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Relações Internacionais e Religião: Frei
Betto, a crítica do ateísmo do socialismo
internacional e a construção da
laicidade do socialismo cubano
International Relations and Religion: Frei Betto, criticizing the atheism of international
socialism and building the secularism of Cuban socialism
Relaciones internacionales y religión: Frei Betto, la crítica del ateísmo del socialismo
internacional y la construcción de la laicidad del socialismo cubano
Fábio Régio Bento
1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p42
Recebido em: 08 de maio de 2019
Aceito em: 01 de dezembro de 2019
Resumo
Neste artigo estudaremos a experiência política-internacionalista de Frei Betto com o objetivo
de identificar o papel exercido pelo brasileiro na transformação política de Cuba que trocou o
ateísmo de Estado pela laicidade. Utilizamos fontes bibliográficas para a redação e participa-
ção em eventos temáticos para a formulação das aproximações hermenêuticas apresentadas.
Palavras-chave: Frei Betto. Cuba. Relações Internacionais.
Abstract
In this article, we will study Frei Bettos political-internationalist experience in order to
identify the role played by the Brazilian in the political transformation of Cuba, which
changed state atheism by secularism. We use bibliographic sources for the writing and par-
ticipation in events for the formulation of the hermeneutic approaches.
Keywords: Frei Betto. Cuba. International Relations.
Resumen
En este artículo, estudiaremos la experiencia político-internacionalista de Frei Betto con el
objetivo de identificar el papel desempeñado por lo brasileño en la transformación política
de Cuba que cambió el ateísmo del Estado por la laicidad. Utilizamos fuentes bibliográfi-
cas y participar en eventos temáticos para formular los enfoques hermenéuticos presentados.
Palabras clave: Frei Betto. Cuba. Relaciones Internacionales.
1 Pós-doutor junto ao Núcleo de Estudos da Religião do PPGAS da UFRGS com pesquisa sobre Religião e Revolução na América
Central (2015). Doutor em Ciências Sociais pela PUC San Tommaso (Roma, 1996). Mestre em Teologia Moral pela Academia
Alfonsiana da PUC Lateranense (Roma, 1992). Professor associado na Universidade Federal do Pampa onde leciona Política, Re-
lações Internacionais e Religião no curso de Relações Internacionais (campus Santana do Livramento-RS). Professor colaborador
no mestrado em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (campus João Pessoa). Membro do CEPRIR: Centro
de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião. https://orcid.org/0000-0003-3796-1799
Artigo
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Introdução
No capítulo de livro intitulado Religião nas
Relações Internacionais, o britânico Jeffrey Hay-
nes (2016, p. 22), diretor do Centro de Estudos
de Religião, Conflito e Cooperação da London
Metropolitan University (UK), destacou que
há duas categoriais de atores religiosos “ativos
atualmente nas relações internacionais”, os esta-
tais e os não-estatais. Entre os não-estatais estão
“indivíduos, movimentos religiosos transna-
cionais e instituições”, figuras como Desmond
Tutu, Papas como João Paulo II, Papa Francis-
co, movimentos como a Al-Qaeda e instituições
como a Santa Sé/Vaticano (HAYNES, p. 23).
O caso Frei Betto se insere nas três moda-
lidades de ator religioso não-estatal identifica-
das por Haynnes: Betto faz parte do movimen-
to latino-americano da Teologia da Libertação,
situado na esquerda da instituição Igreja Cató-
lica, e se trata de uma biografia politicamente
relevante pela influência local e internacional
gerada por suas obras literárias, várias delas tra-
duzidas em vários idiomas, e sua atuação políti-
ca internacional, que analisaremos neste artigo
do ponto de vista de sua atuação internacional
pela construção da laicidade de experiências
socialistas caracterizadas pelo ateísmo devido
à influência exercida ao longo de décadas pela
União Soviética no socialismo internacional.
Nos cursos de Relações Internacionais do
Brasil, estudar Relações Internacionais e Reli-
gião não é regra geral, mas já há oferta da disci-
plina, como obrigatória ou optativa, em alguns
cursos brasileiros de graduação em Relações In-
ternacionais (CARLETTI; FERREIRA, 2018).
A temática já conta com a publicação de
um livro específico no Brasil, intitulado Reli-
gião e Relações Internacionais, publicado em
2016 pela Editora Juruá (Curitiba), organizado
pela professora Anna Carletti, do curso de Re-
lações Internacionais da Universidade Federal
do Pampa, e pelo professor Marcos Alan Fer-
reira, da Universidade Federal da Paraíba, cujo
quinto capítulo, sobre Relações Internacionais
e Religião na América Latina é de nossa autoria.
O analista das Relações Internacionais que
reconhece o poder relativo dos sujeitos coleti-
vos confessionais transnacionais, independen-
te de concordar ou não com a atuação local e
internacional desses movimentos, instituições
e biografias confessionais, não negligencia em
seus estudos a análise da influência política de
tais sujeitos coletivos confessionais no cenário
complexo das relações internacionais. A análise
se desenvolve geralmente por meio do estudo de
casos, dada a complexidade cognitiva dos sujei-
tos e cenários e das relações entre tais sujeitos e
cenários. Nesse sentido, estudos “civilizatórios”
sobre religiões transnacionais e relações interna-
cionais correm o risco de se tornarem explana-
ções mais apologéticas do que de pesquisa.
Em artigo anterior (BENTO, 2017), pro-
curamos demonstrar, por meio de pesquisa his-
tórico-bibliográfica, que o ateísmo do socialis-
mo soviético não deriva de Karl Marx, que foi
ateu, mas não ateísta, mas de fonte externa ao
marxismo que foi adotada por Lenin e levada
por ele para dentro do socialismo soviético. E
tal associação a nosso aviso equivocada entre
ateísmo, marxismo e socialismo exerceu forte
influência nos países e movimentos socialis-
tas internacionais para os quais foi exportada.
Mesmo após o término da União Soviética,
essa associação produzida e difundida interna-
cionalmente pelo socialismo leninista-soviético
permanece como memória político-cultural de
movimentos socialistas internacionais como se
fosse tese-dogma do marxismo para movimen-
tos e Estados socialistas.
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A contestação teórico-prática da associa-
ção leninista entre marxismo e ateísmo emerge,
porém, em vários autores, entre eles Rosa Lu-
xemburgo (BENTO, 2017), contemporânea e
crítica de Lenin, e também nas ações (locais-
-internacionais) e pensamento de Frei Betto,
dominicano brasileiro que é ao mesmo tempo
crente e socialista.
Em Frei Betto (1986a; 2006; 2015) fica
evidente que a briga entre comunismo - que
seria ateu, por ser marxista, “materialista” - e
religiões, tratadas tout court como resquício de
irracionalidade da humanidade pelos positivis-
tas burgueses e pelos positivistas socialistas, é
uma história mal contada.
Frei Betto contesta a confessionalidade
(ateísmo) do socialismo e, no caso do socialis-
mo cubano, promoveu diretamente, como ve-
remos no artigo, a desconstrução dessa confes-
sionalidade de Estado e construção da laicidade
do socialismo cubano, com o abandono tam-
bém jurídico do ateísmo de Estado no início da
década de 1990.
Betto escreveu e publicou dezenas de li-
vros e centenas de artigos
2
. Sobre sua vida de
militante e literato (uma relação de unidade
e distinção) destacamos a recente Biografia de
Frei Betto, escrita por Evanize Sydow e Américo
Freire (2016), e seu premiado livro Batismo de
Sangue (2006), que chegou também ao cinema.
Pode-se verificar também o posfácio do
livro A Guerra dos deuses, onde Michael Löwy
(2000) analisa a contribuição dos intelectuais
franceses da ordem dos dominicanos, comuni-
dade religiosa de Betto, na formação da esquer-
da católica brasileira. Além disso, para a com-
preensão do contexto histórico inicial de sua
2 Disponível em: http://www.freibetto.org/index.php. Acesso
em: 20/12/2017.
experiência política de juventude na Juventude
Estudantil Católica (JEC) e Juventude Univer-
sitária Católica (JUC) pode-se conferir o livro
História da Ação Popular, da JUC ao PCdoB, de
Haroldo Lima e Aldo Arantes (1984), a pesqui-
sa do brasilianista Scott Mainwaring, Igreja Ca-
tólica e Política no Brasil, sobretudo os capítulos
sobre a Igreja reformista e a esquerda católica
(2004, p. 62-100), e a pesquisa do historiador
Oscar Beozzo, Cristãos na Universidade e na Po-
lítica – história da JUC e da AP (1984).
Nesta pesquisa, focaremos especificamente
apenas neste recorte do pensamento político de
Frei Betto: socialismo internacional e laicidade.
Socialismo internacional
e laicidade
Em Frei Betto (1990; 2007; 2015), a
previsão positivista do declínio inelutável da
religião pelo “progresso da ciência” é biografi-
camente contestada, dado que se trata de um
intelectual socialista crente, autor de dezenas
de livros que, com o passar dos anos continua
crente, intelectual e socialista.
O pensamento político de Frei Betto é
pensamento em ação. E a sua, mais do que mi-
litância partidária (nunca foi filiado a partido),
é militância em movimentos de base, tipifica-
da não pelo basismo vulgar de quem mitifica
a base em si. Ao contrário, é caracterizada pela
visão de quem considera a base como uma ex-
periência em autoconstrução nos processos de
tomada de consciência (educação popular) das
situações constitutivas de dominação de classe,
de raça, de gênero, e contestação dessas formas
coletivas estruturais de subordinação.
Dessa forma, em Frei Betto, a defesa da
tese da laicidade do socialismo internacional
ocorre nessa sua trajetória prático-teórica: ele
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viaja por países socialistas, encontra-se com
líderes políticos, contesta a tese confessional
do ateísmo de Estado diante de seus próprios
sustentadores e reivindica, em tal contesto prá-
tico-dialético, a associação entre socialismo
e laicidade. As suas formulações teóricas são
construídas nesses diálogos francos e, por isso,
algumas vezes tensos.
Tudo começou em Manágua
No dia 11 de abril de 2014, uma sexta-fei-
ra, em entrevista que nos concedeu pela ma-
nhã, em Manágua, na sede do Movimento Fe y
Alegria, o sacerdote jesuíta Fernando Cardenal,
que foi ministro de Estado da junta revolucio-
nária sandinista, nos relatou que
na celebração do primeiro ano da Revolu-
ção Sandinista, em julho de 1980, Fidel veio
nos visitar. Felicitava-nos pela “aliança entre
cristãos e marxistas na luta revolucionária
quando uma freira levantou o braço e disse
que não tinha sido bem assim. “Puxa, deixa-
mos uma freira reacionária entrar na reunião
com Fidel”, pensei. Mas ela concluiu: “Aqui
não houve aliança entre cristãos e marxistas.
Trabalhamos todos juntos na luta revolucio-
nária”. Não era uma freira reacionária, mas
mais revolucionária do que pensei (BENTO,
2016, p. 75-77; CARDENAL, 2009).
Nessa celebração do primeiro aniversário da
Revolução Sandinista, estava também Frei Bet-
to, que manteve uma conversa ousada com Fidel
Castro, como veremos, dando início, assim, em
Manágua, ao processo de construção da laicida-
de do socialismo cubano (BETTO, 2015).
Para as festividades desse 1° aniversário da
Revolução Sandinista, o governo da Nicarágua
convidara, do Brasil, dom Paulo Evaristo Arns
(que não pôde viajar), Luiz Inácio Lula da Sil-
va, presidente do Partido dos Trabalhadores, e
Frei Betto. Dois religiosos e um civil. Entre os
convidados internacionais a grande atração era
Fidel Castro.
Na Praça 19 de Julho, pela manhã, dia 19
de julho de 1980, Fidel discursou para 600 mil
pessoas. Após o ato, o ministro das Relações
Exteriores da Nicarágua, o sacerdote sandinista
Miguel D’Escoto deu carona a Betto até seu ho-
tel e avisou-lhe de ficar atento ao telefone, pois
queria que viesse com ele à casa de um amigo
naquela mesma noite. De fato, Betto foi depois
levado à casa de Sérgio Ramirez, escritor nica-
raguense, membro da Junta de Governo. Pela
mediação desse sacerdote católico revolucioná-
rio, quando os últimos convidados se retiraram,
por volta das 2h da madrugada, na biblioteca
da casa de Sérgio Ramirez ocorreu o primeiro
encontro entre Betto e Fidel. O brasileiro pen-
sou que além de ser o primeiro seria também o
único. Não sabia que dialogaria com o revolu-
cionário cubano dezenas de outras vezes.
Naquela madrugada de julho, Frei Betto
discorreu sobre as Comunidades Eclesiais de
Base e sobre a escolha que considerava equi-
vocada dos partidos comunistas que adotaram
o ateísmo como programa político. Fidel, por
sua vez, destacou que em Cuba, às vésperas da
Revolução de 1959, diversamente da Nicará-
gua, o clero católico era conservador e mesmo
franquista. Depois, o diálogo entre eles tomou
o seguinte rumo:
- Por que o Estado e o Partido Comunista de
Cuba são confessionais? – perguntou Betto.
- Como Confessionais?! – reagiu Fidel, sur-
preso. - Somos ateus.
- O ateísmo é uma forma de confessionalida-
de, assim como o teísmo, pois professa a ne-
gação da existência de Deus. Uma conquista
da modernidade é o Estado e o partido laicos.
Um Estado ateu é tão confessional quanto
um Estado cristão ou muçulmano.
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- Você tem razão – admitiu Fidel. – Estaria
disposto a nos ajudar a conseguir um bom
diálogo com os bispos cubanos?
- Sim, comandante, desde que eles também es-
tejam dispostos a isso (BETTO, 2015, p. 43).
Na biblioteca da casa de Sérgio Ramirez,
em julho de 1980, começou a construção da
laicidade do socialismo cubano por meio da in-
fluência exercida pelo religioso brasileiro junto
ao revolucionário cubano.
De fato, anos depois, durante o IV Con-
gresso do Partido Comunista cubano, em outu-
bro de 1991, decidiu-se pela supressão do cará-
ter ateu do partido, que passou a ser considerado
laico. Para o Partido Comunista de Cuba, a
crença religiosa não seria mais obstáculo à filia-
ção. Os bispos cubanos, entretanto, dois meses
depois proibiram os católicos de se filiarem ao
partido (BETTO, 2015, p. 126).
No ano seguinte (1992), a Assembleia Na-
cional modificou a Constituição e considerou
Cuba como sendo um Estado laico, mesmo sem
usar essa expressão (laicidade no conteúdo da lei):
Esta Constitución proclamada el 24 de febre-
ro de 1976, contiene las reformas aprobadas
por la Asamblea Nacional del Poder Popular
en el XI Período Ordinario de Sesiones de la
III Legislatura celebrada los días 10, 11 y 12
de julio de 1992.
Artículo 8° - El Estado reconoce, respeta y
garantiza la libertad religiosa. En la Repúbli-
ca de Cuba, las instituciones religiosas están
separadas del Estado. Las distintas creencias y
religiones gozan de igual consideración.
Artículo 55° - El Estado, que reconoce, res-
peta y garantiza la libertad de conciencia y
de religión, reconoce, respeta y garantiza a la
vez la libertad de cada ciudadano de cambiar
de creencias religiosas o no tener ninguna, y
a profesar, dentro del respeto a la ley, el culto
religioso de su preferencia
3
(CUBA, 1992).
3 Constitución de la República de Cuba (1992). Disponível em:
http://www.cuba.cu/gobierno/cuba.htm. Acesso em: 30/10/2017.
Questionado por um jornalista sobre
essa passagem, em Cuba, da confessionalida-
de (ateísmo) de partido e Estado à laicidade, o
teólogo brasileiro Leonardo Boff explicou que
O mérito desse trabalho é de Frei Betto. O que
de fato mudou a situação foi o livro dele [do
Frei Betto] Fidel e a religião [1985]. O livro
vendeu um milhão de exemplares em Cuba.
Agora saiu uma nova edição, outra vez com
uma tiragem de um milhão de exemplares.
Então, o povo percebeu que não há contra-
dição entre cristianismo e socialismo. A partir
disso, Fidel aceitou e convidou o papa João
Paulo 2º, depois o papa Bento 16, e agora o
papa Francisco, duas vezes (BOFF, 2016).
Portanto, no meio do caminho tinha um
livro, que quebrou a pedra exógena do ateísmo
de Estado. Entre o encontro na biblioteca de
Sérgio Ramirez, em 1980, e as mudanças em
relação às conexões entre socialismo e religião
ocorridas em Cuba em 1991 e 1992, está Fidel
e a Religião (BETTO, 1986b).
Fidel e a Religião: um caso de
literatura militante
Frei Betto pisou em Cuba pela primeira vez
em setembro de 1981, integrando a delegação
brasileira do Iº Encontro de Intelectuais pela So-
berania dos Povos de nossa América. Entre se-
tembro de 1981 até o início das entrevistas com
Fidel, em 1985, o religioso brasileiro retornou
várias vezes à ilha. A proposta de entrevistar Fidel
com o objetivo de fazer um livro sobre religião
foi-lhe feita em fevereiro de 1985 - Betto fora
convidado como jurado do prêmio literário da
Casa de las Americas - durante um jantar com
Fidel, que aceitou, marcando as entrevistas para
maio do mesmo ano (SYDOW; FREIRE, 2016).
O brasileiro traduziu pessoalmente o con-
teúdo de 23 horas de diálogo que ocorreram
de 23 a 28 maio de 1985. Foi a primeira vez
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que Fidel deu entrevistas especificamente sobre
o tema religião, o que foi possível porque Fi-
del andava já percebendo as mudanças de lugar
político de algumas ideologias confessionais no
terreno da luta de classes latino-americana. An-
tes da Nicarágua, de fato, havia dialogado com
sacerdotes chilenos socialistas em novembro de
1971. Tratara sobre o tema religião também na
Jamaica, em outubro de 1977, dessa vez com
cristãos majoritariamente protestantes (SY-
DOW; FREIRE, 2016).
Fidel e a Religião: conversas com Frei Bet-
to, foi lançado no Brasil na primeira semana de
outubro de 1985, alcançando várias edições em
poucos meses. Em Cuba, a primeira edição ul-
trapassou os 360 mil exemplares. A obra chegou
às livrarias de Havana no dia 02 de dezembro de
1985, esgotando-se em apenas duas horas. Em
Pinar del Rio, Matanzas e Isla de la Juventud,
os livros chegaram no dia 04 de dezembro. Em
Villa Clara, Cienfuegos, Sancti Spiritus, Ciego
de Avila e Camagüey, no dia 06. Em Santiago
de Cuba, Las Tunas, Holguín, Granma e Guan-
tánamo, no dia 09 (SYDOW; FREIRE, 2016).
Fidel e a Religião foi um dos maiores fenô-
menos da história editorial cubana:
Muitas pessoas em Cuba deixaram de ir ao
trabalho para conseguir comprar um exem-
plar, porque os estoques se esgotavam logo
que chegavam às livrarias. Quem deixava para
adquirir no final do dia já não encontrava o
livro disponível. Chegou ao ponto de o Mi-
nistério da Cultura proibir a venda de mais
de um exemplar por pessoa, para impedir que
se criasse um mercado clandestino. A polícia
teve que ir a algumas livrarias porque o pú-
blico amotinado quebrava vitrines. Quem es-
tava nas filas para comprar dizia coisas como
sou religiosa e estou certa que nele Fidel dis-
se coisas de grande valor”, “encontraremos no
livro materiais muito esclarecedores” ou “será
uma fonte singular de ensino para o povo”.
Hoje (2016), a tiragem cubana da obra – tra-
duzida em 32 países e 20 idiomas – passa de
1,3 milhão de exemplares (SYDOW; FREI-
RE, 2016, p. 16).
Só o fato de um líder socialista internacio-
nal como Fidel Castro tratar sobre o tema reli-
gião com seriedade, considerando-o relevante,
e tendo como interlocutor um intelectual ao
mesmo tempo crente e socialista, já represen-
tava em si um fato subversivo, pela contestação
do ateísmo socialista, considerado “normal”
nos círculos leninistas.
O livro, portanto, em si provocador, ao ser
lido perturbava os setores “confessionalistas
do socialismo internacional também por seu
conteúdo. Nele, Fidel (apud BETTO, 1986b,
p. 19) elogiou os cristãos revolucionários e cri-
ticou os marxistas que adotavam o sectarismo
em suas relações com os crentes revolucioná-
rios: “Há muitos marxistas que são doutri-
nários. E acredito que ser doutrinário neste
problema dificulta esta questão”. Fidel (apud
BETTO, 1986b, p. 332) afirmou também que
a frase “a religião é o ópio do povo”, que pode
ter sido “justa num determinado momento” e
valer ainda em algumas circunstâncias,
de nenhum modo tem ou pode ter o caráter de
dogma ou de verdade absoluta. É uma verdade
ajustada a determinadas condições históricas
concretas. Creio que é absolutamente dialético
e marxista tirar esta conclusão. Em minha opi-
nião, a religião, sob a ótica política, não é em
si mesma ópio ou remédio milagroso. Pode
ser ópio ou maravilhoso remédio na medida
em que sirva para defender os opressores e os
exploradores ou os oprimidos e os explorados.
As reflexões abertas de Fidel sobre a religião
foram rejeitadas tanto por católicos reacionários
quanto por marxistas “ortodoxos”. Bem acolhi-
do em Cuba, o livro, de fato, foi censurado em
países do socialismo real que adotaram o ateís-
mo de Estado e partido dos velhos manuais pro-
duzidos e exportados pelo socialismo soviético.
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Com a sua publicação, porém, Betto fi-
cou mais conhecido internacionalmente, tor-
nando-se uma espécie de símbolo vivo da pos-
sibilidade de relações críticas e construtivas
entre marxismo, socialismo e religião. Assim,
aumentaram os convites para visitas em países
socialistas, para onde se dirigia sozinho ou em
delegações com outros pesquisadores-militan-
tes do movimento da Teologia da Libertação.
Dessa forma, quando chegava, sua presença já
possuía o significado paradigmático citado, que
Betto utilizava para promover abertura à liber-
dade religiosa, propondo direta e indiretamen-
te o reconhecimento da laicidade do socialismo
como forma de se efetivar a liberdade coletiva
de credo ou não-credo nesses Estados socialis-
tas confessionais (ateísmo de Estado).
Repercussão internacional de
Fidel e a Religião
Quando de sua viagem a Moscou, em
maio de 1986, Frei Betto (2015, p. 183) en-
controu-se com Konstantin Khartchev, e dis-
parou: “Não considero positivo o conteúdo
dos manuais soviéticos de marxismo exporta-
dos para a América Latina. São dogmáticos e
tratam a questão religiosa de modo simplista e
preconceituoso”.
Na então Tchecoslováquia, onde Betto es-
teve em junho de 1988, o Partido Comunista
não autorizou uma edição em tcheco de Fidel e
a religião. Só mesmo em inglês. Alegaram que o
livro ‘é muito cubano’ e haveria o risco de que-
rerem aplicá-lo ali...” (BETTO, 2015, p. 300).
Todavia, também na Tchecoslováquia, no dia
26 de maio de 1989, monsenhor Liska (apud
BETTO, 2015, p. 375), bispo auxiliar de Pra-
ga, revelou a Frei Betto: “Graças ao seu livro
utilizei, junto ao governo tcheco, argumentos
de Fidel Castro favoráveis ao trabalho das reli-
giosas em Cuba. Assim, conseguimos tirá-las da
clandestinidade. Agora só faltam os religiosos”.
Nesse mesmo dia, Betto encontrou-se com
Cinolder e Mracan, membros do Comitê Cen-
tral do Partido Comunista, com quem debateu
o direito à liberdade religiosa. Queria saber
também por que não permitiram a publicação
integral de Fidel e a religião na Tchecoslováquia.
“Nossos filósofos acham que a posição de Fidel
diante da religião pode causar dúvidas na cabeça
de nossos militantes”, responderam (BETTO,
2015, p. 376). Na noite desse mesmo dia, Frei
Betto autografou a versão resumida de Fidel e a
religião, com o título também modificado, ou
seja, com censura no conteúdo e na forma: Ca-
minhar ao lado dos pobres (Na strasse chudych).
Além disso, a obra de Betto e Fidel, editada por
um organismo ecumênico, “não foi vendida ao
público, apenas distribuída gratuitamente nos
círculos religiosos” (BETTO, 2015, p. 377).
Na Alemanha Oriental o título do livro
também foi modificado: Frei Betto: conversações
noturnas. Censuraram o nome de Fidel Castro
na capa, pois poderia gerar “confusão” (SY-
DOW; FREIRE, 2016, p. 277).
Betto, com outros brasileiros, esteve tam-
bém na República Popular da China, em ou-
tubro de 1988. Na cidade de Pequim, em diá-
logo com Madame Chao Jinru, vice-presidente
da Comissão de Assuntos Religiosos, o teólogo
brasileiro Clodovis Boff a interrogou sobre as re-
lações entre ateísmo e marxismo, e sua resposta
foi a seguinte: “Nosso pensamento fundamen-
tal é o materialismo histórico e o materialismo
dialético. Esta é a nossa referência de base. Se
utilizamos o materialismo dialético, somos, por-
tanto, ateus. (...) Como marxistas, somos ateus,
mas não podemos exigir que toda a população
também o seja” (apud BETTO, 2015, p. 314).
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Frei Betto a contestou citando a carta de
Marx a Bolte onde ele critica a proposição de
Bakunin de impor “o ateísmo como dogma
obrigatório para os membros da Internacional
(MARX, 1871). O religioso sustentou que o
conflito com a religião deveria ser interpretado de
um ponto de vista histórico-político e não como
uma questão de princípio. Sua tentativa, porém,
foi rejeitada: “Cremos no marxismo e somos ma-
terialistas; portanto, ateus”, sintetizou Chao Jin-
ru (apud BETTO, 2015, p. 315). A laicidade do
materialismo do marxismo não estava contida no
seu leque de possibilidades hermenêuticas.
Em Hankou, no dia 16 de outubro de
1988, encontraram-se com Wang Chu Jie,
presidente do Birô de Assuntos Religiosos de
toda a província de Hubei, que sustentou a tese
da confessionalidade da dialética: “Nós, como
militantes do Partido Comunista, somos ateus,
devido ao materialismo dialético” (apud BET-
TO, 2015, p. 330). E ainda: “A única coisa que
diferencia um militante do Partido e um cristão
é a fé. Temos fés diferentes. Cremos no mate-
rialismo ateu e, vocês, em Jesus Cristo” (apud
BETTO, 2015, p. 330).
Em Xangai, os brasileiros encontraram-se
com o vice-presidente do Birô de Assuntos Re-
ligiosos, Senhor Albert. “Funcionários do Birô
de Assuntos Religiosos nos disseram que a reli-
gião vai desaparecer. Vocês dizem que ela deve
contribuir para o progresso do país. Deve-se
trabalhar para o desaparecimento da religião?”,
perguntou-lhe Frei Betto (BETTO, 2015,
p.338). “Nós, materialistas dialéticos, afirma-
mos que há leis objetivas na natureza e na his-
tória. Tudo nasce, cresce, declina e desaparece”,
respondeu-lhe o vice-presidente do Birô chinês
de Xangai (apud BETTO, 2015, p. 338).
Betto (2015, p.338) continuou questio-
nando-lhe: “E o marxismo, enquanto fenôme-
no objetivo, também desaparecerá?”. Senhor
Albert respondeu que sim, pois “todos os fenô-
menos objetivos estão sujeitos ao ciclo de nasci-
mento e morte, inclusive o Partido Comunista
e o país” (apud BETTO, 2015, p.338).
Betto (2015, p.338) pisou no pedal da
provocação com uma última pergunta: “A lei
da objetividade também é um fenômeno ob-
jetivo. Ela também desaparecerá?”. Acuado, o
vice-presidente do Birô de Assuntos Religiosos
pediu calma: “Sejamos pacientes e aguardemos
o tempo...” (apud BETTO, 2015, p.338).
A China, portanto, acolheu Betto, mas
não sua crítica da confessionalização do mar-
xismo e socialismo. Na América Latina, porém,
estava sendo diferente.
Em janeiro de 1989, nos festejos do 30°
aniversário da Revolução Cubana, Betto abriu
uma mesa-redonda na Escola Superior do Par-
tido, em Havana, analisando as relações entre
cristianismo e marxismo, Igreja e Estado nos
países socialistas. Na plateia, dezenas de diri-
gentes políticos cubanos e latino-americanos.
Rigoberto Padilla (apud BETTO, 2015,
p. 347), secretário-geral do Partido Comunista
de Honduras, interveio:
Meu primeiro impacto com os cristãos veio
da leitura do documento episcopal de Me-
dellín e do testemunho de sacerdotes que de-
ram a vida pelo povo. Antes, ficava-se discu-
tindo se haveria ou não glória eterna, quando
se deveria discutir é se há ou não injustiça ter-
rena e como combatê-la. Considero um ab-
surdo que, no passado, meu partido exigisse
que seus militantes renunciassem à fé, provo-
cando profundos traumas psicológicos. Hoje,
em Honduras, estão unidos os comunistas, os
católicos e os luteranos. A entrevista de Fidel
Castro sobre a religião foi amplamente difun-
dida em meu país. A meu ver, não há contra-
dição entre religião e revolução.
Nesse mesmo evento, Alvaro Monteiro
(apud BETTO, 2015, p. 347), secretário-geral
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do Partido Socialista da Costa Rica, destacou
que “devemos falar de ‘revolucionários’ e não
de ‘cristãos e marxistas’. Ingressar num partido
marxista não torna ninguém revolucionário, a
não ser como ato de fé. São as atitudes concre-
tas que forjam um revolucionário”.
Ainda em janeiro de 1989, em Cuba, Frei
Betto ouviu de Carlos Aldana (apud BETTO,
2015, p. 364), então responsável pelas esferas
ideológica e cultural do Secretariado do Comi-
tê Central do Partido Comunista:
O Partido tem, hoje (1989), cerca de 500 mil
militantes e 600 mil na Juventude Comunista.
Reconhecemos que há um vazio na elabora-
ção teórica. Domingo passado, Fidel disse que
é preciso acabar com o ensino dogmático do
marxismo. Sabemos que as escolas do Partido
são incipientes e, por isso, estamos revendo seus
textos e métodos. Basta dizer que passamos dez
anos sem estudar a história de Cuba como ma-
téria específica! Era parte da história geral.
Em dezembro de 1991, novamente em
Havana, Betto dialogou com Carneado, do
Comitê Central, sobre as mudanças ocorridas
no outubro anterior no partido comunista e
sobre a iminente reforma da Constituição com
a proposta, que depois se confirmou, de des-
confessionalizar também o Estado cubano. Co-
mentaram que, depois da sua desconfessionali-
zação, alguns membros do partido comunista
passaram a manifestar publicamente sua fé cris-
tã, e cristãos ingressavam no partido. Carneado
(apud BETTO, 2015, p. 424) destacou que
foram tempos difíceis quando o ateísmo era
dogma de partido, mas que “muitos que foram
afastados do Partido, por terem se casado na
Igreja, ou batizado um filho, agora reingressam
em nossas fileiras”. Sobre isso, Frei Betto (BE-
TTO, 2015, p. 424) fez a seguinte anotação:
Pareceu-me que Carneado mostrava-se sen-
sível à dificuldade de os setores cristãos da
Ilha aceitarem Lênin, visto como inspirador
do modelo autoritário de partido único e do
ateísmo como critério de firmeza ideológica.
Para Frei Betto (BETTO, 2015, p. 454-
455), “a Revolução Cubana, ao contrário da
russa, não se fez contra a religião”, mas “o apoio
do Kremlin teve seu preço ideológico: Estado e
Partido Comunista declararam-se oficialmente
ateus; os currículos escolares incluíram a dis-
ciplina ‘ateísmo científico’”. A seu aviso, “a
abertura da Revolução ao fenômeno religioso
deu-se graças à Revolução Sandinista e ao des-
moronamento do socialismo europeu” (BET-
TO, 2015, p. 455). Dessa forma, para ele, “a
queda do Muro de Berlim contribuiu para des-
dogmatizar princípios fundamentais do mar-
xismo vulgar” (BETTO, 2015, p. 455). Não
representou, portanto, o fim do marxismo, mas
libertação e recomeço.
Papas em Cuba: depois do frei
chegaram os papas
Em janeiro de 1998, durante sua visita à
ilha, o papa João Paulo II “evitou extremos: nem
condenou nem canonizou a Revolução”, decep-
cionando os anticastristas de Miami e deixando
Fidel aliviado, dado que se tratava de uma visita
de alto risco (BETTO, 2015, p. 456-458).
Na reunião de avaliação da visita do papa
feita por Fidel, na qual Betto também se encon-
trava, no final de janeiro de 1998, o revolucio-
nário cubano destacou que o país ganhara um
expressivo aliado contra o bloqueio dos EUA a
Cuba”, que o papa polonês classificou como “in-
justo e eticamente inaceitável” (BETTO, 2015,
p. 458). Fidel surpreendeu-se com a crítica do
pontífice ao “capitalismo neoliberal” e ficou
agradecido “pelo modo respeitoso como o papa
tratou o povo cubano” (BETTO, 2015, p. 458).
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Anos depois, em março de 2012, Betto
encontrava-se em Havana para acompanhar
também a visita de Bento XVI quando tomou
conhecimento que Ratzinger dissera, na entre-
vista que concedera aos jornalistas no voo que
o levava à Ilha, que o marxismo “já não é mais
útil” (BETTO, 2015, p. 506).
Em sua resposta, Frei Betto (2015, p. 506-
507) lembrou que a casa de Ratzinger também
tem telhado de vidro:
Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não é mais
útil, porque já não se justifica enviar mulheres ti-
das como bruxas à fogueira nem torturar suspei-
tos de heresia. Ora, felizmente o catolicismo não
pode ser identificado com a Inquisição, nem
com a pedofilia de padres e bispos. Do mes-
mo modo, o marxismo não se confunde com
os marxistas que o utilizaram para disseminar o
medo, o terror, e sufocar a liberdade religiosa.
Há que voltar a Marx para saber o que é marxis-
mo; assim como há que retornar aos Evangelhos
e Jesus para saber o que é cristianismo, e a Fran-
cisco de Assis para saber o que é catolicismo.
Para o religioso brasileiro, o que “já não
é útil” é o capitalismo, um sistema “intrinse-
camente perverso” (BETTO, 2015, p. 507),
com o qual “a Igreja Católica muitas vezes é
conivente”, “porque este a cobre de privilégios
e lhe franqueia uma liberdade que é negada,
pela pobreza, a milhões de seres humanos
(BETTO, 2015, p. 508).
Ao contrário, para Betto (BETTO, 2015,
p. 508),
o marxismo, ao analisar as contradições e
insuficiências do capitalismo, nos abre uma
porta de esperança a uma sociedade que os
católicos, na celebração eucarística, caracte-
rizam como o mundo em que todos haverão
de “partilhar os bens da Terra e os frutos do
trabalho humano”. A isso Marx chamou de
socialismo.
E concluiu essas suas anotações ao comen-
tário de Bento XVI citando o livro O capital
– um legado a favor da humanidade, do arcebis-
po católico de Munique, Reinhard Marx, no-
meado Cardeal por Bento XVI em 2010. Por
ocasião do lançamento desse livro, em 2011,
o cardeal alemão, que chamou Karl Marx de
querido homônimo”, destacou que “Marx não
está morto e é preciso levá-lo a sério”: “Há que
se confrontar com a obra de Karl Marx, que
nos ajuda a entender as teorias da acumulação
capitalista e o mercantilismo. Isso não significa
deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades
cometidas em seu nome no século XX” (apud
BETTO, 2015, p. 508).
Em suma, uma coisa é a obra de Marx,
cujo livro O Capital, segundo o cardeal alemão
é um legado a favor da humanidade, outra, dife-
rente, o uso dela pelo seu vasto, heterogêneo e
contraditório fã clube internacional.
Posteriormente, em setembro de 2015,
quem visitará Cuba será um papa argentino,
com uma avaliação do capitalismo diferen-
te da que sustentou o reformismo dos pa-
pas anteriores. No seu encontro com Fidel
Castro, em sua casa, no dia 20 de setembro
de 2015, Papa Francisco recebeu das mãos
do revolucionário cubano, de presente, o li-
vro subversivo de Frei Betto e Fidel Castro
sobre religião.
Segundo o então porta-voz do Vaticano,
padre Federico Lombardi (2015), o revolucio-
nário cubano escreveu na dedicatória de Fidel
e a Religião: “Para o papa Francisco em ocasião
de sua visita a Cuba, com a admiração e o res-
peito de todo o povo cubano”.
Fidel e a Religião entrou assim no Vatica-
no, na bagagem de um papa, como presente
de um revolucionário cubano. Se Francisco o
leu, não sabemos, mas, de fato, emerge que há
certa sintonia política entre o frei brasileiro e o
papa argentino.
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Um aliado inesperado
Entre João Paulo II, Bento XVI e Papa Fran-
cisco há solução de continuidade e, também, re-
lativa diversidade. O âmbito de atuação e refle-
xão dos papas é muito amplo e em tal situação
de complexidade e amplitude existe continui-
dade (tradição) e modificações hermenêuticas e
de atuação vinculadas às mudanças históricas e
alterações hermenêuticas em relação a tais trans-
formações contextuais. No caso do Papa Francis-
co, a questão ambiental, o risco vital-ambiental
produzido pela lógica do lucro a qualquer custo
fez com que a crítica ao capitalismo sem freios
(effrenus), já presente no pensamento de João
Paulo II e Bento XVI, se tornasse mais radical,
gerando, indiretamente, uma aproximação em
relação ao pensamento crítico de Frei Betto em
relação ao capitalismo. Papa Francisco não nega
a importância das reformas sociais, mas vai mais
além do reformismo, propondo uma posição
reformadora radical em relação à hegemonia
do lucro. Ele manifestou sua posição crítica em
relação ao capitalismo internacional sobretudo
nos seus três encontros com os movimentos po-
pulares internacionais, dois deles realizados em
Roma (2014 e 2016), e um na Bolívia (2015).
Para Francisco, de fato, é preciso “lutar con-
tra as causas estruturais da pobreza”, “fazer face
aos efeitos destruidores do império do dinheiro
(PAPA FRANCISCO, 2014, p. 2). A seu aviso,
há um elo invisível que une cada uma das
exclusões. Não se encontram isoladas, estão
unidas por um fio invisível. Conseguimos nós
reconhecê-lo? É que não se trata de questões
isoladas. Pergunto-me se somos capazes de re-
conhecer que estas realidades destrutivas cor-
respondem a um sistema que se tornou global.
Reconhecemos nós que este sistema impôs a
lógica do lucro a todo custo, sem pensar na
exclusão social nem na destruição da nature-
za? (PAPA FRANCISCO, 2015c, p. 2)
A dramaticidade da exclusão e destruição
do “solo, água, ar e todos os seres da criação
(PAPA FRANCISCO, 2015c, p. 2) indica que
o sistema precisa ser urgentemente transforma-
do caso se queira evitar o apocalipse ambiental:
Digamo-lo sem medo: Queremos uma mu-
dança, uma mudança real, uma mudança de
estruturas. Este sistema é insuportável: não o
suportam os camponeses, não o suportam os
trabalhadores, não o suportam as comunida-
des, não o suportam os povos... E nem sequer
o suporta a terra, a irmã Mãe Terra, como
dizia São Francisco (PAPA FRANCISCO,
2015c, p. 02).
Para ele o capitalismo precisa ser freado
também pelo risco de colapso do planeta, pela
destruição da terra, do ar e da água, o que re-
presentaria a possibilidade de uma espécie de
apocalipse ambiental.
Em suma, para Francisco (2015c, p. 03),
Quando o capital se torna um ídolo e dirige
as opções dos seres humanos, quando a avidez
de dinheiro domina todo o sistema socioeco-
nômico, arruína a sociedade, condena o ser
humano, transforma-o em escravo, destrói
a fraternidade inter-humana, faz lutar povo
contra povo e, até, como vemos, põe em risco
esta nossa casa comum, a irmã e mãe terra.
Ainda em 2015 ele destacou que
a causa principal da pobreza é um sistema
econômico que deslocou a pessoa do centro e
ali colocou o deus dinheiro; um sistema eco-
nômico que exclui, exclui sempre: exclui as
crianças, os idosos, os jovens, sem trabalho...
e que cria a cultura do descarte em que vive-
mos (PAPA FRANCISCO, 2015a).
Francisco, portanto, radicaliza a já tra-
dicional crítica feita pela Doutrina Social
da Igreja Católica ao capitalismo sem freios
sociais. Abre um capítulo diferente, mais an-
tissistêmico na Doutrina Social da Igreja mas
sempre na relação de continuidade e inovação
que a tipifica.
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Sobre Francisco, Frei Betto (2016) de-
clarou, em setembro de 2016, na Itália, onde
encontrava-se para o Festival Internacional de
Literatura de Mântua, que
em mais de 70 anos eu não tinha visto um
milagre na Igreja, desde a eleição do Papa
João XXIII. Eu pensava que algo assim nun-
ca mais voltaria a acontecer. E outro milagre
aconteceu: a eleição de Bergoglio, o Papa
Francisco.
Para o brasileiro, “Francisco é, efetivamen-
te, o primeiro Papa que fala das causas das injus-
tiças no mundo” (BETTO, 2016). Papas ante-
riores criticaram os efeitos do capitalismo, mas
Francisco vai além, aponta as causas. Nenhum
Papa havia feito isso antes. Em sua encíclica
Laudato Si ele aponta que a desigualdade
vem de um sistema que tem o capital como
prioridade e não os direitos humanos. Disse
que o problema ecológico não pode ser visto
sem levar em conta o aspecto social, porque
o desequilíbrio ambiental afeta, sobretudo, os
mais pobres (Ibidem).
Conclusão
Neste artigo apresentamos a contestação
da associação entre socialismo e ateísmo por
Frei Betto em sua militância internacional (po-
lítica e literária) em prol da superação de tal
aproximação. É verdade que o pensamento de
Betto está associado ao contexto do pensamento
mais amplo do movimento da Teologia da
Libertação, mas é verdade, também, a nosso
aviso, que em Betto a rejeição da confessiona-
lidade (ateísmo) do socialismo se manifesta de
uma forma peculiar que não emerge na produ-
ção literária de outros autores desse movimento
internacional, nem com as mesmas característi-
cas prático-teóricas típicas do pensamento po-
lítico do brasileiro Betto.
Se, de um lado, a ação do religioso brasi-
leiro conseguiu obter êxito em Cuba, onde de
fato houve a troca do confessionalismo (ateís-
mo) de Estado pela laicidade, a permeabilidade
que ocorreu em Cuba não se verificou, como
vimos, em outras partes do mundo socialista.
Todavia, para além dos resultados históricos
positivos ou menos exitosos, a atuação e pen-
samento de Betto restam como paradigma po-
lítico de um socialismo pós-ateísta, laico. Betto
propõe assim, direta e indiretamente, a liber-
tação epistemológica e política do socialismo e
marxismo internacionais das amarras da con-
fessionalidade redutiva do ateísmo.
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