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Guerra justa insuficiente: a ideia da paz
justa na construção da paz pós-guerra no
cristianismo
Insufficient just war: the idea of a just peace in post-conflict peacebuilding in Christianity
Guerra justa insuficiente: la idea de una paz justa en la construcción de la paz posguerra
en el cristianismo
Joyce Kelly Costa Silva
1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p34
Recebido em: 30 de junho de 2019
Aceito em: 01 de dezembro de 2019
Resumo
A “paz justa” enfatiza a reconciliação e a justiça como paz. O objetivo do artigo é discutir
como essa abordagem fornece uma alternativa à antiga tradição da guerra justa na cons-
trução da paz pós-conflito no cristianismo.
Palavras chave: Religião. Paz. Cristianismo.
Abstract
A peace “just” emphasizes reconciliation and justice as peace. e purpose of the article is
to discuss how this approach provides an alternative to the ancient tradition of just war in
post-conflict peacebuilding in Christianity.
Keywords: Religion. Peace. Christianity.
Resumen
La paz justa“enfatiza la reconciliación y la justicia como paz. El objetivo del artículo es
discutir cómo este enfoque proporciona una alternativa a la antigua tradición de la guerra
justa en la construcción de la paz post-conflicto en el cristianismo.
Palabras clave: Religión. Paz. Cristianismo.
1 Mestra em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (2019), Bacharela em Relações Internacionais pela Uni-
versidade Federal da Paraíba (2016) e Membra do Grupo de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR/
UEPB). ORCID: 0000-0002-0698-8342.
Artigo
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Introdução
Os eventos do 11 de setembro e, mais ain-
da, as reações ao 11 de setembro, convenceram
o mundo de que a religião é a única ou a princi-
pal causa dos conflitos internacionais. De fato,
o papel da religião é especialmente evidente
quando invocado para justificar atos de violên-
cia, como os atentados suicidas, e as execuções
ritualizadas de tais atos (OMER, 2010). Toda-
via, muitas vezes as interconexões entre religião
e violência desconsideram que da mesma for-
ma que a religião é um fator importante na di-
nâmica do conflito, ela pode desempenhar (por
meio de líderes religiosos e leigos) uma função
na construção da paz (SMOCK, 2006). Certa-
mente, existem inúmeros exemplos de violên-
cia religiosa em todo o mundo. Mas, afirmar
que a religião é inerentemente violenta é igno-
rar que a paz é um dos principais fundamentos
das principais religiões do mundo.
A contribuição que a religião pode dar
para a paz - como o outro lado da religião no
conflito - está apenas começando a ser explora-
do e explicado. O surgimento desse novo cam-
po de estudos chamado de “construção da paz
religiosa
2
tem como pano de fundo a revisão de
antigos paradigmas, tais como: a guerra justa,
a guerra santa, e o pacifismo. Esses paradigmas
de forte raiz religiosa têm sido por séculos os
principais meios em que a religião se insere nos
debates sobre violência, conflito, guerra e paz
(HERTOG, 2010). Na ética cristã, o pacifismo
representa uma atitude de rejeição à guerra, a
2 A prática e a utilização desse termo envolve tanto o diálogo
inter-religioso, pelos quais indivíduos religiosos discutem o
papel da religião entre as nações, quanto à descrição do tra-
balho de pacificadores cuja motivação das ações em favor de
vítimas e a implementação da paz e da justiça derivam de
uma compreensão particular advinda de uma tradição reli-
giosa (OMER, 2010).
guerra justa está associada à participação quali-
ficada do cristão no serviço militar, já a guerra
santa cristã representada pelas Cruzadas, está
associada ao domínio da Igreja sobre o mundo
(BAINTON, 2008).
A paz justa representa um importante
ponto de virada na forma de lidar com a guer-
ra no pensamento cristão. Além disso, esse pa-
radigma questiona a tradição da guerra justa
justamente como aquela que embora seja im-
portante na limitação e/ou regulação moral da
violência não contempla as questões referentes
ao pós-guerra ou a construção de uma paz sus-
tentável (LOVE, 2018). Considerando que a
grande maioria dos conflitos contemporâneos
envolve uma série de razões, tanto tangíveis
quanto intangíveis, a religião pode ser uma
variável decisiva, capaz de exercer um papel
construtivo, como mediadora e promotora da
reconciliação entre as partes (BERCOVITCH;
KADAYIFCI-ORELLANA, 2009). Segundo
Matyok e Flaherty (2015), não é possível ig-
norar a presença da religião na vida das pes-
soas. Bilhões de pessoas moldam suas vidas a
partir de crenças religiosas. Por isso, a constru-
ção de respostas multidisciplinares ao conflito,
não pode ignorar a presença da religião (MA-
TYOK, FLAHERTY, 2015). Logo, as discus-
sões a respeito da prática da abordagem da “paz
justaé uma oportunidade de demonstrar a
capacidade reconciliatória do cristianismo no
cenário internacional.
3
Diante disso, o presente artigo tem como
objetivo apresentar a nova abordagem da paz
3 Este artigo buscou abordar o cristianismo de forma geral,
fundamentado nos ensinamentos de Jesus Cristo a respeito
do conceito de paz justa. Todavia, é provável que em cada
uma das vertentes do cristianismo (“catolicismos” e “protes-
tantismos” – em referência às várias subdivisões) existam dis-
tinções sobre o significado e a aplicação da paz justa.
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justa como um contraponto à guerra justa na
construção da paz pós-conflito no pensamen-
to cristão. A guerra justa, apesar de contribuir
para as discussões sobre os limites para entrar
em um conflito (jus ad bellum) e para conduzi-
-lo (jus in bello), provou ser suscetível a abusos
políticos, além de conter um número de de-
ficiências conceituais (HOPPE, 2007). Tendo
em vista o “retorno” da religião às Relações
Internacionais (RI), parte-se aqui do pressu-
posto de que há uma influência dessa variável
nas ações dos indivíduos e que essas ações po-
dem favorecer a construção da paz em socieda-
des no pós-conflito.
A tradição cristã da
guerra justa
A tradição da guerra justa surgiu como
uma proposta de regulação dos conflitos por
meio da ética. Ao longo da história humana, as
sociedades passaram a considerar a importância
da ética na guerra. Em quase praticamente to-
das as grandes civilizações do mundo, dos an-
tigos egípcios aos astecas, da Babilônia à Índia,
da China à Europa antiga e contemporânea,
praticamente todos defendem características e
crenças fixas sobre quais são as razões permiti-
das para ir à guerra e quais os meios aceitáveis
para lutá-la. Da mesma forma, em quase todos
os principais documentos religiosos há algu-
ma ponderação sobre a moralização da guerra,
a exemplo da Bíblia cristã, do Bhagavad Gita
hindu, do Tao-te-ching do Taoísmo e do Alco-
rão do Islã (OREND, 2013).
No cristianismo, a determinação básica é
pacifista, derivada dos ensinamentos de Jesus
Cristo. Jesus declarou: “Felizes os que promo-
vem a paz” (BÍBLIA, 2016, p. 1249). Portanto,
o cristão deve trabalhar como um construtor
da paz. Os primeiros cristãos eram pacifistas
e rejeitavam qualquer participação no servi-
ço militar. Segundo Bell (2005), existem pelo
menos duas razões que são tipicamente citadas
para explicar essa posição. A primeira é que os
cristãos primitivos seguiram os ensinamentos
e os exemplos de Jesus Cristo e foram opostos
ao derramamento de sangue e à violência. Esse
é um argumento bastante discutido, mas mes-
mo para os teólogos defensores da guerra justa,
como Agostinho, há o reconhecimento de que
os cristãos primitivos eram mais pacíficos. A se-
gunda razão refere-se ao caráter idólatra que o
serviço militar tinha dentro de Roma. Para um
cristão servir ao exército era preciso jurar leal-
dade e devoção ao Imperador (BELL, 2005).
Um dos primeiros filósofos cristãos a refle-
tir sobre a guerra foi Agostinho (354-430) du-
rante o governo de Constantino. Influenciado
por filósofos romanos, ele ensinou que a guerra
limitada poderia ser um meio legítimo de de-
fender o Império. A guerra era um mal, mas
poderia ser considerada justa quando travada
em prol de propósitos defensivos, por meio de
uma autoridade legítima, com intenções corre-
tas e com dano mínimo. Ao defenderem a paz
de Roma (pax romana), Agostinho argumen-
tava que os cristãos estavam servindo a Deus e
protegendo a pureza do cristianismo contra as
heresias dos povos bárbaros (DUFFEY, 2015).
Para Agostinho a presença dos bárbaros repre-
sentava uma ameaça à unidade e à pureza dou-
trinária da Igreja cristã, ao passo que Roma re-
presentava o lugar de proteção para os cristãos,
a qual, portanto, eles deveriam defender contra
essa ameaça. Assim, ao contrário do pacifismo,
a participação dos cristãos no serviço militar era
moralmente possível diante de uma realidade
bastante problemática e que causava sofrimen-
to enorme nas pessoas (AGOSTINHO, 1996).
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Apesar de a guerra justa ser uma impor-
tante tradição no pensamento sobre a ética
na guerra, ao longo dos anos essa perspectiva
vem recebendo algumas críticas. De acordo
com Bartoli (2004), a tentativa cristã de usar
o poder militar e político durante o governo
de Constantino eram no mínimo ambivalen-
tes, pois, por um lado, inaugurou um novo pe-
ríodo na história da Europa, por outro lado,
possibilitou intervenções violentas desastrosas
como as Cruzadas (BARTOLI, 2004). Scott
Appleby (2000, p. 34), diz que: “a existência da
tradição moral da guerra justa no cristianismo
avança nos argumentos sobre o uso apropriado
da força, mas nunca a resolve”. Para o autor,
a ambivalência e o próprio pluralismo existen-
te dentro das tradições religiosas estimulam o
raciocínio situacional e a liderança pragmáti-
ca (APPLEBY, 2000). Para omas Hoppe
(2007), embora a tradição da guerra justa con-
dene a violência e coloque parâmetros para a
limitação da violência indiscriminada por parte
do Estado, a partir do momento que ela esta-
belece critérios morais que tornam a violência
justificada “como um mal menor”, estas condi-
ções ficam sujeitas a interpretação, e inerente-
mente correm o risco de serem mal utilizadas
(HOPPE, 2007).
De acordo com Selengut (2003), durante
a Idade Média, a doutrina da guerra justa fun-
cionou eficazmente como uma “guerra santa
para o cristianismo. O cristianismo como re-
ligião aceita dentro do Império Romano teve
que proteger suas doutrinas de uma possível
contaminação teológica”. Logo, o “justo” uso
da força foi entendido como forma de preser-
var a fé cristã genuína. Para o autor, a forma
universalista defendida pela fé cristã destinada
a oferecer à única possibilidade de salvação para
toda a humanidade fez com que as guerras em
nome da religião fossem justificadas (SELEN-
GUT, 2003, p. 26). Assim, como aconteceu na
guerra do Afeganistão (2001) e na guerra do
Iraque (2003), os princípios da guerra justa e
os valores ditos “cristãos” foram usados para fa-
zer com que as pessoas acreditassem que essas
guerras eram necessárias e “boas”. De acordo
com Fiala (2008), existe uma romantização em
torno da ideia de guerra justa que não permi-
te enxergar a face brutal, caótica e horrível de
uma guerra (FIALA, 2008).
Diante dessas críticas, é possível consi-
derar a existência de falhas na abordagem da
guerra justa. Além disso, como visto, o argu-
mento da guerra justa cristã pode ser usado
como motivação ou justificativa para o uso in-
discriminado da violência. O fato é que, tanto
o pacifismo cristão quanto a guerra justa cristã
se desenvolveram ao longo da história e busca-
ram à sua maneira responder às mudanças no
cenário político. Nenhuma das posições repre-
senta um sistema fixo de afirmações teológicas
ou éticas. Ambos foram sujeitos a frequentes
deturpações e mal usos. No entanto, muitas
vezes a ênfase na religião como fonte de con-
flito, retirou a força da religião na construção
da paz. Assim, em decorrência das mudanças
no cenário internacional (principalmente após
as Guerras Mundiais)
4
e dadas às limitações da
guerra justa, várias igrejas começaram a discutir
a respeito de uma nova abordagem que estives-
se em conformidade com os ensinamentos de
Jesus Cristo e que tivesse o compromisso para
a paz e não para a guerra. Essas igrejas desen-
4 Um dos aspectos fundamentais dessa mudança é com relação
ao caráter dos conflitos. Antes da Guerra Fria os conflitos
eram marcados por disputas ideológicas entre os Estados.
Com o declínio do confronto Norte-Sul, os conflitos passam
a ocorrer dentro dos Estados e na maioria das vezes derivam
de confrontos de identidade comunitária com base na raça,
etnia, nacionalidade ou religião.
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volveram um novo paradigma que incorpora a
mudança fundamental na prática ética e am-
plia a estrutura de análise e critérios de ação
para a Igreja Cristã no cenário internacional.
Esse novo paradigma é a paz justa, como será
visto a seguir.
A paz justa e a construção da
paz no cristianismo
Desde o final da Segunda Guerra Mundial
têm surgido dentro da tradição cristã aborda-
gens referentes à construção da paz não-violen-
ta (APPLEBY, 2004). A paz justa está inserida
dentro dessa escola de pensamento. Historica-
mente, o movimento pela paz justa surgiu na
Igreja Unida de Cristo (United Church of Christ,
UCC) em 1981 quando, no Sínodo Geral um
delegado trouxe uma resolução convocando a
Igreja a tornar-se uma “igreja da paz” (ligada ao
movimento pacifista). A resolução foi aprovada,
mas ficou claro que era preciso desenvolver essa
abordagem. Sendo assim, em 1983 um grupo
de teólogos e estudiosos se reuniu para criar
fundamentos para essa abordagem, e em 1986,
membros desse grupo criaram um livro, editado
por Susan istlethwaite intitulado “A Just Pea-
ce Church” que se tornou uma fonte primária
para a abordagem da paz justa (UCC, 2015).
Ao longo dos anos a ideia de paz justa foi
se aperfeiçoando e não ficou restrita somente a
Igreja da Paz. Em 2011 a Convocatória Ecumê-
nica Internacional pela Paz (IEPC) do Conselho
Mundial de Igrejas (CMI) produziu dois docu-
mentos seminais: “Um chamado Ecumênico
à paz justa” e a “Companhia da paz justa”. O
primeiro documento declarou que a perspectiva
e o pensamento da guerra justa são obsoletos.
O segundo traz uma extensa orientação sobre
a implementação da teologia da paz justa. Em
ambos os documentos há o argumento de que a
mensagem de Cristo convida os cristãos a com-
prometer-se com o “caminho da paz justa”. Esse
caminho é trilhado por meios de resistência
não-violenta, de transformação de conflitos e de
promoção da reconciliação (BERGER, 2016).
A paz justa cristã traduz a visão bíblica
da paz em termos contemporâneos, a partir da
relação interdependente entre justiça e paz. A
tradução hebraica para paz, o shalom é geral-
mente traduzido com “completude, solidez,
bem-estar e paz”, mas também liga a paz a con-
ceitos como: justiça (mishpat), retidão (tsedeq,
tsedeqah) compaixão (hesed) e veracidade (emet)
(CHURCHES, 2011). De acordo com Smyth
(2008, p. 348), “onde há injustiça ou violência
contra os fracos, a paz de Deus é destinada ao
exílio. A paz traz justiça, e é essa justiça que
assegura que o shalom prevaleça sobre os inte-
resses humanos e falsa paz”. Na prática, pode
haver divergências entre os imperativos da jus-
tiça e a necessidade da paz, no entanto, é den-
tro desse desacordo que a reconciliação é tra-
balhada para estabelecer a paz justa (SMYTH,
2008). De maneira geral, a paz justa significa a
prática da justiça social definida em termos de
reconciliação. Em outras palavras, a justiça se
manifesta na reconciliação, que é o meio para
alcançar o fim que é a paz justa.
5
As discussões sobre a paz justa no cristia-
nismo dizem respeito à revisão de paradigmas
tradicionais ocorridas dentro do novo campo
de estudo da “construção da paz religiosa”, que
enfatiza que da mesma forma que a religião
pode incentivar os conflitos ela pode ajudar a
resolvê-los e construir a paz (APPLEBY, 2000).
5 Embora contenha componentes retributivos, a justiça bíblica
é fundamentalmente sobre restauração, reparação e reconci-
liação. Para saber mais: MARSHALL, Chris. Divine justice as
restorative justice. Center for Christian Ethics, p. 11-19, 2012.
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Segundo Omer (2010), a religião pode ser um
fator importante na construção da paz em pelo
menos três níveis: primeiro, ela motiva e inspira
os indivíduos a agirem de determinada maneira
que promova a paz e a não-violência. Segun-
do, as infraestruturas institucionais podem ser
importantes espaços de mediação e cooperação
entre redes e organizações não-governamen-
tais. Da mesma forma, o prestígio dos líderes
religiosos e atores leigos podem conferir legi-
timidade a processos políticos e institucionais
de reconciliação e cura pós-conflito. Terceiro, a
religião e a tradição oferecem amplos recursos
para reinterpretação de definições etno-religio-
sas de nacionalidade que resultam em práticas
estatais excludentes e discriminatórias e agres-
sões não-estatais (OMER, 2010).
Nessa perspectiva, pressupondo os ensina-
mentos da paz justa, indivíduos, comunidades
e instituições religiosas cristãs estão cada vez
mais atuantes nas tentativas de acabar com os
conflitos violentos e construir a paz em diver-
sas partes do mundo. Apesar de esse fenômeno
ter ganhado maior atenção após a Guerra Fria,
ele não é algo novo. Os exemplos incluem a:
mediação realizada pelos Quakers e financiada
pela fundação Ford na Guerra Civil da Nigé-
ria (1967-1970); os esforços dos Menonitas
por meio do professor John Paul Lederach
6
na Nicarágua na década de 1980; o trabalho
do Conselho Mundial de Igrejas na mediação
e cessação do conflito no Sudão em 1972; a
mediação promovida pela comunidade leiga
católica Sant’Egidio em Moçambique, funda-
6 Lederach é um dos teóricos responsáveis pelas discussões
sobre a construção da paz religiosa. Vale salientar que essas
discussões ainda são iniciais e restritas à Universidade católica
norte americana de Notre Dame. Fazem parte desse campo:
Scott Appleby (2000), Atalia Omer (2010), Daniel Philpott
(2010), entre outros.
mental para por fim a guerra civil em 1992
(HAYNES, 2009).
O caso do Sudão chama a atenção pela
promoção da reconciliação por meio do diálogo
inter-religioso. Depois das negociações de 1972
promovidas pelo Conselho Mundial de Igrejas
terem alcançado sucesso ao encerrar a primeira
guerra civil sudanesa, a dimensão religiosa do
conflito no Sudão passou a ter destaque após
a implantação da sharia (lei islâmica) em se-
tembro de 1983 pelo presidente Numeiry sem
qualquer consideração pelos não-muçulmanos
da região. Historicamente, muçulmanos e cris-
tãos conviviam pacificamente, contudo, após
a implantação forçada da sharia houve um es-
tranhamento entre eles. Todavia, isso foi essen-
cial para que pessoas de diferentes religiões se
unissem em vez de se dividirem para buscarem
soluções para que a paz fosse estabelecida no
Sudão. O Conselho de Igrejas no Sudão do Sul
tornou-se um espaço em que líderes cristãos e
muçulmanos passaram a discutir soluções pací-
ficas para o Sudão (LOWILLA, 2006).
O que chama a atenção nesse caso é que
ao mesmo tempo em que as ações em prol da
paz são efetuadas pelo Conselho Ecumênico de
Igrejas no Sudão do Sul, a guerra geralmente
tem sido interpretada como um conflito envol-
vendo o norte islâmico arabizado dominante,
mais desenvolvido, contra o sul africano, me-
nos desenvolvido e predominantemente cristão
e animista (LOWILLA, 2006). No entanto,
como explica Assefa (1990), seria simplista
demais reduzir as guerras civis no Sudão ba-
seada puramente nas diferenças religiosas. A
divisão religiosa entre cristãos e muçulmanos
se sobrepõem a divisões profundas de raça,
etnia e geografia. A esperança para o Sudão é
que o diálogo possa abrir caminhos para a re-
solução do conflito e diminuição da violência
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(ASSEFA, 1990). Segundo Hayward (2012),
em ambientes conflituosos em que existe algu-
ma divisão religiosa, o diálogo inter-religioso
é uma maneira de construir relacionamentos
cooperativos. O diálogo inter-religioso é capaz
de promover ações transformadoras em prol da
construção de uma paz justa após conflitos vio-
lentos (HAYWARD, 2012).
Conclusão
Scott Appleby (2000) chamou a atenção
para a idéia da “ambivalência do sagrado”, ao
perceber que os ensinamentos, narrativas e rei-
vindicações religiosas têm sido predominan-
temente associados com os conflitos violentos
em todo o mundo. Indiscutivelmente, as ex-
pressões mais audíveis da religião é a associa-
ção dessa variável com a violência no âmbito
político. Contudo, os ensinos, as autoridades
religiosas e os indivíduos têm constituído um
central, embora negligenciado, aspecto da prá-
tica de resolução de conflitos e construção da
paz (APPLEBY, 2000).
Esse artigo buscou apresentar a nova abor-
dagem da paz justa como um contraponto à
tradição da guerra justa na construção da paz
pós-conflito no cristianismo. A paz justa é uma
evolução do conceito de paz no pensamento
cristão. Na Bíblia, a palavra “paz” pode se re-
ferir à ausência de um conflito, mas também
aponta para a presença de algo. A definição da
paz como justiça que se manifesta na reconci-
liação pode ser sem dúvidas uma das grandes
contribuições teológicas para a construção da
paz e, portanto, para uma percepção para o
bem, do papel público da religião.
De fato, existem casos que mostram que os
aspectos mais nobres da religião foram usados
para facilitar a reconciliação desafiando a percep-
ção comum de que essa variável causa violência.
No Sudão do Sul, o diálogo relacional é usado
como plataforma para a reconciliação e mitiga-
ção das animosidades. É certo que isso tem sido
mais uma exceção do que uma regra. No entanto,
isso nos desafia a reconhecer o grande potencial
inerente à religião para amenizar as paixões des-
trutivas e se tornar um instrumento para a paz.
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