10 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.17 n.1, p.10 - 18, mai. 2020
Tendências e desafios da Política Externa
de Bolsonaro: resgate do choque das
civilizações, declínio da ordem liberal e
rupturas internas
Trends and challeges of Bolsonaros Foreign Policy: rescuing the clash of civilizations, the
decline of the liberal order and internal disruptions
Tendencias y desafíos de la política exterior de Bolsonaro: rescate del choque de civiliza-
ciones, declive del orden liberal e rupturas internas
Klei P. Medeiros
1
Vinícius H. Vilas Boas
2
Enrico M. Andrade
3
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2020v17n1p10
Recebido em: 15 de junho de 2019
Aprovado em: 06 de outubro de 2019
Resumo:
Aqui propomos que o olhar externo de Bolsonaro, do chanceler e do incipiente movimento
conservador brasileiro encontram eco em abordagens como a do “choque das civilizações”,
de Huntington - que parece estar sendo resgatada e adaptada ao contexto da década de
2010. Isso soma-se à uma desconfiança da ordem liberal global e a tentativas de transfor-
mar o ethos e o funcionamento tradicional do Itamaraty.
Palavras-chave: Política Externa de Bolsonaro. Choque das Civilizações. Ordem liberal global.
Abstract:
Here we propose that the external view of Bolsonaro, the chancellor and the incipient
Brazilian conservative movement is echoed in approaches such as Huntington’s “clash of
civilizations” - which seems to be being rescued and adapted to the context of the 2010s.
Added to this, there is a distrust of the global liberal order and attempts to transform the
ethos and traditional functioning of the Ministry of Foreign Affairs.
Keywords: Bolsonaro Foreign Policy. Clash of Civilizations. Global liberal order.
1 Professor de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), doutorando no Pro-
grama de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp-Unicamp-PUC-SP) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Poços de Caldas, Minas Gerais, Brasil. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-0241-7742
2 Pesquisador do Grupo de Pesquisa das Potências Médias (GPPM-PUC-Minas), bolsista do Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIP-
-PUC-Minas) e graduando em Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Poços
de Caldas, Minas Gerais, Brasil. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-4203-5546
3 Pesquisador do Grupo de Pesquisa das Potências Médias (GPPM-PUC-Minas), bolsista do Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIP-
-PUC-Minas) e graduando em Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Poços
de Caldas, Minas Gerais, Brasil. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-1988-3398
Artigo
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Introdução
As primeiras medidas do Governo Bolso-
naro no âmbito externo, como a viagem à Is-
rael e aos Estados Unidos (EUA), bem como
as mudanças no Itamaraty, levaram a uma dis-
cussão entre acadêmicos e policymakers a respei-
to da visão de mundo dos atuais formuladores
da política exterior brasileira. Portanto, aqui
se investiga a lógica por trás do pensamento
conservador brasileiro como vinculada a uma
ressignificação do “choque das civilizações” no
pós-Guerra Fria, somado à recente discussão a
respeito do suposto declínio da ordem interna-
cional liberal. Ao mesmo tempo, as primeiras
ações do governo Bolsonaro demonstram uma
ruptura interna no pragmatismo e na racio-
nalidade-burocrática, típicos da diplomacia
brasileira e, consequentemente, um desafio no
sentido de conferir coerência aos receptores in-
ternacionais e internos de tal política nos pró-
ximos anos.
Neste artigo, não defendemos que a abor-
dagem do “choque das civilizações” é de fato
uma boa fonte de explicação para as relações
internacionais atuais, mas sim que é uma
perspectiva que explica como o incipiente
movimento conservador brasileiro enxerga o
mundo. Incubada ao longo dos anos 2000, a
explicação culturalista, religiosa e civilizacional
é resgatada aos fins da década de 2010. Sua res-
significação e interpretação por parte dos to-
madores de decisão brasileiros são apresentadas
aqui como estreitamente vinculadas ao debate
recente sobre o fracasso da ordem liberal. Esta é
acusada de não ter sido capaz de conter a mul-
tipolarização e a diversificação de um mundo
cada vez menos ocidental.
O conservadorismo dos anos
2010 e a ressignificação do
choque das civilizações como
interpretação do desafio
multipolar
O mundo pós-Guerra Fria é marcado por
uma tendência à multipolaridade sistêmica e a
um questionamento da unipolaridade estadu-
nidense. No nível da ordem internacional, se
ao fim da Guerra Fria interpretava-se o mo-
mento como o “fim da história” e o triunfo
do liberalismo internacional (FUKUYAMA,
1992), outras interpretações sugeriram mudan-
ças identitárias e simbólicas, que direcionam a
política global a uma reconfiguração conflitiva
baseada em parâmetros culturais. Essa segunda
interpretação, concebida por Samuel Hunting-
ton (1996), embora inicialmente concernente
ao contexto dos anos 1990, permite compreen-
der uma série de processos que se intensificam
na segunda metade dos anos 2010.
Segundo Huntington (1996), no pós-
-Guerra Fria, o mundo é tanto multipolar
quanto “multicivilizacional”. Neste contexto,
Resumen:
Proponemos aquí que la mirada externa de Bolsonaro, del canciller y del incipiente mo-
vimiento conservador brasileño se hace eco en enfoques como el del “choque de civilizacio-
nes”, de Huntington, que parece estar siendo rescatado y adaptado al contexto de los años
2010. A esto se agrega una desconfianza en el orden liberal global e intentos de transfor-
mar el ethos y el funcionamiento tradicional del Ministerio de Relaciones Exteriores.
Palabras clave: Política Exterior de Bolsonaro; Choque de civilizaciones; Orden liberal global.
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a política local se torna étnica e a política glo-
bal se torna civilizacional, de modo que as dis-
tinções mais importantes entre as pessoas são
culturais, tornando a cultura uma força tanto
divisível quanto unificadora. As forças de inte-
gração no mundo geraram “contraforças” cul-
turais e consciência civilizacional, incitando a
produção de inimigos para reforçar diferenças
identitárias, que crescem conforme a religião
é revitalizada e relacionada a pautas políticas
(HUNTINGTON, 1996).
Nos anos 1990 e 2000, a ideia de choque
das civilizações se atrelava à cisão entre a civili-
zação árabe-muçulmana e o mundo ocidental,
sobretudo com a ascensão da temática do terro-
rismo e sua associação com a comunidade mu-
çulmana. Na década de 2010, verifica-se, por
parte do movimento conservador, um olhar
mais atento e desconfiado sobre a ascensão chi-
nesa e a sua conexão com a Rússia como amea-
ças ao mundo ocidental. Por outro lado, estu-
dos sobre “mundo pós-ocidental’ (ACHARYA;
BUZAN, 2009; KUPCHAN, 2012; STUEN-
KEL, 2016) se difundiram, em meio a uma
crescente ascensão geoeconômica da Ásia e a
uma disputa global pelo controle geopolítico
sobre o Oriente Médio como área estratégica
entre Europa, Rússia e China.
Mesmo que o movimento conservador
tenha uma longa trajetória interna em alguns
países, como nos Estados Unidos, o descon-
tentamento com a crise econômica, após 2008,
parece ter reforçado o movimento no sentido
de culpar o “estrangeiro” e o mundo oriental
por problemas que derivam, muitas vezes, de
falhas governamentais internas. Esse processo
interno envolve uma desconfiança da democra-
cia em geral (CASTELLS, 2018), por um lado,
e uma tentativa de inserir na política externa
uma forma de ação que garanta a preservação
da cultura judaico-cristã e um enfrentamento
mais incisivo em relação às diversas civilizações
orientais, por outro. Se a globalização era vista
como benéfica aos EUA e à Europa nos anos
1990, ao proporcionar difusão econômica e
de soft power cultural para todas as regiões do
globo, agora o movimento é inverso: a globa-
lização e a abertura são vistas como ameaças
aos seus antigos defensores, seja pela ascensão
econômica de regiões periféricas e semi-perifé-
ricas, seja por proporcionar maior facilidade de
influência de civilizações antes invisíveis.
Desse modo, a homogeneidade promovi-
da pela globalização neoliberal nos anos 1990
passou a ser vista como culpada na década de
2010. A ascensão da extrema-direita em paí-
ses como a Itália, Hungria, Polônia, Brasil e,
mesmo nos Estados Unidos, tem explicito ca-
ráter cultural, uma vez que a defesa de “valores
ocidentais” é discurso presente na retórica de
líderes destes Estados. Interessante é notar que,
segundo a definição de Huntington (1996),
a civilização ocidental é composta apenas por
Estados Unidos e Europa Ocidental, o que ex-
clui o Brasil do grupo. Ainda assim, a defesa do
Ocidente e da sociedade judaico-cristã é discur-
so recorrente na nova política externa brasileira.
Mas por que no Brasil essa discussão é só
recuperada agora? Ao longo do século XX, o
país evitou envolver-se nas disputas entre gran-
des e superpotências; mas, em momentos deci-
sivos e, como um todo, esteve sempre atrelado
à órbita de influência norte-americana e euro-
peia. Com as políticas de Cooperação Sul-Sul
e a aproximação com China, Índia e Rússia,
sobretudo no âmbito dos BRICS, na década de
2000 e 2010, o movimento conservador brasi-
leiro passou a enxergar a ascensão do Oriente
como parte de um mesmo processo globali-
zante vinculado à permissividade com que a
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estratégia liberal norte-americana concebeu o
mundo no início do Pós-Guerra Fria. Portan-
to, os policy-makers atuais no Brasil vinculam a
ascensão de novas regiões e civilizações, típicos
da tendência multipolar, às falhas da lógica da
ordem liberal concebida nos anos 1990.
O declínio da ordem
internacional liberal visto
como esperança para reerguer
o Ocidente
A ideia de ordem liberal considera a pos-
sibilidade de interdependência e múltiplas in-
fluências culturais e civilizacionais. Portanto,
passou a ser associada, por movimentos conser-
vadores, ao declínio do Ocidente. Ordem é uma
amálgama de instituições internacionais que
ajudam na governança das interações entre os
Estados que fazem parte dela. No caso específico
da ordem internacional liberal, essas instituições
são pautadas nas regras e valores liberais, como
a promoção do livre comércio, da democracia
liberal, do multilateralismo e da defesa dos di-
reitos humanos (MEARSHEIMER, 2018).
Ikenberry (2018) afirma que essa ordem
está em crise, agravada pela eleição de Trump,
primeiro presidente estadunidense desde a dé-
cada de 1930 que é ativamente hostil à ordem
internacional liberal. Os Estados Unidos, des-
de o fim da bipolaridade, moldava e expandia
a ordem internacional liberal de acordo com
seus interesses. Porém, desde 2017, o princi-
pal patrocinador da ordem não se mostra mais
capaz e disposto a administrá-la. O atual pre-
sidente norte-americano já fez declarações que
vão na contramão do internacionalismo libe-
ral em relação a comércio, multilateralismo,
meio-ambiente, direito internacional, tortura e
direitos humanos (IKENBERRY, 2018). Tam-
bém, nesse contexto, verifica-se o declínio da
democracia liberal, motivado pela desconfian-
ça da população em relação às instituições que
a governam. Essa ruptura entre governantes e
governados leva à deslegitimação da represen-
tação política, que culmina na ascensão de lide-
ranças que se autodeclaram anti-establishment,
fazendo posteriormente a população aceitar
um “autoritarismo soft” (CASTELLS, 2018).
Por conseguinte, o conservadorismo emer-
gente argumenta ter a intenção de proteger o
Ocidente de seu declínio, uma vez que a or-
dem internacional liberal não teria sido capaz
de cumprir essa tarefa: por seu caráter de defesa
dos direitos humanos de maneira mais ampla,
e a pautas mais específicas, como defesa dos di-
reitos dos refugiados e da comunidade LGBT+,
o liberalismo globalizado é culpado pela “crise
moral” que o Ocidente vive. Também o livre-
-comércio e o multilateralismo, outros impor-
tantes princípios da ordem liberal, são respon-
sabilizados pelas crises econômicas e migratórias
da década de 2000 e 2010 (ARAÚJO, 2019).
Visto isso, enquanto o choque das civili-
zações fornece a matriz civilizacional, cultural e
religiosa para o movimento conservador inter-
pretar o mundo atual, a ordem liberal é posta
como prejudicial por estimular o declínio do
Ocidente e permitir a ascensão de novas regiões
e civilizações, mudanças que geralmente são in-
terpretadas no mainstream acadêmico como a
passagem da unipolaridade para a multipola-
ridade - em termos apenas de distribuição de
capacidades. Uma boa parte do mainstream
acadêmico não confere contornos subjetivos e
identitários para essa narrativa sistêmica. A di-
ferença existe, portanto, mais no modo de con-
tar a história e nos métodos imaginados para
conter potências desafiantes, algo já visto no
contexto da Guerra Fria, por exemplo.
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Conservadorismo a la
brasileira: Bolsonaro, as
rupturas no Itamaraty, o
dogmatismo e a moralidade
A administração de Bolsonaro, apesar das
promessas de campanha de uma “desideologiza-
ção” das políticas doméstica e externa
4
, amarra
um discurso conservador, ocidentalista e cris-
tão ao interesse de aproximação com os EUA e
Israel, na esperança de obter ganhos com esses
alinhamentos, bem como conformar um bloco
de resistência à emergência do mundo árabe-
-muçulmano e chinês, vistos como estranhos e
ameaças à verdadeira “alma brasileira”.
Mesmo que tais tendências pudessem ser
imaginadas antes da posse, os primeiros me-
ses de Bolsonaro demonstraram uma série de
rupturas na política externa, embora com uma
tentativa frequente de amenizar tais transfor-
mações. Um dos primeiros marcos para a polí-
tica externa foi o discurso do presidente no Fó-
rum Econômico de Davos. Ali, diante de uma
plateia composta pela elite econômica mundial
e interessados em liberalização, Bolsonaro sua-
vizou seu discurso mais radical, que tradicio-
nalmente é usado para agradar o público bra-
sileiro. Esse fato demonstrou, primeiro, que
não houve um choque do público interessado
em economia e, segundo que, mesmo sendo
conservador, o presidente se propõe a um pro-
jeto neoliberal no nível econômico (EM SEU
4 “Países, que buscaram se aproximar mas foram preteridos
por razões ideológicas, têm muito a oferecer ao Brasil, em
termos de comércio, ciência, tecnologia, inovação, educação
e cultura” (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, 2018).
“O Brasil voltará a ser um país livre de amarras ideológicas
[...] Precisamos criar um círculo virtuoso para a economia
que traga a confiança necessária para permitir abrir nossos
mercados para o comércio internacional, estimulando a
competição, a produtividade e a eficácia, sem o viés ideoló-
gico” (BOLSONARO, 2019).
DISCURSO..., 2019). Talvez essa seja uma das
marcas desse conservadorismo à la brasileira,
pois une uma dimensão moralizante com um
projeto econômico neoliberal, diferentemente
de outros grupos de extrema-direita que toma-
ram poder e têm apostado na proteção do mer-
cado nacional, como é o caso de Trump.
Na visita aos EUA, o tom eufórico do
presidente e de sua comitiva foi acompanhado
de diversas concessões por parte de Brasília à
Washington, como a permissão do uso da Base
de Alcântara para lançamento de foguetes e sa-
télites, a facilitação no visto de entrada destes no
Brasil e a intenção de avaliar a saída do Brasil da
lista de países em desenvolvimento com trata-
mento preferencial na Organização Mundial do
Comércio (OMC) (OLIVEIRA, 2019). Em tro-
ca, foram diversas promessas por parte dos EUA:
a promessa de apoio à entrada do Brasil na Orga-
nização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) e a promessa de tratamen-
to preferencial ao Brasil como aliado extra-Orga-
nização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)
(MARS; GORTÁZAR, 2019) - algo que sequer
fora mencionado na cúpula posterior da OTAN
em que os EUA participaram (BULLA, 2019).
Essa visita apontou, pois, para a tendência à re-
cuperação do chamado “americanismo ideológi-
co” na política externa brasileira (SOARES DE
LIMA; ALBUQUERQUE, 2019).
Na visita a Israel, também marcada por
contornos religiosos e ideológicos, o presidente
brasileiro foi incapaz de concretizar uma de suas
principais promessas de campanha– a mudan-
ça da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém –,
frustrando Netanyahu, Trump, e boa parte do
eleitorado evangélico de Bolsonaro. A abertura
de um escritório comercial em Jerusalém foi a
solução encontrada para cumprir parcialmente
a promessa, medida que não agradou nenhum
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dos lados (STUENKEL, 2019a). Além disso, a
tensão criada pela intenção de mudança da em-
baixada pode prejudicar a exportação de carnes
para os países árabes (CARNEIRO, 2019).
O contorno estratégico seria a intenção de
buscar em Israel apoio à modernização tecnológica
do país, tanto na área militar quanto na importa-
ção de sistemas de irrigação para auxiliar a agricul-
tura nordestina (PARCERIA..., 2018). No nível
religioso, a visita simboliza a preservação da civi-
lização judaico-cristã, atrelada à crença da Frente
Parlamentar Evangélica brasileira de que Jerusalém
será o palco do apocalipse e de que a conversão dos
judeus ao cristianismo é um precedente do retorno
de Cristo à Terra (DUCHIADE, 2019).
Em maio de 2019, enquanto o chance-
ler brasileiro Ernesto Araújo realizou visitas a
países de governos conservadores na Europa
(EM VIAGEM..., 2019; APÓS..., 2019a), o
vice-presidente General Mourão realizou visita
à China, onde Xi Jinping reforçou o discurso
de que seu país está interessado no desenvol-
vimento do Brasil (XI..., 2019). O vice fora
incumbido desde o início a coordenar as rela-
ções com os BRICS, sobretudo China e Rússia
(SCHUQUEL, 2019). Isso demonstra que di-
ferentes atores-chave no governo realizam tare-
fas diplomáticas distintas, evidenciando contra-
dição e falta de coerência, sobretudo entre dois
eixos: Paulo Guedes (Ministro da Economia) e
Gen. Mourão, em uma linha mais vinculada à
tradicional ordem liberal (chamada pelos con-
servadores de “globalista
5
) e o presidente e o
5 O termo “globalismo” é tradicionalmente pouco utilizado
na área de Relações Internacionais e, recentemente, passou
a ser difundido entre grupos específicos, com fins político-
-partidários, interessados na rejeição dos regimes interna-
cionais e do multilateralismo. Mesmo que ainda falte con-
sistência e discussão teórica sobre o termo, aqui utiliza-se
apenas para ilustrar a dicotomia e a contradição dentro do
Itamaraty comandado por Ernesto Araújo.
chanceler adotando discursos mais alinhados à
postura “anti-globalista”(STUENKEL, 2019b).
Verifica-se, pois, dentro da gestão do Itamaraty,
a presença do dogmatismo contornando o prag-
matismo e da moralidade tentando se impor so-
bre a tradicional racionalidade burocrática (AL-
LISON, 1969; FIGUEIRA, 2011) do órgão.
No âmbito sul-americano, destacaram-se
a visita à Argentina, marcada por apoio vela-
do à reeleição do presidente de centro-direita
Maurício Macri (APÓS..., 2019b). O discurso
da equipe econômica brasileira oscilou entre
aprofundar o Mercosul, inclusive cogitando
a adoção de uma moeda comum (IDEIA...,
2019) e, por outro lado, após resultados par-
ciais que apontaram vitória da oposição à Ma-
cri na Argentina, ameaças do Brasil abandonar
o Mercosul (O JOGO..., 2019). Também,
nesse contexto, chegou-se ao acordo comercial
Mercosul-União Europeia, que ainda necessi-
ta ratificação e aceitação de países europeus.
O acordo viu-se ameaçado pela discordância
de países europeus, como a França, em relação
à política ambiental brasileira na Amazônia e
o aumento no número de queimadas (MA-
CRON..., 2019). Além disso, o agrobusiness
brasileiro tradicionalmente tem interesse na
expansão de negócios através de uma política
ambiental mais frouxa, o que permitiria a esse
setor ter mais vantagens comerciais em relação
à produção agrícola europeia.
O discurso de Bolsonaro na abertura da
Assembleia Geral da ONU de 2019 represen-
tou, em meio à atenção da opinião pública
internacional voltada para a Amazônia e para
o Brasil, que o governo não tem interesse em
levar em conta posições estrangeiras sobre a
preservação ambiental no país. Pelo contrário,
o discurso reforçou o viés conservador da po-
lítica externa em consonância com movimen-
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tos semelhantes a nível global (GUIMÓN,
2019). Ademais, percebeu-se o tom anti-eu-
ropeu (com acusações de “colonialismo”) e
críticas a Cuba, à Venezuela e ao marxismo
(SANCHES, 2019). A contradição principal
reside no fato de que o agronegócio é um dos
principais eixos de apoio ao governo Bolso-
naro, mas compete com a União Europeia e
fornece alimentos em massa para a China. Os
EUA, por outro lado, tem comércio concor-
rente com o Brasil, e não complementar (LI-
VRE..., 2019). A dificuldade de agregar nas
relações externas os interesses econômicos e os
ideológicos em uma lógica coerente traz im-
previsibilidade para os receptores estrangeiros
da política externa brasileira.
Figura 1 – Quadro sintético das tendências e contradições na política externa de Bolsonaro
Fonte: elaborado pelos autores (2019)
Conclusões: tendências e
desafios
O suposto atrito civilizacional se tornou
uma forma de interpretar a realidade pós-
-Guerra Fria por parte de grupos conservado-
res, acrescentando uma narrativa de disputa
que supera a lógica geopolítica e geoeconômi-
ca e aposta na ideia de uma espécie de Nova
Guerra Fria Multipolar. A política externa bra-
sileira de Bolsonaro dialoga, portanto, interna-
cionalmente, com uma tendência conservado-
ra e religiosa-civilizacional. Essa interpretação
de mundo é respaldada também pelo movi-
mento conservador (sobretudo o norte-ameri-
cano), pela própria política externa de Trump
e, academicamente, por abordagens como a
do “choque das civilizações”, de Huntington.
Mais do que isso, a lógica do choque das ci-
vilizações se mescla com a discussão sobre a
ineficiência da ordem internacional liberal em
dar conta das transformações que ameaçam o
mundo ocidental. Ascendem, nesse sentido,
interpretações de que a aposta na globalização
e no liberalismo, nos anos 1990 e 2000, fo-
ram estratégias inadequadas para lidar com a
ascensão do mundo oriental (China, Rússia e
mesmo Oriente Médio) e, agora, seria necessá-
rio adotar uma postura mais dura e conserva-
dora em relação às regiões emergentes.
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O Brasil, por sua vez, se agarra a essa nova
interpretação de mundo. Entretanto, o fato de se-
rem poucos (ao menos por enquanto) os países
que enxergam as relações internacionais dessa for-
ma pode resultar em isolamento e incompreensão
no âmbito global. Também isto leva o país a usar
como bengala o governo Donald Trump, o que
pode ser um risco, dada a necessidade de diversifi-
cação em um mundo complexo. No nível interno,
a substituição do pragmatismo pelo dogmatismo,
e da racionalidade burocrática por um senso de
moralidade, implica também em resistências no
Itamaraty, em alguns setores do governo (como
economia e setor militar) e na própria sociedade
civil, dificultando sua implementação. Ao fim e
ao cabo, o movimento conservador brasileiro ain-
da precisa amadurecer e desenvolver sua própria
auto-imagem, respondendo de uma maneira coe-
rente qual é o papel do país em termos culturais
globais e a função que exerceu e exerce em relação
à multipolarização do globo e à emergência de
múltiplas civilizações. Como país multirreligioso
e multirracial, produzir narrativas unificadoras
que legitimem a atual política externa é um enor-
me desafio. Mesmo que o público-alvo de algu-
mas ações externas sejam os eleitores domésticos, é
bem provável que a coalizão de grupos sociais que
o elegeu não se sustente e se fragmente. Sobretudo
se for considerado que o neoliberalismo econômi-
co e a visão de mundo das atuais elites brasileiras
dificilmente se coadunam com o conservadorismo
internacional. O híbrido liberalismo-conservado-
rismo é capaz de modificar trajetórias políticas
internas em um país, mas apresenta contradições
que podem levar à formação de novos blocos go-
vernamentais e rearranjo de forças.
Entretanto, neste artigo, não buscou-se expli-
car os fatores que levaram à absorção tardia da ideia
de choque de civilizações por parte do movimento
conservador brasileiro. Isso exigiria compreender
as mudanças nas correlações de forças sociais inter-
nas ao Brasil
6
. O que aqui buscou-se demonstrar
foi como a perspectiva de Bolsonaro e de seu chan-
celer mescla elementos civilizacionais, religiosos e
culturais com uma compreensão da ordem liberal,
das instituições e regimes internacionais pós-1945
como inadequados à defesa da civilização ociden-
tal, da qual consideram o Brasil fazer parte.
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