poder hegemônico deve, igualmente, prover bens públicos. Es-
tes seriam a manutenção de mercados abertos, padrão monerio estável
para nanciamento do comércio e atuação como emprestador de última
instância, frente a crises de liquidez.
Gilpin identica essa espécie de paradoxo em que, apesar de haver
a necessidade de ambiente político para que as forças de mercado se de-
senvolvam, os mercados tendem a operar a partir de uma lógica própria,
gerando mudanças na alocação das atividades econômicas que, por sua
vez, levam a redistribuição do poder econômico e industrial. Essa di-
mica encontra uma formulação tão sucinta, como poderosa nas convic-
ções de Gilpin: “O capitalismo e o sistema de mercado tendem a destruir
os fundamentos políticos sobre os quais eles precisam, em última instân-
cia, depender” (GILPIN, 1987, p. 78, tradução nossa)
6
. Essa “vida própria
que têm os mercados, nacionais e internacionais, com seus mecanismos
inerentes, é o que explica o perene interesse do autor nas discussões sobre
teoria econômica.
No texto de 1987, Gilpin conclui que a hegemonia americana es-
tava caminhando para sua fase nal, diante, sobretudo, da competição
japonesa. No que se refere à ordem econômica liberal internacional, o
período de declínio hegemônico americano seria marcado por um recuo
dos avanços liberalizantes que caracterizaram o transcurso da hegemo-
nia americana, abrindo caminho para uma ordem neomercantilista de
guerras comerciais e formação de blocos econômicos. Tal leitura foi dis-
seminada, à época, diante de retrocessos tanto no sistema multilateral de
comércio,
7
como no padrão monetário internacional.
8
A TEH foi bastante disseminada na subárea de EPI e tanto inuen-
ciou aderentes, como serviu de ponto de partida para as mais diversas
vertentes de crítica. Dentre estas últimas, a mais clara se refere à conexão
normativa entre as conclusões de Gilpin e a possibilidade de se defender a
manutenção da posição americana no cenário internacional. Para Gowan
(1999), todo o paradigma que se formou em torno da hipótese central
da TEH era subserviente ao unilateralismo americano: “Todo um para-
digma acadêmico foi construído nos Estados Unidos para justicar esse
unilateralismo americano” (GOWAN, 1999, p. 32, tradução nossa)
9
. Susan
6. “Capitalism and the market system
thus tend to destroy the political ;
foundations on which they must
ultimately depend”.
7. Os anos 1970, no campo do comércio
internacional, foram marcados pela
proliferação das barreiras não-tarifárias
ao comércio, que visavam contornar
os avanços em termos de redução
tarifária alcançados pelas rodadas do
GATT (General Agreement on Tariffs and
Trade), de 1947.
8. Em agosto de 1971, o presidente
americano colocava fim ao padrão ouro-
-dólar, acordado durante as reuniões de
Bretton Woods como a base do sistema
monetário internacional. Em 1973, o
sistema de Bretton Woods é desmante-
lado com o fim do regime de câmbio fixo
e o anúncio da retirada dos controles de
capitais de curto prazo, que compunham
os outros dois pilares do sistema, junto
ao lastro em ouro.
9. “A whole academic paradigm has
been constructed in the United States to
justify this American unilateralism”.
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Strange também alertou para os problemas do “mito persistente” do de-
clínio hegemônico americano, que é corolário da TEH, assinalando que
as conclusões derivadas da teoria tornam nebulosas as verdadeiras bases
do poder da superpotência, no contexto internacional, ou, como coloca
Snidal (1985), na mesma linha, a teoria ressignica a dominação sob o
manto de liderança, e não de exploração.
Keonane, responsável por nomear a teoria, apresenta uma posição
ambígua em relação à mesma, como apontado por Snidal (1985). Apesar
de apontar suas deciências, em especial, o fato de não servir de base
para um programa de pesquisa no sentido lakatosiano, o autor admite
seu valor interpretativo, que é utilizado em sua noção de “cooperação
hegemônica” (KEOHANE, 1984).
Porém a questão do poder – e da política, portanto – perpassa
também a reexão sobre comércio e nanças, indo além da TEH. Isso
aparece, novamente, delimitado na tensão entre autonomia doméstica e
integração internacional, tanto no que tange às questões de comércio,
como de moeda e nanças internacionais. Gilpin traz esta relação imbri-
cada à tona, sem nunca deixar de atentar para a complexidade da mesma,
sempre salientado diferentes pontos de vista, balanceando entre aspectos
globais (ao tratar da questão do ajuste entre superavitários e decitários)
e nacionais (ao salientar como diferentes opções de política econômica
mobilizam programas políticos domésticos).
Com relação ao sistema monetário internacional, no texto de 1987,
baseando-se em Benjamin Cohen (1977) e Susan Strange (1971), Gilpin
atém-se mais detidamente na apresentação histórica dos diferentes pa-
drões monerios: padrão ouro clássico (1871-1914), o interregno entre
as hegemonias britânica e americana (1914-1944), o sistema de Bretton
Woods (1944-1976) e o não-sistema de taxas de câmbio exíveis (1976-).
A alise que Gilpin faz sobre os padrões monetários está assentada no
seu entendimento de que os mesmos decorrem de ordens políticas subja-
centes, o que faz com que o autor, em certa medida, siga a perspectiva de
John Ruggie sobre as ordens econômicas enraizadas e propósito social.
Há dois pontos centrais sobre a alise de Gilpin acerca dos padrões
monetários: a centralidade dos mesmos na TEH e o fato de que o autor
considera que estamos sob a vigência de um não-sistema. Com relação
ao primeiro ponto, Gilpin adere à associação entre os períodos de exer-
cício de hegemonia por uma potência e o funcionamento ordenado de
um sistema monetário internacional: o padrão libra-ouro e a hegemonia
britânica; o padrão ouro-dólar e a hegemonia americana. No se que refere
ao segundo ponto, Gilpin segue armando o que já constava no texto de
1987: que desde a reforma dos Artigos do Acordo do FMI, em 1976, na
Jamaica, estaríamos sob a vigência de um não-sistema de taxas exíveis.
Com isso, o autor entende que não há regime internacional que governe
o SMI, discordando, portanto, de teóricos do regime que identicam sua
permanência, mesmo com o declínio hegemônico dos Estados Unidos
(KEOHANE, 1984).
Quanto ao Sistema Financeiro Internacional (SFI), Gilpin também
identica os elementos de tensão entre, de um lado, maior integração
dos mercados e, por consequência, maior acesso a nanciamento, so-
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bretudo do ponto de vista dos países menos desenvolvidos; e de outro,
maior instabilidade e incidência de crises. Outra questão relevante é
que, por mais que o autor aceite a profundidade da integração dos mer-
cados nanceiros, sustentando que é nessa seara que o termo “globali-
zação econômica” claramente se aplica, ele também arma que o SFI
continua sendo amplamente denido em bases nacionais, congurando
uma coleção de sistemas nanceiros nacionais discretos, altamente co-
nectados (GILPIN ,2001, p. 262). Isso porque alguns países relevantes
no SFI mantêm controles de capitais (Japão e China) e os investimentos
nanceiros, em geral, se destinam a aquisição de ativos domésticos. To-
das estas teses estão vinculadas a um segundo ponto, que é central no
pensamento de Gilpin: o Estado, aproximando-o bastante de uma visão
realista do sistema internacional
A perspectiva estadocêntrica em Gilpin
O principal elemento da argumentação de Gilpin, no que se refere à
discussão mais ampla de Relações Internacionais, é a armação (e rear-
mação), ao longo de suas obras, da centralidade do Estado, contrapondo-
-se tanto a leituras que opõem o poder crescente dos mercados ao poder
decrescente dos estados, como a outras que denunciam não ser mais pos-
sível implementar políticas econômicas autônomas, frente a uma econo-
mia internacional globalizada.
Para sustentar essa posição, o autor destaca, em especial, a natureza
limitada da globalização econômica, salientando que seus efeitos têm sido
exagerados pela literatura. Gilpin se utiliza com frequência da compara-
ção com a Belle Époque, com a nalidade de demonstrar que os uxos de
comércio, investimento e capitais eram mais pronunciados e menos con-
trolados pelos estados no nal do século XIX, do que são nos dias atuais.
Com isto, o autor advoga pela necessidade de uma perspectiva histórica
para a tese da globalização. Além de sustentar que os efeitos negativos da
globalização são exagerados, o autor destaca que diversas queixas dire-
cionadas ao fenômeno podem ser atribuídas a políticas domésticas con-
duzidas pelos próprios estados. Por m, Gilpin não vê possibilidades de
suplantar o problema do subdesenvolvimento e do atraso industrial sem
a integração dos países que sofrem desses problemas na economia global.
Quando à questão da governança da economia global, tema que sem-
pre aparece nos capítulos nais e conclusivos de seus livros, Gilpin rearma
sua posição, que aparece transversalmente, em todas as temáticas anterior-
mente tratadas, de que a economia internacional integrada não pode contar
apenas com a regulação provida pelo mercado. Neste ponto, o autor retoma
também a linguagem da TEH de forma mais direta: “um mecanismo de
governança internacional tem que assumir diversas funções na nova eco-
nomia global, em particular, deve prover alguns bens públicos e resolver
falhas de mercado” (GILPIN, 2001, p. 378). Dentre tais bens públicos, são
destacados: manutenção das regras do direito, em especial para resolução
de disputas comerciais, estabilidade moneria e nanceira, estabelecimen-
to de padrões e regulações para negócios, administração da comunicação e
do transporte global e soluções para problemas ambientais.
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v.6 n.3 (2018), p.66 - 81
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A visão geral de Gilpin sobre as possibilidades de cooperação no
mundo globalizado destaca a imporncia do apoio dos estados mais po-
derosos à criação e à manutenção de instituições e regimes internacionais.
É isso o que o autor denomina por “bases políticas de uma economia glo-
bal” (GILPIN, 2000, p. 459). O m da Guerra Fria teria sido marcado pela
debilitação dos elementos que outrora davam sustentação a uma econo-
mia global aberta, sobretudo, a capacidade e disposição de liderança dos
Estados Unidos, que teria se voltado a prioridades nacionais e regionais.
Nesse ponto, Gilpin é bastante enfático sobre o papel dos Estados Unidos
na economia global: “qualquer estratégia dos Estados Unidos para o sé-
culo XXI deveria partir da premissa básica de que uma economia global
unida é do interesse econômico e político do país” (GILPIN, 2000, p. 460).
De acordo com Gilpin, os Estados Unidos, sendo uma potência ligada ao
status quo, precisam de estabilidade no mundo e devem preservá-la, via
presença política e militar na Europa e na Ásia. A potência hegemônica
deve, inclusive, contrarrestar as forças do protecionismo e regionalismo,
que geram ameaça à segurança e ao bem-estar do país e de seus aliados.
Apesar de desenhar um diagnóstico de declínio da economia ame-
ricana em relação a outras, Gilpin sustenta que os Estados Unidos seguem
sendo o único país com capacidade de exercer liderança – no sentido de
colocar seu poder a serviço de algum projeto político mais amplo que
seus próprios interesses nacionais – por seguirem sendo a principal potên-
cia militar e econômica do mundo. O exercício desta liderança passaria
por contornar os riscos erigidos pela proliferação de acordos regionais.
Apesar de salientar a imprescindível liderança americana para a garantia
de uma economia global aberta, Gilpin arma que a superpotência não
pode fazê-lo sozinha. Nesse sentido, os Estados Unidos deveriam atentar
mais às demandas de seus principais parceiros e ampliar a participação
efetiva dos mesmos nos arranjos cooperativos. As consequências do não
exercício de liderança por parte da potência hegemônica pode levar ao de-
saparecimento da “Segunda Grande Era do capitalismo” (GILPIN, 2000,
p. 472), assim como desaparecera a Primeira Grande Era, com o colapso
da capacidade de liderança da Grã-Bretanha. Com isso, Gilpin, em sua
face mais realista, prevê um retorno dos conitos inter e intrarregionais,
com especial atenção à Europa e ao sudeste asiático. Tal prognóstico nos
leva de volta aos temas desenvolvidos em War and Change, conforme vi-
mos anteriormente.
Gilpin reforça a sua visão da manutenção da preponderância esta-
tal em suas notas sobre um poderoso ator não estatal: as empresas mul-
tinacionais, sendo precursor, na subárea de EPI, da temática das multi-
nacionais. Além de, em suas três obras gerais e uma especíca sobre o
tema, mapear o debate – sobretudo, apontando a indiferença da teoria
econômica neoclássica sobre o tema, algumas insuciências de teorias
microeconômicas (teorias do ciclo do produto, vantagem competitiva,
etc) e exageros das teorias críticas às CMN (a qual o autor se refere como
radicais) – o autor delineia sua visão estadocêntrica acerca da operação
destes empreendimentos econômicos e dos associados uxos e Inves-
timento Estrangeiro Direto (IED). Na denição adotada pelo autor, as
CMN são “empresas de determinada nacionalidade com subsidrias par-
Villa, Rafael Duarte; Gaspar, Debora Garcia Notas sobre hegemonia, poder e guerra em Gilpin
73
cial ou integralmente controladas no interior de duas ou mais economias
nacionais” (GILPIN, 2000, p. 223).
Para Gilpin, a expansão destas companhias, associada à internacio-
nalização da produção, não pode ser entendida como um fenômeno de
mercado, somente atentando às teorias da localização e das vantagens
comparativas, praticamente de forma a excluir o poder regulador do Es-
tado-nação. Ao contrário, para o autor, o impacto da globalização produ-
tiva é largamente exagerado e o Estado-nação segue impondo as regras
que as multinacionais devem seguir (GILPIN, 2000, p. 294). Dessa forma,
Gilpin se coloca contra as teses que priorizam a certa independência que
teria sido alcançada por essas rmas, armando que as mesmas seguem
sendo empresas nacionais que conduzem negócios internacionais.
Com relação à conjuntura de rápida expansão da CMN, nos anos
1970, Gilpin é enfático ao atribuir o fenômeno, não às operações do mer-
cado, mas aos interesses da potência hegemônica. Anal, em seu registro
histórico, todos os atores econômicos que se transnacionalizaram – mer-
cadores do século XVII, nancistas do XIX ou as CMN do XX – o zeram,
pois era do interesse dos poderes hegemônicos de cada período que tal
ocorresse (GILPIN, 1975, p. 4). Assim, a explicação para o crescimento
das atividades das CMN residia no incremento do poder americano e da
necessidade de contenção da União Soviética, no contexto da Guerra Fria.
Com essa visão, ca colocada uma alternativa teórica às abordagens li-
berais, com sua ênfase na relação entre livre mercado e ordem mundial
pacíca, e ao marxismo, que destaca os interesses das classes capitalistas
no processo de expansão econômica das CMN.
Novamente, nesta temática, Gilpin enquadra a questão sob a ótica
da tensão entre integração internacional (via mercados) e capacidade do
estado em gerir a economia nacional. Ao colocar a questão “as corpora-
ções globais conguram uma ameaça?”, Gilpin tende a apreciar a questão
de forma complexa e multifacetada. O autor não nega o imenso poder
que estas empresas podem acumular, inclusive inuenciando estratégias
de desenvolvimento dos países menos desenvolvidos. No entanto, aspec-
tos como as vantagens em termos de menores preços ao consumidor,
melhores políticas salariais e condições de trabalho e acesso a capital e
tecnologia, são salientados. Predomina, portanto, uma posição avessa ao
fechamento das fronteiras nacionais ao ingresso de multinacionais, espe-
cialmente no caso de países mais pobres, porém, conjugada com a pro-
posição de criação de um regime internacional de regulação da atuação
destas companhias, bem como dos uxos internacionais de IED.
Sua discussão sobre o papel das CMN e dos IED está parcialmente
conectada ao tema do desenvolvimento econômico. Gilpin replica a de-
núncia de ausência de um regime internacional que pudesse constituir
uma solução adequada para o problema do subdesenvolvimento e das
economias em transição. O autor oferece uma conclusão ponderada para
a questão. De um lado, livre-comércio e abertura econômica não condu-
zem ao desenvolvimento econômico, nem solucionam os problemas das
economias em transição. O neoliberalismo, e sua ênfase no livre merca-
do, não conguram soluções de longo prazo para o problema. Por outro
lado, o autor não sustenta o abandono completo dos preceitos liberais de
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v.6 n.3 (2018), p.66 - 81
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condução das relações econômicas internacionais. Essa posição é resu-
mida em sua sugestão por uma solução de compromisso entre “os dois
extremos do abandono do neoliberalismo e da total conança nos merca-
dos” (GILPIN, 2000, p. 340).
Cabe, ainda, salientar que, no livro de 1987, Gilpin atribui grande
importância ao rápido crescimento japonês, analisado pela teoria das
vantagens competitivas. Condizente com seu edifício teórico, o autor
sustenta que os ganhos de comércio e a atração de IED americano te-
riam alavancado a economia japonesa ao ponto de a mesma se colo-
car como desao na economia mundial e virtual candidato a hegemon.
Frente ao declínio do Japão, observado a partir do nal dos anos 1980
e do início da ascensão chinesa, a previsão de Gilpin mostrou-se equi-
vocada e foi sujeita à crítica (KATZENSTEIN, 2005). Obviamente, Gil-
pin também foi seduzido intelectualmente pelo canto de sereia da teo-
ria do overstretch imperial: a sobrecarga imperial de Paul Kennedy, de
acordo com a qual “interesses e obrigações globais tornaram-se muito
grandes para que uma grande potência possa defendê-los todos simulta-
neamente” (KENNEDY, 1988, p. 533, tradução nossa)
10
. Teoricamente,
no entanto, Gilpin não falhou, o que houve foi que faltou ao campo
das Relações Internacionais positivistas uma escolha mais assertiva e
de longo prazo pela proposição teórica e empírica do overstretch. Como
incisivamente sustenta Wohlforth (2011, p. 508, tradução nossa)
11
: “Se
os realistas não colocassem todas as suas maçãs na cesta da balança de
poder de de Waltz, poderíamos estar armados hoje com uma agenda de
pesquisa produtiva sobre o overstrech imperial em um mundo sem con-
trabalançamento por parte grandes potências”. Mas talvez o interesse
que despertou a teoria da mudança e da guerra na obra de Gilpin tenha
compensado a ausência de uma teoria e uma agenda de pesquisa densa
sobre o overstrecht, nos grandes poderes no mundo contemporâneo.
Guerra e mudança
Em War and Change, Gilpin, examina o problema da guerra e da mu-
dança na política internacional. Um dos pressupostos básicos de Gilpin, nes-
ta obra, em quem parece ecoar o mesmo pressuposto de Waltz, é que:
Um sistema internacional é estabelecido pela mesma razão que qualquer sis-
tema social ou político é criado; os atores estabelecem relações sociais e criam
estruturas sociais para avaar conjuntos particulares de interesses políticos,
econômicos ou de outros tipos... Assim, uma condição prévia para a mudaa
política reside em uma discorncia entre o sistema social existente e a redis-
tribuição de poder para os atores que beneciaria mais de uma mudaa no
sistema (GILPIN, 1981, p. 9).
Gilpin estabelece cinco pressupostos racionalistas da mudança na
política internacional: (1) um sistema internacional é estável se nenhum es-
tado acredita que seja vantajoso mudar o sistema; (2) um estado tentará mu-
dar o sistema internacional, se os benefícios esperados excederem os custos
esperados; (3) os estados buscarão mudar o sistema internacional através da
expansão territorial, política e econômica até que os custos marginais de
novas mudanças sejam iguais ou superiores aos benefícios marginais; (4),
uma vez que o equilíbrio entre os custos e os benefícios de novas mudanças
10. “global interests and obligations be-
came far too large for the country to be
able to defend them allsimultaneously”.
11. “If realists had not put all their
apples in Waltz’s balance-of-power
cart, we might today be armed with a
productive research agenda on imperial
overstretch in a world without great-
-power counterbalancing”.
Villa, Rafael Duarte; Gaspar, Debora Garcia Notas sobre hegemonia, poder e guerra em Gilpin
75
e expansão é alcançado, a tendência é que os custos econômicos de manter
o status quo aumentem mais rapidamente do que a capacidade econômica
para sustentar o status quo; e (5) se o desequilíbrio do sistema internacional
não for resolvido, então o sistema será alterado e uma nova redistribuída de
poder aparecerá. Ao mesmo tempo Gilpin identica três tipos de mudanças
dentro do sistema internacional: (1) mudança de sistemas – uma grande
mudança no caráter do próprio sistema internacional, (2) mudança sistêmi-
ca – mudança na governança de um sistema internacional e (3) mudança de
interação – modicações nas interações ou processos políticos, econômi-
cos e outros entre os atores de um sistema internacional. A expansão cessa
quando os custos marginais de expansão adicional igualam ou excedem os
benefícios marginais. No entanto, o equilíbrio alcançado é apenas tempo-
rio no processo de mudança. Uma vez que um estado atinge os limites da
expansão, a manutenção da posição e o declínio são difíceis de sustentar.
As taxas diferenciais de crescimento do declínio e o aumento dos estados
ascendentes no sistema produzem uma redistribuição decisiva do poder
e resultam em desequilíbrio no sistema. A guerra aparece como o fator
decisivo da mudança, resultando, desta maneira, a guerra hegemônica (ou
pela hegemonia) como mecanismo básico da mudança sistêmica na política
internacional (DOMSALLA, 2017).
Teorias de relações internacionais tendem a acreditar em uma histó-
ria sem muitas mudanças sistêmicas profundas, que alterem as principais
propriedades do sistema internacional. Waltz (1979) elabora por exemplo
uma teoria sistêmica das relações internacionais sem muitas mudanças ao
longo da história do sistema de estados. Ao contrário, Gilpin acredita que
a mudança, não a manutenção do status quo, através dos milênios forma
parte da natureza do sistema internacional, embora essa natureza (a ar-
quica) possa permanecer inalterada por milênios.
Também Gilpin não acredita, como o fariam Morgenthau e
Waltz, que o sistêmico tenha uma estrutura unicamente constituí-
da por poder. Gilpin não “pretendia desenvolver uma teoria geral das
relações internacionais que proporcionasse uma declaração explicativa
abrangente” (WALTZ, 1979). Em vez disso, ele, modestamente, afirmou
apenas fornecer uma estrutura [framework] para pensar sobre o proble-
ma da guerra e a mudança na política mundial. Além disso, do ponto de
vista dos níveis de análise, a partir da teoria rigorosa, estrutural e mate-
rialista, de Waltz, surgiu um programa de pesquisa realista renovado e
muito mais atraente e moderno do que um framework mal-arranjado e
multivariado. A eclética e transdisciplinar obra de Gilpin não provê um
papel causal para ideias, instituições e política doméstica, mas enfatiza
sua interação com o poder material. (WOLHFORTH, 2011). Em War and
Change, o autor fornece múltiplos caminhos para a interação entre os ní-
veis doméstico e sistêmico, como os institucionalistas ou os teóricos da
paz democrática liberal previram. A Teoria de Waltz parecia interpre-
tar a estrutura como material, enquanto War and Change sugere permitir
papéis importantes para ideias, adiantando-se cronologicamente ao pós-
-positivismo construtivista.
Consistentemente com aquele framework eclético e multivariado
quanto a tradões intelectuais explicativas, para Gilpin vários vetores
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v.6 n.3 (2018), p.66 - 81
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de forças, e, portanto, causalidades de natureza diferentes, tencionam
as relações internacionais, sejam elas de ordem política (o poder em si
mesmo) e também sociológicas e econômicas – relacionadas às forças
deagradas pelo capital. A história de longo prazo é mudança e não
conformidade com o status quo. Ao contrário do suposto pelo realis-
mo clássico e neorrealismo, mudanças em balanças de poder, militar
ou econômico, não conduzem necessariamente ao conito. Embora
seus trabalhos se liem à tradição realista, suas obras, em relação às do
realismo de Waltz, por exemplo, foram levantadas sobre pressupostos
fundamentais muito diferentes. O edifício teórico de Waltz baseia-se
no pressuposto de que os estados estão condicionados pela mera possi-
bilidade de conito, enquanto Gilpin assume, de acordo com a teoria da
utilidade esperada e grande parte das Ciências Sociais convencionais, o
pressuposto racionalista das decisões estatais baseadas na probabilidade
de conito (BROOKS, 1997).
Consistente com aquele pressuposto da probabilidade, qualquer
mudança no equilíbrio do poder econômico ou militar leva a um en-
fraquecimento subsequente dos fundamentos dos sistemas já existentes
(ABDULLATIF, 2017). Gilpin acredita, ao contrário do chamado realismo
defensivo, que o custo da manutenção do status quo internacional entre
os poderes dominantes resulta em grandes discrepâncias entre o poder
que possuem e este compromisso de manutenção (GILPIN, 1987).
12
O de-
clínio desses sistemas é causado principalmente por aqueles que ganham
poder porque valorizam os benefícios crescentes e os custos decrescentes
da mudança do sistema (GILPIN, 1981, p. 188). De outro lado, como men-
cionado, o custo da manutenção do status quo internacional entre os po-
deres dominantes aumenta, resultando em grandes discrepâncias entre o
poder que possuem e seu compromisso (GILPIN, 1981, p. 187). Isso pode
se desdobrar em conito (guerra), mas se trata uma probabilidade não
uma possibilidade mecânica e quase necessária.
Porém, Gilpin admite que a guerra pode sobrevir como consequên-
cia da ruptura da estabilidade do sistema. Nessa probabilidade de tensões
violentas na conguração de poder do sistema internacional, é que Gilpin
vai identicar que o elemento causal, que viabiliza a mudança na forma
de guerra, é o mecanismo prescrito na TEH. Gilpin realiza um retorno
às suas fontes e inuências realistas e atribui aos efeitos dos mecanismos
um status de lei. Por esta razão, não é incomum que pesquisadores se re-
ram a essas consequências como “Lei de Gilpin” (KEOHANE, 1993). De
acordo com Gilpin, a estabilidade hegemônica entre as potências domi-
nantes e as potências crescentes é alcançada através da alteração das leis
existentes no sistema internacional (GILPIN, 1987). Porém, os constan-
tes incrementos e concorrência entre poderes pagarão seus custos: isso
porque o aumento dos poderes tenderá a mudar as regras que regem o
sistema internacional, a distribuição nacional do território e a divisão das
esferas de inuência. Por outro lado, as potências dominantes geralmente
contestam o desao das potências emergentes exercendo seus poderes
hegemônicos, como propor mudanças em suas políticas na tentativa de
restabelecer o equilíbrio nos sistemas (GILPIN, 1987). O resultado gera a
chamada lei de Gilpin: caso o poder dominante não tenha condições de
12. Nos anos 90, aparecem duas ver-
sões do realismo que podem ser sinte-
tizadas assim: de uma parte o chamado
realismo ofensivo, cujo principal figura é
John Mearsheimer (1981), quem herda
do realismo clássico de Morgenthau o
pressuposto de que os grandes poderes
são maximizadores de poder, pouco se
importando com a segurança. De outro,
lado, o realismo defensivo, atribuído a
Waltz e seus seguidores, cuja premissa
principal é que os estados são maximi-
mizadores de segurança, e que portanto,
suas escolhas contemplam satisfação
com o status quo na medida que tal
configuração de poder lhes
garante segurança.
Villa, Rafael Duarte; Gaspar, Debora Garcia Notas sobre hegemonia, poder e guerra em Gilpin
77
restaurar e reequilibrar a balança de poder da ordem anteriormente exis-
tente, o desequilíbrio geralmente tem como resultado a guerra.
Quer dizer, o desequilíbrio na balança de poder é a causalidade
profunda do conito internacional violento (guerra). Mas, de outro lado,
deve-se se diferenciar, em Gilpin, a ênfase que ele atribui ao desequilíbrio
de poder, como mecanismo causal da guerra, dos mecanismos que vão
permitir ter sob controle a expansão hegemônica. Para Gilpin a balança
de poder desempenhou um papel distintamente secundário na limitação
da expansão hegemônica em comparação com outras forças compensató-
rias, tais como barreiras naturais, os gradientes de diminuição de força,
os limites econômicos e tecnológicos para e as instituições domésticas
(PAPE, 2005). Em poucas palavras, Gilpin estava certo. A dimica do
equilíbrio de poder desempenhou um papel, mas secundário ou mesmo
terciário, em comparação com os fatores que Gilpin identicou (WOHL-
FORTH, 2007). Além disso, ele analisou dois fatores externos importan-
tes (não relacionados à balança de poder): os custos crescentes do domínio
político e a perda de liderança tecnológica, que, segundo ele, tenderiam a
aumentar, quando um poder hegemônico está no topo do poder interna-
cional (WOHLFORTH, 2011).
Mas antes de ver concretizado o resultado do desequilíbrio na balança
de poder, a guerra, Gilpin foge do determinismo que caracteriza o realismo
clássico e o neorrealismo ao racionalizar para os grandes poderes (estabele-
cidos ou em ascensão) cursos de ação diferentes a uma lógica mecanicista
neorrealista e realista cssica. O pressuposto possibilista do pior dos casos
de Waltz foi o elo chave entre a condição da anarquia e todas as implicações
sobre poder e comportamento, num ambiente com essa natureza, princi-
palmente a ideia de os estados temerem por sua sobrevivência nesse mundo
arquico. Ainda, dado o grande diferencial de poder que adquiriu um dos
grandes poderes, só há duas opções: ou procura restabelecer o equilíbrio de
poder ou parte para a guerra. No mundo probabilístico de Gilpin, ao contrá-
rio, os estados podem escolher uma ampla variedade de estratégias, espécie
de correias de transmissão que ltram e reconduzem os conitos, dependen-
do da avaliação da probabilidade e gravidade das ameaças à segurança.
Assim naquela lógica probabilística de Gilpin, antes de eclodir a
guerra como o meio nal de restaurar o equilíbrio desejado, os pode-
res desaados têm duas alternativas principais em termos de ações que
podem tomar. Ou os poderes estabelecidos e que têm seu poder contes-
tado aumentam os recursos que se destinam a manter suas posições e
compromisso no sistema internacional (GILPIN, 1981). Ou os poderes
dominantes podem tentar reduzir seus compromissos existentes, bem
como os custos associados, mas garantir que a redução não prejudique,
de modo algum, suas posições no sistema internacional. Ainda, um curso
alternativo, mas com menos controle, consiste em buscar novos recursos
destinados a cobrir o custo de manter o domínio, para o qual o grande
poder valer-se de políticas impopulares, como o aumento da tributação
doméstica (GILPIN 1981, p. 188), ou mesmo tributar outros estados que
são parte de sua área de inuência.
Para a explicação de como aqueles três cursos de ação precedem
(ou evitam) a guerra, Gilpin apela para sua inuência intelectual eclética,
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v.6 n.3 (2018), p.66 - 81
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desta vez a sua inuência do institucionalismo neoliberal. Na teoria da
estabilidade hegemônica, é importante considerar o papel desempenhado
pela hegemonia na geração de ordem e cooperação. A hegemonia neoli-
beral tem a responsabilidade de resgatar o sistema nanceiro, através da
abertura do comércio global e de incentivar a cooperação institucionali-
zada para criar uma economia aberta sustentável. De acordo com Gilpin,
as hegemonias geralmente obrigam os estados mais fracos a aderirem a
regimes cooperativos, a m de reduzir a incerteza, diminuir os custos de
transação e construir consistência em termos de expectativas econômi-
cas. As hegemonias cooperativas geralmente tentam o máximo possível
para se identicar com os interesses de seus aliados e ajustar sua posição
de barganha em conformidade (ABDULLATI, 2017).
Tendo por base aquele argumento, Gilpin parte, então, das premis-
sas neoliberais para chegar a conclusões realistas defensivas. Basicamente,
de acordo com o argumento de Gilpin, o cálculo do custo ou do benefício
na determinação da política externa baseia-se no objetivo de um estado
de mudar o sistema internacional, usando métodos que lhes dão uma
vantagem sobre os outros, colocando seus interesses em primeiro lugar.
No entanto, dado que o estado hegemônico gostaria de consolidar seus
interesses nacionais sobre outros, um custo está quase necessariamente
envolvido. Por exemplo, um estado deve ter recursos adequados arcar
com esse custo. O próprio Gilpin mostra, assim, as limitações daqueles
três cursos de ação neoliberais mostrados acima: se um estado não pos-
sui recursos adequados para atender a esses custos, ele tentará mudar o
sistema. A única maneira de o sistema permanecer relativamente estável
e inalterado é se os estados individuais estiverem lucrando independen-
temente das desigualdades e satisfeitos com as mudanças (não sistêmicas)
promovidas pelo hegemon (GILPIN, 1981, p. 51). O que signicaria dizer
que eles estão satisfeitos em manter o status quo. Com base nesse resulta-
do, os realistas ofensivos não conseguem sustentar o argumento de por
que o objetivo de cada estado é maximizar seu poder dentro do sistema
internacional, com o qual Gilpin se aproxima bastante do neoliberalismo
e os realistas defensivos.
Gilpin reforça esse argumento defensivo ao sustentar que um custo
de oportunidade para uma sociedade é obrigatório se a mesma deseja ad-
quirir ou manter poder, devido à operação do efeito boomerang: se um de-
terminado estado busca adquirir poder, outros bens desejados são perdi-
dos no processo, como consequência. Esse custo a ser pago pelo hegemon
é vantajoso para melhorar a estabilidade no sistema internacional, porque
a maioria dos estados renuncia a oportunidades sugeridas pela guerra,
uma vez que os custos desta são muito elevados. Dessa forma, mantém-
-se a estabilidade e a posição de status quo para os estados mais poderosos,
tendo o hegemon, inclusive, como ganho, um aumento da inuência sobre
outros estados, através de instituições ou mesmo por considerações ideo-
gicas. Isso atenua, ao menos eventualmente, os jogos soma-zero, o que
poderia retardar o eclodir da guerra. O trabalho de Gilpin, desta maneira,
não se posiciona na forma de um jogo soma zero. Longe de descartar um
papel para as instituões, War and Change oferece uma explicação pode-
rosa para a criação e declínio das ordens institucionais e de governança
Villa, Rafael Duarte; Gaspar, Debora Garcia Notas sobre hegemonia, poder e guerra em Gilpin
79
do poder. Em vez de colocar instituões como formas antitéticas à polí-
tica de poder, ele explicou o quão densamemente poder e instituições in-
teragem. Ao mesmo tempo, Gilpin trata explicitamente das formas como
as ideias e as instituições domésticas afetam tanto o aumento como o
declínio dos poderes hegemônicos e a natureza das ordens internacionais
que os mesmos promovem (WOHLFORTH, 2011).
Tudo isso poderia sugerir que Gilpin toma partido pela mudança
pacíca no sistema internacional, como o fazem certos autores, como
Kupchan (2001), que acreditam que o sistema internacional contemporâ-
neo se inclina para uma mudança sistêmica do poder. No entanto, em seu
epílogo de War and Change, Gilpin continua a professar “otimismo caute-
loso” sobre mudanças pacícas. Gilpin argumentou que os Estados líderes
do sistema “tentarão mudar o sistema internacional se os benefícios es-
perados excederem os custos esperados” (WOHLFORTH, 2011; GILPIN,
1981), Mudança essa dada pela guerra necessariamente? Gilpin não deixa
uma resposta satisfatória para essa questão, mas também não diz, para
usar seu “otimismo cauteloso”, que a mudança utilitária pelos grandes
poderes será feita através de mecanismo de soft balance (ou revisionismo
suave), por exemplo, através da mudança da governança internacional ba-
seada no poder do multilateralismo e a qualidade da diplomacia.
Em todo caso, Gilpin retoma certo pessimismo ao armar que, uma
vez alcançado o equilíbrio entre os custos e os benefícios da mudança, os
custos econômicos de se manter o status quo tendem a aumentar mais ra-
pidamente em comparação com a capacidade econômica necessária para
sustentar o status quo (GILPIN, 1981, p. 156). Em qualquer caso, seja por-
que o status quo pode ser mantido, seja porque não, o que está claro no
pensamento de Gilpin é que a falta de obtenção de um equilíbrio (balança
de poder) entre as hegemonias e as potências emergentes é a principal
causa da guerra. Esse pessimismo se vê reforçado pelo afastamento que
o autor faz do realismo defensivo, quando Gilpin adianta que os estados
nem sempre “maximizam a segurança” em todos os momentos e sob to-
das as condões, como manteve o neorrealismo de Waltz. (WOHLFOR-
TH, 2011). Mas também Gilpin não adianta, de forma ambivalente, que
concorda com os realistas ofensivos, ao estilo de Mearsheimer (2001) ou
com o próprio Morgenthau (1948), realistas que mantêm que os grandes
poderes são maximizadores de poder. E, embora seja classicado como
um “realista ofensivo, Gilpin claramente não se enquadra em nenhuma
dessas escolas teóricas.
Considerações finais
Diferentemente dos pressupostos de Wohlforth, não concluímos
que o campo de Relações Internacionais teria ido mais longe e se desen-
volvido melhor se as teorias e o campo epistêmico de Gilpin houvessem
feito o papel de um acontecimento intelectual contrafatual. Na verdade,
deve-se ao próprio Gilpin o fato de que sua obra não haver atingido tal
posição. Em primeiro lugar, operou contra essa possibilidade a própria
agenda de pesquisa de Gilpin que nós discutimos neste artigo. Embora
tanto seus profundos discernimentos sobre a estabilidade hegemônica,
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v.6 n.3 (2018), p.66 - 81
80
sobre a natureza estadocêntrica do sistema internacional e sobre a guerra
tivessem muitos elementos originais, de alguma maneira, eles permane-
ceram a reboque, ainda que em interlocução, aos grandes sistemas realis-
tas e institucionalistas propostos por Kenneth Waltz e Robert Keohane.
Em segundo lugar, talvez a mais poderosa e original ideia de sua
agenda de pesquisa, a mudança política nas relações internacionais, viu-
-se muito limitada pelo fato de que as comunidades epistêmicas de Re-
lações Internacionais são muito fascinadas por percursos históricos de
curto e médio prazo. Gilpin não foi muito bem entendido, por fazer uma
proposta que, em essência, estava mais próxima de historiadores como
Braudel e o conceito de tempo histórico de “longa duração”, do que com
uma comunidade que vive de um empiricismo histórico imediato e do
médio-prazo.
Há uma terceira razão, pela qual o pensamento de Gilpin não
chega a ser esse contrafatual, no que sim coincidimos com Wohlforth,
a modéstia da estrutura teórica proposta por Gilpin limitou bastante
que as comunidades epistêmicas de Relações Internacionais, sobretudo
de epistemologias positivistas, sentissem-se inclinadas a optar por seus
conceitos e propostas teóricas em vez daquelas propostas pelo neorrealis-
mo de Waltz em Theory of Internatiomal Politics. Waltz propôs de maneira
ambiciosa uma “uma teoria geral da política internacional, ao contrário
de Gilpin que propunha um framework conceitual. Do ponto de vista de
uma estrutura cientíca, a distância em abrangência entre um framework
e uma “teoria geral” é abismal. Assim, no máximo, em alguns pontos de
sua agenda de pesquisa, denidas nos seus livros de 1981 e 1987, a teoria
de Gilpin se aproxima mais de uma teoria de meio-termo (middle -ground),
e não uma teoria geral, que no entanto, toma objetivos de compreensão
de grandes temáticas gerais, não especícas.
Finalmente, ante uma comunidade epistêmica positivista ávida de
grandes teorias e grandes debates especícos em torno de “ismos” (rea-
lismo, institucionalismo...), o caráter eclético, quase transgressor de eti-
quetas e liações epistêmicas rígidas, pareceu muito pouco convencional.
Ante uma comunidade epistêmica que embarcava na tendência, quase
sem volta, da especialização do conhecimento, o ecletismo de Gilpin –
que se valia de inuências intelectuais realistas, institucionalistas e até
construtivistas – era quase um estilo quase old fashion.
Nada disso, no entanto, signica que o aparato conceitual e empíri-
co proposto por Gilpin não contenha uma espécie de “welcome to the futu-
re”, então já não como acontecimento contrafatual, mas como fato em si.
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