
Villa, Rafael Duarte; Gaspar, Debora Garcia Notas sobre hegemonia, poder e guerra em Gilpin
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Muitos autores atribuem a ideia original da TEH – e Gilpin concede
os devidos créditos – à Charles Kindleberger (1973), em World in Depres-
sion: 1929 -1939. Na obra, Kindleberger teria lançado a lógica subjacente do
argumento: nos últimos dois séculos, haveria uma correlação aparente
entre domínio de grandes potências e estabilidade econômica, vericadas
na Pax Britannica e na Pax Americana (COHEN, 2011, p. 26). No perío-
do analisado por Kindleberger, teria havido ausência de liderança, com
a Grã-Bretanha não mais capaz de desempenhar a função e os Estados
Unidos capazes, porém não dispostos. Para sustentar a famosa armação
de que para que a economia internacional seja estabilizada, é necessário
um, e apenas um, estabilizador, Kindleberger recorreu à teoria da ação
coletiva, utilizando-se da linguagem dos bens públicos. Dessa forma, as-
sim como, domesticamente, o estado deve prover as bases não geradas
pelo mercado (regulação, coleta de impostos, organização institucional,
sistema de preços), para o funcionamento do sistema econômico interna-
cional, o poder hegemônico deve, igualmente, prover bens públicos. Es-
tes seriam a manutenção de mercados abertos, padrão monetário estável
para nanciamento do comércio e atuação como emprestador de última
instância, frente a crises de liquidez.
Gilpin identica essa espécie de paradoxo em que, apesar de haver
a necessidade de ambiente político para que as forças de mercado se de-
senvolvam, os mercados tendem a operar a partir de uma lógica própria,
gerando mudanças na alocação das atividades econômicas que, por sua
vez, levam a redistribuição do poder econômico e industrial. Essa dinâ-
mica encontra uma formulação tão sucinta, como poderosa nas convic-
ções de Gilpin: “O capitalismo e o sistema de mercado tendem a destruir
os fundamentos políticos sobre os quais eles precisam, em última instân-
cia, depender” (GILPIN, 1987, p. 78, tradução nossa)
6
. Essa “vida própria”
que têm os mercados, nacionais e internacionais, com seus mecanismos
inerentes, é o que explica o perene interesse do autor nas discussões sobre
teoria econômica.
No texto de 1987, Gilpin conclui que a hegemonia americana es-
tava caminhando para sua fase nal, diante, sobretudo, da competição
japonesa. No que se refere à ordem econômica liberal internacional, o
período de declínio hegemônico americano seria marcado por um recuo
dos avanços liberalizantes que caracterizaram o transcurso da hegemo-
nia americana, abrindo caminho para uma ordem neomercantilista de
guerras comerciais e formação de blocos econômicos. Tal leitura foi dis-
seminada, à época, diante de retrocessos tanto no sistema multilateral de
comércio,
7
como no padrão monetário internacional.
8
A TEH foi bastante disseminada na subárea de EPI e tanto inuen-
ciou aderentes, como serviu de ponto de partida para as mais diversas
vertentes de crítica. Dentre estas últimas, a mais clara se refere à conexão
normativa entre as conclusões de Gilpin e a possibilidade de se defender a
manutenção da posição americana no cenário internacional. Para Gowan
(1999), todo o paradigma que se formou em torno da hipótese central
da TEH era subserviente ao unilateralismo americano: “Todo um para-
digma acadêmico foi construído nos Estados Unidos para justicar esse
unilateralismo americano” (GOWAN, 1999, p. 32, tradução nossa)
9
. Susan
6. “Capitalism and the market system
thus tend to destroy the political ;
foundations on which they must
ultimately depend”.
7. Os anos 1970, no campo do comércio
internacional, foram marcados pela
proliferação das barreiras não-tarifárias
ao comércio, que visavam contornar
os avanços em termos de redução
tarifária alcançados pelas rodadas do
GATT (General Agreement on Tariffs and
Trade), de 1947.
8. Em agosto de 1971, o presidente
americano colocava fim ao padrão ouro-
-dólar, acordado durante as reuniões de
Bretton Woods como a base do sistema
monetário internacional. Em 1973, o
sistema de Bretton Woods é desmante-
lado com o fim do regime de câmbio fixo
e o anúncio da retirada dos controles de
capitais de curto prazo, que compunham
os outros dois pilares do sistema, junto
ao lastro em ouro.
9. “A whole academic paradigm has
been constructed in the United States to
justify this American unilateralism”.