52 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.17 n.1, p.52 - 54, mai. 2020
Resenha: Livro Sobre a Guerra
organizado por José Luís Fiori examina a
relação entre a guerra e a ética
Simone Kawakami Gonçalves Costa
1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2020v17n1p52
Recebido em: 16 de julho de 2019
Aprovado em: 03 de fevereiro de 2020
1 Doutora em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, residente na cidade do Rio de Janeiro,
Brasil. Editora da revista Estratégia Internacional-Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3528-6796
Apresentação
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ISSN 1809-6182, v.17 n.1, p.52 - 54, mai. 2020
O ato de guerrear é quiçá um dos mais an-
tigos da humanidade, perpassando diversas for-
mas de sociedade. As guerras podem assumir
diversas formas e almejar diferentes objetivos.
Essas variações refletem-se nos discursos que
circundam as guerras, que por sua vez revelam
suas dimensões éticas, impactando não apenas
suas justificações e objetivos, como a própria
formação e transformação do sistema interna-
cional. Frente a um tema tão candente as dife-
rentes tradições teóricas encaram o problema
da guerra, assim como da ética, sob prismas
igualmente distintos. Analisar esta relação en-
tre as guerras e as distintas éticas que subjazem
detrás de suas deflagrações, sendo cruciais para
moldar o sistema internacional desde a sua ori-
gem até a atualidade, estabelecendo um diálogo
entre as principais correntes teóricas e autores
caros às Relações Internacionais é a proposta
trazida por Sobre a Guerra lançado em 2018.
Trata-se de uma coletânea de textos orga-
nizada por José Luís Fiori, resultado dos debates
realizados em um longo ciclo de discussões que
examinou as conexões entre a guerra e a ética em
sessões abertas aos pesquisadores reunidos do
Programa de Economia Política Internacional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao
longo dos 14 capítulos elaborados cada qual por
um autor abordam-se problemas são tão antigos
quanto a prática de guerrear. Não à toa, o li-
vro apresenta-se dividido em três grandes blocos
que abordam a partir de distintas matrizes teó-
ricas a relação entre a guerra e a ética, abordadas
em diálogo com as teorizações da escola realista.
O primeiro conjunto de artigos denomi-
na-se “Evolução e Conflito”, e está dedicado ao
exame da guerra em uma perspectiva de longa
duração. O artigo Guerra, ética e etologia pro-
põe uma abordagem pouco previsível ao apre-
sentar um exame de sociabilidades primatas e
suas guerras, vistas a partir da macro perspectiva
de longuíssima duração. Sugere-se assim que a
guerra tem natureza apomórfica para a huma-
nidade, isto é, está marcada pela ancestralidade
contida na própria evolução da espécie humana.
Já o artigo Evolução e moralidade busca traçar
um debate sobre como a guerra moldou a evolu-
ção da cooperação humana, tomando por base a
teoria evolucionária para investigar os efeitos do
igualitarismo primitivo na seleção natural.
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O segundo bloco de artigos intitulado jus-
tamente Guerra e ética, é apresentado como o
epicentro do livro de acordo com o organizador
da obra. Nele apresentam-se textos dedicados a
examinar a relação entre guerra, paz e justiça, e
a possibilidade de constituição de uma ordem
internacional e jurídica ética, capaz de ordenar
as relações entre distintos povos que profes-
sam diferentes preceitos éticos. Em Dialética
da guerra e da paz escrito por José Luís Fiori
analisa-se detidamente a gênese do sistema in-
ternacional como derivada das guerras, cuja
pilhagem sob a forma de tributação punitiva
imposta pelos vencedores aos vencidos lançou
as bases para a formação embrionária da hierar-
quia de forças entre as nações. Assim, o sistema
internacional emerge de um desenvolvimento
expansivo marcado pela necessidade de resol-
ver o problema do financiamento da guerra,
transformando o ato de guerrear em um ins-
trumento fundamental do enriquecimento e da
acumulação de poder. Essa natureza da guer-
ra a faria ser a peça sistêmica da expansão do
próprio capitalismo, sendo crucial para o de-
senvolvimento do sistema interestatal dentro e
fora da Europa, até finalmente se universalizar
no século XX com a globalização adquirindo
diferentes faces e argumentações éticas. Assim,
é sob a égide da hegemonia estadunidense que
se dá sucessão de formas do sistema interna-
cional, abarcando as guerras humanitárias do
final dos anos 1990, posteriormente substituí-
das pela “guerra ao terror”, que de certa forma
vigoram até o século XXI. A cada uma dessas
formas de guerra corresponde uma determina-
da “ética”. Assim, a distinção entre os conceitos
de “ética” e “justiça” assume na análise de Fiori
não só um sentido filosófico, mas atua como
um signo disruptivo, visto que a Guerra do
Golfo operou-se em meio ao reordenamento
do sistema internacional, em um processo mo-
tivado por raízes muito mais profundas que os
objetivos declarados pelos Estados Unidos. Em
verdade, como Fiori bem indica, a Guerra do
Golfo de 1991 conflui com uma transformação
de grande magnitude no sistema internacional,
traduzido no fim da Guerra Fria, e na ascensão
de um momento que distintos autores e ana-
listas caracterizaram como dominação unipolar
estadunidense.
Já em Guerra e ética em Aristóteles há um
debate crítico travado a partir das lacunas
deixadas tanto pelos realistas como pelos
liberais sobre a ética das guerras, que o artigo
busca preencher propondo um diálogo entre a
perspectiva das guerras justas e o pensamento
clássico aristotélico. Guerra, virtù e ética em
Maquiavel retoma as grandes transformações
presentes no sistema internacional contem-
porâneo ao filósofo florentino que marcam a
disseminação das guerras como formadoras do
ordenamento interestatal. Já em Guerra e li-
berdade em Mill, Kant e Hegel apresenta-se um
diálogo entre as visões otimistas europeias con-
tidas no liberalismo clássico dos dois primeiros
autores, e um contraponto com a percepção
hegeliana sobre a guerra. Em Guerra e violência
na teoria marxista oferece uma análise dos escri-
tos de Marx e Engels sobre o militarismo, en-
tendido como expressão das contradições que
emanam do poder da classe dominante. Guerra
e moral internacional em Carr, Aron e Morgen-
thau traz um exame das distinções e pontos
comuns entre os autores citados no tema da
ética da guerra. Por fim, Guerras humanitárias
e ordem ética analisa o declínio do humanismo
liberal durante os governos de Barack Obama.
Já o terceiro conjunto de artigos dedica-
-se ao exame dos principais debates teóricos
sobre a geopolítica, geoeconomia e a dinâmica
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das guerras no sistema internacional forjado no
período posterior à Segunda Guerra Mundial.
Em Guerra, moeda e finanças analisa-se a rela-
ção entre moeda, financiamento, guerra e po-
der tomada desde a era hegemônica britânica
até a ascensão do dólar, e, portanto, dos Estados
Unidos como hegemon. Em Guerra e dinâmica
sociopolítica retoma-se o pensamento estratégico
de Clausewitz e distintos autores como Weber
e Adam Smith para problematizar a definição
de guerra centrada essencialmente no comba-
te, ampliando essa noção para outros tipos de
conflitos. Guerras hegemônicas e ordem interna-
cional traz uma análise dos ciclos longos de acu-
mulação capitalista como pano de fundo para
um debate com as reflexões desenvolvidas por
Modelski e Robert Gilpin sobre as guerras cujos
efeitos resultam em transformação da dimen-
são sistêmica. Em A geopolítica estadunidense e
a Eurásia retoma-se a centralidade da região eu-
rasiana para a formação do pensamento geoes-
tratégico estadunidense, e a forma como isso
norteou as elaborações de Zbigniew Brzezinzki
e Henry Kissinger, passando ainda por outros
autores como Stephen Walt e John Mearshei-
mer para concluir com uma análise dos docu-
mentos estratégicos dos governos de George
H.W. Bush e Barack Obama. E encerrando esse
bloco está A visão confuciana e a geopolítica chi-
nesa que detalha como o confucionismo enten-
de guerra e paz, e como isso impacta as relações
interestatais da China na atualidade.
O epílogo que encerra a obra Ética cultural
e guerra infinita de autoria de José Luís Fiori
traz uma análise crítica ao documento de Estra-
tégia de Segurança Nacional de 2017, já sob o
governo de Donald Trump, na qual indica que
estamos diante de uma nova reconfiguração
do sistema internacional. Assim, com grande
riqueza analítica e teórica Sobre a Guerra traz
em suas entrelinhas uma inquietação sobre a
possibilidade de uma dinâmica de rupturas e
transformações do sistema internacional em
meio aos abalos sofridos desde a ascensão de
Donald Trump ao poder, e à sua tentativa de
estabelecer uma ordem distinta à que prevale-
ceu desde pelo menos o fim da II Guerra Mun-
dial, construída e sustentada pelos próprios Es-
tados Unidos.
A atual e crescente polarização da socie-
dade norte-americana, não apenas entre a clas-
se detentora e os despossuídos, mas entre as
próprias alas e frações das classes dominantes
e dos grupos políticos do establishment, servi-
rão de combustível para o crescimento do po-
derio militar global estadunidense. E isso não
indica qualquer recuo dos Estados Unidos cir-
cunscrito aos limites de suas fronteiras, como
alguns erroneamente interpretaram a retórica
antiglobalização de Donald Trump. Assim, a
declaração feita pelos Estados Unidos de que
não se veem mais como os porta-vozes de valo-
res universais, como consta em seu documento
que traz a nova doutrina de segurança nacional
publicado em 2018, não deve ser interpretada
como maior equilíbrio de poderes. Pelo contrá-
rio, essa declaração aceita as diferenças éticas
presentes no sistema internacional, anuncian-
do dessa maneira batalhas ainda mais belige-
rantes fomentadas pela ruptura das instâncias
que outrora davam rosto ao sistema internacio-
nal ao partilhar, ainda que discursivamente de
uma mesma ética e valores. Este é um alerta
trazido pelo livro Sobre a Guerra, que segura-
mente deve ser observado por todos nós.
Referência
FIORI, José Luís (org). Sobre a Guerra. Petrópolis: Editora
Vozes, 2018. ISBN: 978-8532658579