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Uma crise de múltiplas dimensões: uma
reflexão sobre o processo de integração
regional da Europa próximo de
completar sete décadas
A multiple-dimension crisis: reflections on Europes regional integration process close to
completing seven decades
Una crisis multidimensional: una reflexión sobre el proceso de integración regional de
Europa cerca de completar siete décadas
Patrícia Nasser de Carvalho
1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2020v17n1p2
Recebido em: 21 de dezembro de 2018
Aprovado em: 19 de agosto de 2019
Resumo
Após quase sete décadas em curso, o processo de integração regional da Europa experimenta
a sua mais grave crise, que tem múltiplas dimensões. A partir de uma leitura conjuntural,
o objetivo deste artigo é refletir sobre como se caracteriza essa atual crise, de que forma ela
impõe desafios e quais são eles.
Palavras-chave: Europa. Integração Regional. Crise.
Abstract
After almost seven decades in progress, Europe’s regional integration process is experiencing
its most serious crisis, which is a multiple-dimensions one. From a conjuncture analysis,
the objective of this article is to reflect on how this current crisis is characterized, how it
imposes challenges and what they are.
Keywords: Europe. Regional Integration. Crisis.
Resumen
Después de casi siete décadas en progreso, el proceso de integración regional de Europa
experimenta su crisis más grave, que tiene múltiples dimensiones. A partir de una lectura
conyuntural, el objetivo de este artículo es reflexionar sobre cómo se caracteriza esta crisis
actual, cómo impone desafíos y cuáles son ellos.
Palabras clave: Europa. Integración regional. Crisis.
1 Doutora em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Adjunta do De-
partamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil, Orcid: http://
orcid.org/0000-0002-8152-9779.
Artigo
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O processo de integração regional da
Europa experimenta a sua mais grave crise de
múltiplas dimensões com traços de crise estru-
tural. Pensar esse processo de forma crítica, a
partir de uma leitura conjuntural, quando ele
está próximo de completar sete décadas, é um
exercício que permite refletir sobre seus pontos
de fragilidades e seus desafios atuais, a despeito
dos seus históricos alcances e inovações em vá-
rios aspectos das relações internacionais.
Em termos fiscais, essa crise é consequência
da Crise da Zona do Euro e da grande dificul-
dade de solucioná-la de maneira coordenada. A
união monetária, em construção desde o início
dos anos 1970, mas em vigor desde a década
de 1990, submeteu todos os seus membros, em
estágios diferentes de desenvolvimento político
e econômico, a denominadores comuns em ter-
mos de disciplina macroeconômica sem dispor
de instrumentos compatíveis com as condições
de cada um. O choque de consequências assi-
métricas, provocado pela crise financeira nor-
te-americana de 2008, explicitou ainda mais as
falhas estruturais da integração monetária. As
economias da Zona do Euro se dividiram em
credoras, da parte norte ou do centro, e de-
vedoras, localizadas ao sul ou na periferia do
continente. Isso aconteceu porque os países da
periferia europeia, sobretudo a Grécia, experi-
mentaram largos déficits fiscais, em razão da
abundante oferta de crédito e baixas taxas de ju-
ros em seus mercados, no início dos anos 2000,
além de desequilíbrios acumulados na balança
comercial e aumento dos custos trabalhistas,
tendo em vista a rigidez estrutural das suas eco-
nomias e crescimento econômico com endivi-
damento em anos anteriores. Em 2009, quando
os impactos da crise financeira norte-americana
atingiram a Europa, o mercado de crédito priva-
do entrou em colapso, aprofundando os déficits
fiscais e, consequentemente, as dívidas públicas
desses países. Assim, difíceis negociações para a
adoção de programas de socorro financeiro a go-
vernos e bancos subordinaram os membros mais
frágeis da Zona do Euro a diversas combinações
de políticas de austeridade fiscal e de reformas
estruturais draconianas (HALL, 2016), as quais
geraram mais desequilíbrios e desagrados.
Isso ocorreu porque a partir de 2010, a
saída para a crise fiscal, que se configurou na
Zona do Euro, foi conduzida por processos de
barganha por concessões entre as instituições da
União Europeia (UE) e as economias nacionais
da Zona do Euro. Desde os anos 1990, a po-
lítica monetária dos Estados membros da UE
seguia as diretrizes da autoridade supranacional,
o Banco Central Europeu (BCE). Isso implicou
em menor autonomia decisória sobre elas por
parte dos governos nacionais. No que se refere à
política fiscal, embora suas metas também fos-
sem comuns aos Estados membros, ela perma-
neceu a cargo dos governos nacionais e era rigo-
rosa ao estabelecer limites de gastos e de dívidas
públicas. Por esse motivo, a política fiscal se tor-
nou uma das questões mais prementes da pers-
pectiva das autoridades nacionais e europeias,
tornando-se um tema politizado, ao sujeitar as
economias desequilibradas a uma severa disci-
plina macro. A política monetária, em contra-
partida, manteve-se uma questão mais técnica.
No auge da crise, entre 2010 e 2011, e na
ausência de um “emprestador de última instân-
cia” ou uma estrutura política centralizada e teo-
ricamente preparada para lidar com as crescen-
tes dívidas públicas, a Troika – composta pela
Comissão Europeia, pelo BCE e pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) –, passou a su-
pervisionar ainda mais rigorosamente a políti-
ca fiscal dos Estados periféricos (CAPORASO;
RHODES, 2016). Além disso, ela proveu assis-
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tência financeira para os países mais vulneráveis
a partir da criação de fundos e instrumentos,
aplicados essencialmente no âmbito intergo-
vernamental. Insuficientes para restabelecer o
equilíbrio macroeconômico (MARZINOT-
TO, 2016), na prática, essas medidas paliativas
esconderam o fracasso de décadas do projeto
neoliberal de integração da Europa dirigido por
uma elite transnacional desde os anos 1980,
beneficiada com a transnacionalização e a glo-
balização da economia europeia (VAN APEL-
DOORN, 2012).
Dessa forma, além de seguir as diretrizes
comuns de políticas macroeconômicas esti-
puladas pelas instituições comunitárias para
a formação da União Monetária Europeia
(UME), como taxas de câmbio fixas e regimes
de economia política, as quais deixaram peque-
no raio de manobra aos Estados membros da
UE para gerir sua política monetária, desde os
anos 1970, os países mais vulneráveis da perife-
ria europeia sofreram de distintas formas com
o rigoroso plano de ajustes, sobretudo após a
crise da Zona do Euro. Frente à pressão para
liberalização do capital nos mercados financei-
ros desregulados pelas economias mais fortes,
as quais aspiravam, prioritariamente, à estabi-
lidade macroeconômica e à desregulamentação
financeira, a flexibilização de salários se tornou
um mecanismo de ajustamento, colocando
mais tensão sobre países que já eram deficitá-
rios (STOCKHAMMER, 2014), os que eram
também os economicamente mais fragilizados.
Por conseguinte, os conflitos políticos do-
minaram as respostas à Crise da Zona do Euro.
O Banco Central expandiu suas funções no
amplo escopo das negociações com os Estados
membros. O Conselho Europeu, formado pe-
los chefes de Estado e de governo, além do seu
presidente e o da Comissão Europeia, ganhou
mais poder do que inicialmente concebido
pelo Tratado de Lisboa (em vigor desde 2009).
Em certa medida, em algumas áreas, o Conse-
lho tomou o espaço, que anteriormente era da
Comissão Europeia, sobretudo no que se refere
ao seu papel de proponente de agenda e de ini-
ciadora das propostas legislativas (FABBRINI,
2013). Especialmente nas áreas bancária e de
política fiscal, o tradicional método comunitá-
rio de tomada de decisões, – centrado na tría-
de Comissão Europeia-Parlamento Europeu
(PE)-Conselho de Ministros da UE – perdeu
força para as decisões centradas em instituições
intergovernamentais, que se manifestaram nas
cúpulas e em acordos não baseados em trata-
dos, mas dominados por alguns poderosos
Estados membros. Antes da crise, a importân-
cia do Conselho já crescia; depois dela, face à
urgência das respostas às situações de crise, o
Conselho ganhou maior status político. Essa as-
censão foi apoiada por forças muito poderosas,
em particular pela Alemanha. Portanto, na área
monetária e bancária, o poder político das ins-
tituições intergovernamentais prevaleceu sobre
o supranacionalismo da Comissão Europeia,
criada para ser a instância responsável pela ela-
boração de propostas de novos atos legislativos
europeus, e onde deveriam ser buscadas solu-
ções comunitárias para a retomada do equilí-
brio macroeconômico a partir do gerenciamen-
to compartilhado de recursos para resgates de
economias (OTERO-IGLESIAS, 2017).
Como consequência disso, grande parte
das economias europeias periféricas enfrenta,
há mais de uma década, estagnação ou baixo
ritmo de recuperação, altos índices de desem-
prego e gradativos obstáculos à melhoria da sua
competitividade, revertidos na crescente desi-
gualdade socioeconômica e de salários (DUN-
GACIU, 2017). Esse cenário pode ser explica-
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do também pelo fato de que a crise fiscal das
economias da Zona do Euro se transformou
em uma crise financeira (BULMER; JOSEPH,
2016), tendo em vista que a ameaça de bancar-
rota dos países do Sul face às suas altas dívidas
públicas deixou os bancos do Norte altamente
expostos ao risco e as economias credoras dessa
região pouco abertas à concessão de novos cré-
ditos (SCHIMMELFENNING, 2018).
A crise do processo de integração regional
da Europa tem como uma de suas outras ver-
tentes a crise migratória, um tema que, da pers-
pectiva de políticos e de cidadãos, representa
uma ameaça externa, pois a entrada de migran-
tes é constantemente relacionada ao seu con-
tinuado temor de ataques terroristas e outros
crimes e com o aumento dos gastos públicos
com políticas destinadas a esse grupo. Grandes
fluxos de migrantes, os quais há anos chegam
às fronteiras da UE por meios ilegais, vindos
especialmente do Norte da África e do Oriente
Médio, aumentaram drasticamente a partir de
2015 (METCALFE-HOUGH, 2015). Des-
sa forma, a segurança nacional de cada país se
tornou prioridade para muitos governos nacio-
nais europeus, os quais, a despeito de que desde
2003 viessem buscando soluções conjuntas, a
partir de uma política de asilo e de refúgio mais
integrada através da aprovação de uma série de
diretivas e regulamentos comuns, não espera-
vam que o número de pessoas pedindo refúgio
se elevasse em proporções tão alarmantes como
nos últimos anos (BUONANNO, 2017).
Com a escalada da pressão migratória
sobre a Europa, muitos Estados membros da
UE preferiram aplicar soluções individuais de
natureza nacionalista, como o fechamento das
fronteiras externas, suspendendo parcialmente
as regras de livre trânsito na área de Schengen
(PIROZZI; TORTOLA; VAI, 2017). Eles tam-
bém se opuseram ao sistema de quotas de refu-
giados criado para aliviar a situação de países
que estão na linha de frente de entrada de flu-
xos de pessoas, alegando diferenças econômicas
e culturais com os migrantes, e que esse sistema
estaria em vigor como um instrumento impos-
to pela Alemanha, a sua maior defensora. Sen-
do assim, a área de Schengen permanece sem
um mecanismo comum de divisão dos custos
de recebimento desses imigrantes entre Estados
membros e organizações supranacionais que
possam, de fato, apoiar de modo coordenado
os Estados membros da UE nas áreas de segu-
rança, inteligência, justiça e direitos humanos.
Com efeito, apesar de que a UE tenha
avançado em várias políticas relacionadas às
suas fronteiras externas, nos últimos anos, a sua
abordagem para a imigração irregular e para
os exilados ainda não conseguiu se basear na
solidariedade e na partilha das responsabilida-
des (BUONANNO, 2017), como prevê a Po-
lítica de asilo da UE. As divergências entre os
líderes dos países europeus ajudam a alimentar
os discursos xenófobos de partidos de extrema
direita, que, mais do que nunca, defendem a
aplicação de rigor sem precedentes na política
de migração.
No que se refere à crise geopolítica, as ati-
tudes confrontantes da Rússia em relação à UE
e à comunidade internacional, sobretudo após
a anexação da Criméia, em 2014, mostraram a
tônica do plano de poder expansivo russo em
sua área de influência, além do seu esforço para
travar uma guerra normativa com a Europa. Ao
erodir o consenso liberal ocidental do pós-Guer-
ra Fria, negar a ideia de mundo unipolar nos dias
atuais e apoiar os partidos europeus de extrema
direita na UE, os russos se utilizam de meios não
convencionais, como hacking, espionagem e ma-
nipulação da mídia (LIIK, 2018) para se colocar
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como uma grande potência global. Além disso,
os diversos problemas étnicos, religiosos, políti-
cos e territoriais nos países vizinhos a UE, espe-
cialmente na Turquia, onde há a maior concen-
tração de potenciais refugiados e asilados cujo
destino é a Europa, e o seu atual governo, que
se coloca contra o bloco europeu em variados
aspectos, elevam a sensação de vulnerabilidade
da sociedade europeia na fronteira com a Ásia.
Em reação, a política de defesa continua
se desenvolvendo em nível europeu. Desde que
foi apresentada, em 2016, a Estratégia Global
da UE (EUGS) para Política Externa e de Segu-
rança Comum (PESC) tem como objetivo pro-
mover a cooperação mais estreita em segurança
e defesa de maneira mais pragmática, após a
identificação dos seus desafios urgentes, além
de reafirmar que a ordem internacional deve se
assentar em normas e instituições multilaterais.
De fato, esse é um importante passo e um
sinal de que a UE busca ampliar a sua projeção
internacional. Contudo, ainda parece muito di-
fícil que a Estratégia alcance consenso interno
sobre o uso comum das capacidades militares
dos Estados membros (PIROZZI; TORTO-
LA; VAI, 2017). No caso da política externa,
acontece o mesmo. Apesar de que a reforma
institucional, determinada pelo Tratado de Lis-
boa tenha melhorado os seus mecanismos de-
cisórios, a posição internacional da UE foi en-
fraquecida nos últimos dez anos. Enfatizando o
soft power, a preferência por soluções jurídicas,
primando pela democracia como valor histó-
rico e pela diplomacia multilateral como ins-
trumento político, a UE tem enfrentado difi-
culdades de se ajustar a um mundo multipolar
governado cada vez mais pela disputa de poder
refletida no aumento das tensões geopolíticas.
Poucos Estados Membros estão dispostos a se
subordinar à política externa comum da UE
de caráter essencialmente supranacional (LEH-
NE, 2017). Apesar do Tratado de Amsterdã
(1999) ter criado o posto de Alto Representan-
te da PESC e de outras inovações, os governos
e as instituições europeias ainda preferem man-
ter relações diplomáticas essencialmente indivi-
duais em muitos temas. Como resultado, a UE
não consegue ser a potência normativa global
que pretende, por exemplo, ao manter relações
com países os quais não são democracias e não
aceitam interferência em seus assuntos inter-
nos. Além disso, mais recentemente, a PESC
não parece conferir fôlego para que a UE se
coloque no mesmo nível de Estados Unidos e
China no jogo competitivo global no comércio
e na diplomacia.
Para agravar essa situação, desde a eleição
de Donald Trump à presidência dos Estados
Unidos, em novembro de 2016, as relações
transatlânticas estão abaladas. As provocações
do presidente norte-americano aos líderes eu-
ropeus e as posições políticas dicotômicas em
vários assuntos em ambos os lados do Atlântico
parecem esfriar o seu relacionamento, alinhado
desde o final da Segunda Guerra Mundial, à
medida que se coloca o prospecto de desmo-
bilização norte-americana do sistema regional
de segurança coletiva na Europa, representa-
do pela Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN), de 1948. Em julho de 2018,
Trump criticou os europeus por supostamen-
te se “aproveitarem” dos recursos dos Estados
Unidos dentro da aliança transatlântica (NYE,
2017). Mesmo que esse sistema não seja des-
guarnecido no curto prazo, até porque o presi-
dente dos Estados Unidos não é o único ator da
política externa desse país, os norte-americanos
pressionam a UE para ampliar a sua contri-
buição financeira à OTAN. Trump ainda vem
atacando a unidade europeia e se colocando
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contra os pilares do Sistema Internacional libe-
ral multilateral instituído pelos Aliados capita-
listas no pós-Segunda Guerra.
As tensões entre os Estados Unidos e a UE
acerca do futuro das estruturas globais de go-
vernança multilaterais se manifestam em várias
áreas. A maior parte das estruturas globais de
governança é vista como incapaz de enfrentar os
desafios atuais. Elas estão enfraquecidas como
alavancas de cooperação transatlântica (WIC-
KETT, 2018), à medida que norte-americanos
e europeus estão enfrentando desafios internos
e internacionais similares. A dificuldade de
competir com a China nos mercados domésti-
co e internacional é um deles. Suas consequên-
cias para a adaptação da estrutura produtiva e
a contratação de mão-de-obra são diretas para
todos os países do mundo. No caso da UE, efe-
tivamente, as reações políticas nacionalistas e
populistas dos partidos que exploram a ideia de
que as elites abandonaram as classes trabalha-
doras nas últimas décadas cativam os cidadãos
(RILEY; GHILLÈS, 2016) e reforçam a ideia
de que os Estados membros devem deman-
dar que as políticas comuns sejam adotadas
de distintas formas e, dependendo do caso, de
modo mais flexível, ou mesmo com múltiplas
velocidades (LERUTH; LORD, 2015). Sem
dúvida, o Reino Unido é o maior exemplo de
integração diferenciada na Europa, muito antes
da aprovação de sua saída da UE no referendo
popular de junho de 2016, o Brexit.
A “crise existencial” da UE como proje-
to político, econômico e social (SANAHUJA,
2012), em grande medida ainda pode ser cre-
ditada às dificuldades das instituições europeias
de alcançarem soluções coletivas frente às diver-
sas posições individuais, dada a sua frágil capa-
cidade de harmonização dos interesses políticos
e das condições socioeconômicas dos Estados
membros da UE. Philippe Schmitter (1970),
experiente pesquisador sobre o processo de
integração da Europa, chamou a atenção para
isso décadas atrás, ao identificar que o projeto
de integração regional da Europa estava sendo
construído sobre expectativas frustradas e desa-
pontamentos das suas partes porque não foram
institucionalizados mecanismos eficientes no
âmago do projeto integrativo para promover a
harmonização política, orçamentária e tributá-
ria entre os Estados membros. Essa é uma das
características de uma unidade federativa da
Europa, como previram os primeiros projetos
de união no pós-Segunda Guerra Mundial.
Em trabalho mais recente, o mesmo au-
tor conclui, como consequência disso, que
a atual crise política da UE não somente ga-
nhou magnitude maior que o esperado, tanto
supranacional quanto intergovernamental, mas
também parece ter penetrado negativamente
nas instituições políticas nacionais dos Esta-
dos membros (SCHMITTER, 2015). Embora
desde 2009 novas medidas e tratados tenham
sido aprovados e introduzidos na tentativa de
atenuar as pressões do mercado sobre os Es-
tados membros mais fragilizados da Zona do
Euro, eles foram considerados ineficazes pelos
mercados financeiros e ilegítimos por muitos
cidadãos (FABBRINI, 2013).
De modo especial, nos últimos anos, as
dificuldades de manutenção da legitimidade
das instituições supranacionais da UE, concen-
tradas em Bruxelas, vêm implicando na dimi-
nuição do entusiasmo dos seus Estados mem-
bros e da sociedade para apoiar o avanço do
processo de integração regional, uma vez que se
amplia a sua desconfiança sobre os custos ver-
sus os benefícios de participar dele. Aos olhos
de muitos cidadãos, a UE continua sendo uma
tecnocracia (HALL, 2016) e a sua legitimidade
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está pautada basicamente na sua capacidade de
promover prosperidade no continente. Segun-
do Habermas (2012), ao longo das décadas,
a elite burocrata europeia falhou em reforçar
para os cidadãos a história de superação das
rivalidades interestatais dos países da Europa,
alcançando a paz pela integração.
A fragilidade político-institucional da UE
e a sua incapacidade de minimizar insatisfações
e harmonizar decisões sobre temas sensíveis re-
sultam nos atuais conflitos distributivos e na frá-
gil coesão política, econômica e territorial entre
os seus Estados membros (SANAHUJA, 2012)
e cada vez mais em cidadãos que não se sentem
parte importante desse projeto porque poucos
decidem sobre ele. A despeito de os instrumen-
tos democráticos terem sido fortalecidos na
UE, sobretudo com o desenvolvimento e par-
ticipação dos partidos políticos no Parlamento
Europeu (PE), e que o Tratado de Lisboa tenha
lhe conferindo maior poder de codecisão como
órgão legislativo, ironicamente foi ampliado o
espaço para que os líderes nacionais proteges-
sem sistemas políticos domésticos de forma
autocrática. Isso pôde ser percebido nos atos
autoritários recentes que ocorreram em vários
países do Leste Europeu, onde houve vários epi-
sódios de cerceamento à liberdade de expressão
e restrição de direitos políticos. Isso demonstra
que os valores democráticos da UE estão sen-
do atacados. Assim, a crise política coloca mais
pressão sobre o arcabouço político-institucional
europeu (PIROZZI, TORTOLA; VAI, 2017),
que repercute no crescente euroceticismo.
Por fim, há uma crise de liderança na UE.
A Alemanha, que historicamente teve esse pa-
pel no processo de integração da Europa, parece
relutar em se colocar no fronte das negociações
em defesa da união política e das instituições
supranacionais. Ainda que ela continue reto-
ricamente afirmando que o caminho político
para a UE é a concessão de soberania nacional
dos Estados membros às instituições comunitá-
rias supranacionais e uma união cada vez mais
federalizada da Europa (OTERO-IGLESIAS,
2017), a sua posição reflete o desejo de que as
instituições europeias sigam, acima de tudo, o
modelo alemão de promoção de estabilidade
macroeconômica (SCHILD, 2013). Os ale-
mães estão mais empenhados em proteger seus
próprios interesses e, por conseguinte, insistem
na disciplina fiscal como condição primordial
para o avanço da integração regional (PETER-
SON, 2011). Como consequência disso, a lide-
rança da Alemanha na UE se enfraquece, pois
ela não consegue o apoio de muitos dos seus
demais parceiros do bloco em outras questões.
Diante deste cenário, próximo do pro-
cesso de integração da Europa completar sete
décadas e face a essa crise de múltiplas dimen-
sões, é provável que ele tenha que continuar se
adaptando, mesmo que isso signifique grada-
tivamente mais exceções às regras existentes e
integração em diferentes velocidades.
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