Dossiê Temático: Religião e estudos internacionais - Apresentação ................ 2
ematic Dossier: Religion and international studies – Introduction
Dossier temático: Religión y relaciones internacionales – Presentación
Fernando Neves da Costa Maia
Tiago Rossi Marques
O olhar do Papa Francisco para o Sul Global: uma análise sobre o
diálogo entre o Vaticano e a República Popular da China ............................... 7
e Pope Francis’ view to Global South: an analysis about the dialogue between Vatican and Republic of China
La mirada del Papa Francisco para el Sur Global: un análisis sobre el diálogo entre el Vaticano y la República Popular China
Ana Beatriz da Costa Mangueira
A relação Estado-Igreja e o papel da religião nas
relações internacionais da Rússia ...................................................................... 15
e Church-State relations and the role of religion in Russias international relations
La relación Estado-Iglesia y el papel de la religión en las relaciones internacionales de Rusia
Luiz Felipe Dias Pereira
A Faith Diplomacy de Xi Jinping: as implicações político-religiosas
do acordo provisório sobre a nomeação dos bispos católicos na China .......... 24
Xi Jinping’s Faith Diplomacy: e Political-Religious Implications of the Interim Agreement
on the Appointment of Catholic Bishops in China
La diplomacia de fe de Xi Jinping: las implicaciones político-religiosas del acuerdo provisional
sobre el nombramiento de los obispos católicos en China
Anna Carletti
Guerra justa insuficiente: a ideia da paz justa na construção
da paz pós-guerra no cristianismo ..................................................................... 34
Insufficient just war: the idea of a just peace in post-conflict peacebuilding in Christianity
Guerra justa insuficiente: la idea de una paz justa en la construcción de la paz posguerra en el cristianismo
Joyce Kelly Costa Silva
Relações Internacionais e Religião: Frei Betto, a crítica do ateísmo do socialismo
internacional e a construção da laicidade do socialismo cubano ................... 42
International Relations and Religion: Frei Betto, criticizing the atheism of international socialism
and building the secularism of Cuban socialism
Relaciones internacionales y religión: Frei Betto, la crítica del ateísmo del socialismo internacional
y la construcción de la laicidad del socialismo cubano
Fábio Régio Bento
2 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.2 - 6, dez. 2019
Dossiê Temático: Religião e estudos
internacionais - Apresentação
ematic Dossier: Religion and international studies – Introduction
Dossier temático: Religión y relaciones internacionales – Presentación
Fernando Neves da Costa Maia
1
Tiago Rossi Marques
2
Recebido em: 20 de abril de 2020
Aceito em: 20 de abril de 2020
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p2
1 Professor de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Rio de Janeiro, Brasil. Con-
tato: fncmaia@terra.com.br. ORCID: 0000-0002-8457-5332.
2 Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Belo Horizonte, Brasil.
Contato: tiagorossimarques@yahoo.com.br. ORCID: 0000-0001-5179-4689.
O presente dossiê Religião e os estudos in-
ternacionais busca contribuir não apenas para a
consolidação, mas também para o aprofunda-
mento do estudo sobre as conexões - e suas múl-
tiplas ambivalências - entre religião e o fenô-
meno das relações internacionais. É importante
notar que o campo de Relações Internacionais
vem dedicando mais atenção a este objeto de
estudo na esteira de um processo mais amplo
de incremento da influência política da religião
que pode ser percebido mais intensamente nos
últimos cinquenta anos (TOFT; PHILPO-
TT, SHAH, 2011). Uma pesquisa rápida nas
livrarias virtuais dá conta da multiplicação de
estudos que incorporam, por exemplo, pon-
tos de vista da economia política internacional
(DREHER; SMITH, 2016), das liberdades
religiosas e minorias (HURD, 2015), da inter-
seção entre religião, democracia e secularismo
(TOFT; PHILPOTT; SHAH, 2011; COHEN
e LABORDE, 2016), da tolerância religiosa
(STEPAN e TAYLOR, 2014), dos efeitos para
pensarmos a ordem global (ESPOSITO e WA-
TSON, 2000), dentre outros. A revista acadê-
mica Millennium: Journal of International Stu-
dies dedicou o número 3 do volume 29 do ano
2000 inteiramente ao tema numa tentativa de
ampliar as fronteiras do campo nesse sentido
como anotaram os editores Petito e Hatzopou-
los (2000) na introdução do referido número.
Enfim, as Relações Internacionais vem dando
provas do renovado interesse por esse estudo.
É possível, contudo, analisar o ressurgi-
mento da influência política religiosa de uma
outra perspectiva. Não se trata de negar tal
fenômeno, mas considerar, assim como Toft,
Philpott e Shah (2011), que - em certa, mas
decisiva medida - ele acontece secundado pelos
Apresentação
2 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte,
ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.2 - 6, dez. 2019
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elementos que teóricos da secularização toma-
ram como causas do seu declínio. A democra-
tização social, o aumento do fluxo de pessoas
e de informações, progressos tecnológicos, so-
bretudo nos meios de comunicação (TOFT;
PHILPOTT, SHAH, 2011) são amostras dos
elementos tidos como limitadores do fenôme-
no religioso e sua participação na esfera pública
reivindicados pela tese da secularização. Toft,
Philpott e Shah (2011) nos convidam a repen-
sar essa questão de um ponto de vista em que
esses elementos, ao invés de limitar e diminuir
a influência da religião no mundo político,
criaram justamente as condições para que ela se
manifestasse. Por essa tese, é possível sustentar,
por exemplo, que a democracia formou uma
“(…) arena aberta onde nacionalistas hindus,
muçulmanos turcos e os religiosos cristãos de
direita nos Estados Unidos podem comunicar
seus entendimentos e competir por poder.
(TOFT; PHILPOTT, SHAH, 2011, p.7).
Na esteira dos estudos de Peter Berger,
Toft, Philpott e Shah (2011) defendem a tese de
que a religião provavelmente continuará sendo
(…) um modelador vital - e por vezes furio-
so - da guerra, da paz, do terrorismo, da de-
mocracia, da teocracia, do autoritarismo, das
identidades nacionais, do crescimento econô-
mico e do desenvolvimento, da produtivida-
de, do destino dos direitos humanos, das Na-
ções Unidas, do aumento e diminuição das
populações, dos valores culturais com relação
à sexualidade, casamento, família, papel das
mulheres, lealdade à nação e ao regime [polí-
tico] e o caráter da educação (TOFT; PHIL-
POTT; SHAH, 2011, pp.7-8).
Quer concordemos, quer discordemos da
tese lançada acima, o fato é que ela acena para
a noção de que a religião - mesmo quando se
trabalha com a herança secular - é um elemen-
to social generalizado e mais estabelecido do
que geralmente supomos. Elizabeth Shakman
Hurd tem um argumento a esse respeito que
merece ser mencionado à guisa de ampliação
do escopo dessa apresentação:
(…) somente com a ascensão da religião como
uma categoria genérica após a Reforma Pro-
testante que ela se tornou legalmente dispo-
nível como uma categoria autônoma, domés-
tica e internacionalmente. [A] religião nunca
deixou” a política ou as relações internacio-
nais, mas assumiu diferentes formas e ocupou
diferentes espaços sob os modernos regimes
de governança que são frequentemente tidos
como seculares. Nem as religiões nem os ato-
res religiosos são agentes autônomos que po-
dem ser analisados, quantificados , engajados,
celebrados ou condenados - e divididos entre
o bem e o mal. (HURD, 2015, p.19).
Temos como associar a presença da reli-
gião com a presença de atores religiosos nos
mais diferentes espaços da vida social. A reli-
gião não está fora da história e das instituições
sócio-políticas; não pode, portanto, ser isolada
da experiência humana (HURD, 2015). No
entendimento de Toft, Philpott e Shah (2011),
um ator religioso é qualquer “(…) indivíduo,
grupo ou organização que adota crenças reli-
giosas e que articula uma mensagem razoavel-
mente consistente e coerente sobre a relação
entre religião e política.” (TOFT; PHILPOTT;
SHAH, 2011, p.23). Nessa linha argumentati-
va, é possível afirmar que a experiência humana
- repita-se: mesmo para quem trabalha com a
tese secular - acontece com base em algum con-
junto de ideias que determinada comunidade
religiosa tem sobre autoridade política e justiça;
ela acontece, portanto, a partir de uma teologia
política (TOFT; PHILPOTT; SHAH, 2011).
Em termos mais precisos, teologia política é
“(…) o conjunto de ideias que um ator religio-
so tem sobre o que é uma autoridade política
legítima.” (TOFT; PHILPOTT; SHAH, 2011,
p.27). Com base nisso é que se pode entender
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melhor as concepções seculares e pós-seculares
de mundo que orientam a comunidade política
há, pelo menos, alguns séculos. Ademais, esse
conceito nos permite pensar os diversos enqua-
dramentos dos trabalhos deste dossiê.
No processo de separação entre a esfera
Religiosa e a esfera Política, até a passagem do
século XIX para o século XX, constatou-se uma
forte tendência em se crer que o fenômeno re-
ligioso estaria fadado a um definitivo declínio
social e público, influenciados por uma onda
de secularização que legava a este fenômeno,
uma atuação minguada e exclusiva à esfera pri-
vada e particular, sem grandes incidências so-
bre a cultura e a vida pública.
Indo na contramão das predições advin-
das de teorias secularistas dos séculos passados
(TAYLOR, 2010), mas sem afirmar um reavi-
vamento religioso em escala global, observou-
-se no “ocidente” o surgimento de um novo
fenômeno, num período intitulado de “Pós-
-secular”, em que a religião demonstrou res-
surgimento, mas não sem declínio, mutação e
resistência, retornando, porém, ao centro dos
debates públicos, políticos e sociais, seja em
âmbito nacional ou internacional (GRAHAM,
2013). Nesse sentido, os estudos contempo-
râneos das Ciências Humanas e Sociais, têm
apontado para o retorno da religião ao centro
dos debates acadêmicos e teóricos, ganhando
cada vez mais “proeminência pública como um
fator significante nas políticas globais e na so-
ciedade civil” (GRAHAM, 2014, p. 235).
Será neste debate Pós-Secularista, também
presente nos estudos das Relações Internacio-
nais (PETITO; MAVELLI, 2014; WILSON
2012), que está alocado a tese de que, seja em
âmbito local, nacional ou global, a religião pode
vir a ser partícipe do desenvolvimento humano
e de suas mais diversas organizações sociais –
não sem percalços, como apontado acima. Isto
incluiria o sul global para além dos limites do
ocidente”, como aponta-nos Graham (2014,
p. 237), em que países “como Brasil, China ou
Índia, a religião continua a crescer sendo parte
significativa na vida pública”. Este fenômeno
religioso, na medida em que pode vir a desem-
penhar alguma influência no esforço analítico
produzido no campo dos Estudos Internacio-
nais, nos leva a indagar “se” e “de quais ma-
neiras”, seja direta ou indiretamente, colabora
para a formação teórica, paradigmática e ana-
lítica dentro dos Estudos Internacionais, num
período marcado por aquilo que Scott M. o-
mas (2014) chamou de “virada religiosa”.
São nesses termos que buscamos aqui fo-
mentar o debate em torno da Religião e das
Relações Internacionais, buscando levantar as
formas e os meios, caso ocorram, pelos quais
este “fenômeno” se tornaria partícipe do cam-
po, seja em sua construção teórica, analítica ou
praxiológica. O número e a distinção de atores,
abordagens, teorias e religiões envolvidas no
debate, convidam as mais diversas abordagens
para contribuir com a construção de conheci-
mento sobre este tema. Os artigos que com-
põem este dossiê cobrem amplo espectro de
discussão a partir deste prisma, o qual intenta
lançar luz sobre questões que se depreendem
das possíveis relações entre o “Político” e o “Re-
ligioso” no âmbito internacional.
Nesse sentido, o texto Relações Internacio-
nais e Religião: Frei Betto, a crítica do ateísmo do
socialismo internacional e a construção da laici-
dade do socialismo cubano, busca apresentar o
movimento contestante de Frei Betto, partin-
do de sua “militância internacional” estabelecia
pelas vias do engajamento político e literário,
da associação entre o socialismo e o ateísmo ti-
picamente vinculados ao arranjo dos “Estados
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Socialistas confessionais” em um “ateísmo de
Estado”. Tem-se em vista o esforço de Frei Be-
tto em favor da construção de um “paradigma
político de um socialismo pós-ateísta, laico”,
em que se intenta demonstrar a não incompati-
bilidade entre o aspecto religioso da experiência
humana e o pensamento socialista e marxiano
internacional. Para tanto, o argumento se de-
senvolve a partir da atuação e da permeabilidade
de Betto em Cuba, bem como de seus esforços
não tão exitosos nas demais partes do mundo
socialista, perpassando sua trajetória desde os
anos de 1980 até meados dos anos 2010.
Em O olhar do Papa Francisco para o Sul
Global: uma análise sobre o diálogo entre o Va-
ticano e a República Popular da China, promo-
veu-se uma análise das ações e atuações do Papa
Francisco em direção a uma intensificação do
diálogo entre o Vaticano e o governo da China.
Argumenta-se aqui que o olhar e as ações diplo-
máticas do atual papado, dirigidos ao Sul Glo-
bal, tem promovido um cenário de relações mais
favoráveis naquela direção, em que se trafega de
um maior quadro de ruptura entre as partes,
para aquele caracterizado por uma condição de
maior reconciliação. Isto seria possível mediante
o estabelecimento do “Acordo Provisório Santa
Sé-China”, capaz de promover maiores movi-
mentos cooperativos na relação sino-vaticano, o
que demonstraria a capacidade do “Religioso
de exercer e desempenhar notório papel global
de influência nas dinâmicas do internacional.
Seguindo na esteira da relação entre a San-
ta Sé e o atual governo chinês, o artigo A Faith
Diplomacy de Xi Jinping: as implicações político-
-religiosas do acordo provisório sobre a nomeação
dos bispos católicos na China visa identificar, a
partir de uma análise de Política Externa, as ra-
zões pelas quais o governo de Pequim concedeu
ao Vaticano, mediante acordo, a permissão de
participação na nomeação episcopal dos bispos
chineses, mesmo diante da histórica postura
contrária praticada pela China desde a procla-
mação da República e 1949, e da ruptura de
suas relações diplomáticas com o Vaticano em
1951. A análise feita aponta para um movimen-
to de interesses que visam a criação de condições
mais favoráveis para a ampliação da colaboração
bilateral entre Santa Sé e Pequim, de maneira a
promover (I) a unidade da comunidade católica
na China e a legitimidade da Igreja Oficial, (II)
abrindo caminho para que os católicos chineses
possam aderir aos projetos nacionalistas e labu-
tarem em prol do ressurgimento do país, (III)
além de proporcionar uma maior abertura para
a participação crítica dos cidadãos católicos na
construção da sociedade chinesa.
Por seu turno, o artigo Guerra justa insufi-
ciente: A ideia de paz justa na construção da paz
pós-guerra no cristianismo, ao concentrar no
campo de estudos intitulado de “construção
da paz religiosa”, propõe a exposição da “nova
abordagem da paz justa” em contraposição
ao conceito de “guerra justa”, tendo em vista
a ideia de construção da paz pós-conflito em
associação ao pensamento cristão. Para tanto,
parte-se da ideia de que a religião, com enfo-
que no cristianismo, pode ser assimilada tanto
como uma variável capaz de exercer influên-
cia sobre as ações dos indivíduo, quanto tam-
bém de seu papel decisório nas dinâmicas de
conflitos internacionais, especificamente, me-
diante a tarefa reconciliatória e de promoção
da paz pós-conflito em sociedades no cenário
global. A análise em questão intenta com isto
demonstrar o potencial do aspecto “Religioso
no internacional como um instrumento de
paz, desafiando as abordagens que mobilizam
a variável religiosa a partir da ótica exclusiva
da violência.
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Rumando em direção ao desfecho do pre-
sente dossiê, A relação Estado-Igreja e o papel da
religião nas relações internacionais da Rússia nos
apresenta um pleito em favor do papel político
da religião, representada neste contexto pela Igre-
ja Cristã Ortodoxa Russa, para com as análises de
política externa e doméstica da Rússia contem-
porânea, de maneira a não ser possível ignorá-
-la. A partir de uma revisão bibliográfica sobre o
tema, buscou-se a contextualização histórica no
tocante a consolidação do cristianismo ortodo-
xo como uma instituição politicamente ativa e
adjunta do estado russo. Ademais, seria ela tam-
bém expressiva em sua projeção de influência re-
ligiosa mediante as relações estabelecidas entre o
Patriarcado de Moscou e os demais patriarcados
difundidos por toda a Europa. Diferindo-se do
contexto religioso ocidental em que se identifica
uma separação entre religião e a política pelas vias
dos processos típicos de “secularização”, e na me-
dida em que ambas estabelecem interconexões na
sociedade russa e além fronteira, haveria aqui im-
portantes implicações para com a própria análise
da dinâmica mais abrangente entre o “Religioso
e o “Político” no campo das Relações Internacio-
nais. Nesse sentido, há de se averiguar também
os possíveis desdobramentos destas análises e im-
plicações sobre o “internacional”, incluindo aqui
o entendimento sobre a própria natureza da po-
lítica internacional para além daquelas desenvol-
vidas em associação com a ideia de “Ocidente”.
Nossa leitura seria a de que não somente
haveria aqui proficuidade na contribuição para
com a produção acadêmica em torno da pro-
posta e da temática apresentada neste dossiê,
como também se abre, a partir disto, novos ca-
minhos e possibilidades que nos levam a pros-
seguir indagando quanto as instâncias, o cami-
nho, o lugar e a importância do “Político” e do
“Religioso” nos Estudos Internacionais.
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7 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019
O olhar do Papa Francisco para o Sul
Global: uma análise sobre o diálogo
entre o Vaticano e a República Popular
da China
e Pope Francis’ view to Global South: an analysis about the dialogue between Vatican
and Republic of China
La mirada del Papa Francisco para el Sur Global: un análisis sobre el diálogo entre el
Vaticano y la República Popular China
Ana Beatriz da Costa Mangueira
1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p7
Recebido em: 24 de agosto de 2018
Aceito em: 09 de junho de 2019
Resumo
Este artigo analisa a atuação do Papa Francisco no diálogo entre o Vaticano e a Repú-
blica Popular da China nos últimos dois anos do atual pontificado. Observa-se que o
olhar do pontífice para o Sul Global colabora com esse diálogo, que sofreu ruptura na
década de 1950.
Palavras-chave: Papa Francisco. Vaticano. República Popular da China.
Abstract
is paper aims to analyze the Pope Francis influence on the dialogue between the Vatican
and the People’s Republic of China in the last two years. It is observed that the Popes view
to Global South cooperates with this dialogue, which has been interrupted since 1950s.
Keywords: Pope Francis. Vatican. Republic of China.
Resumen
Este artículo examina la actuación del Papa Francisco en el diálogo entre el Vaticano y la
República Popular China en los últimos dos años del pontificado actual. Se observa que
la mirada del pontífice para el Sur Global contribuye para este diálogo, que sufrió una
ruptura en la década de 1950.
Palabras-clave: Papa Francisco. Vaticano. República Popular China.
1 Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da
Paraíba (PPGRI-UEPB). João Pessoa/Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3246-0058.
Artigo
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ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019
8 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019
Considerações Iniciais
Durante parte significativa da evolução
dos estudos sobre relações internacionais, acre-
ditou-se que com o advento do secularismo a
religião perdeu a sua atuação política no mun-
do. Para a visão secular, a influência global
da Igreja Católica, por exemplo, se extinguiu
(HAYNES, 2016, p. 28). Mas ao observar as
atuações dessa instituição e do seu líder no
cenário internacional, se verifica justamente
o oposto, pois esses atores continuam man-
tendo diálogos com outros, inclusive com os
Estados. Além disso, para Graham (2013, p.
32), as últimas décadas foram marcadas pelo
ressurgimento do ativismo religioso” que vem
acontecendo no mundo todo, especialmente
no Sul Global, o que se opõe à previsão secu-
lar de que a religião vinha perdendo impacto
público e político. Turzi (2013, p. 19) entende
ser necessário considerar a relevância dos atores
religiosos, marginalizados pela ciência com o
surgimento da secularização. Omitir a religião
dos debates de Política Internacional pode pre-
judicar a compreensão de questões importantes
para a área, como as atuações do Papa, relevan-
te para a condução da diplomacia do Vaticano
no cenário mundial.
Desde a chegada do Papa Francisco ao
pontificado no ano 2013, se observa que a di-
plomacia do Vaticano experimenta significa-
tivas transformações. O mundo tem testemu-
nhado a aproximação da Santa Sé com países
que antes não dialogavam com essa entidade,
especialmente aqueles do Oriente Médio e da
Ásia (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 70). Argumen-
ta-se que o posicionamento do atual pontífi-
ce influencia essas modificações, uma vez que
escolheu alterar o foco das relações do Vatica-
no, antes voltado ao Ocidente e ao “centro do
mundo”, para a “periferia” (CARLETTI, 2015,
p. 218). A visão global do Papa Francisco, bem
como suas origens e suas experiências como
clérigo influenciam o modo como conduz a di-
plomacia da Santa Sé. Para Almeida (2013, p.
299), o atual Papa tem como propósito estabe-
lecer a comunicação global. Assim, o pontífice
pode contribuir para transformações de tópicos
mundiais que envolvem a Igreja Católica, so-
bretudo os que são considerados mais delica-
dos para a instituição, como o que se refere aos
dissensos entre a República Popular da China
(RPC) e o Vaticano.
As raízes da ruptura do diálogo entre a
China e o Vaticano remetem à década de 1940,
quando o Partido Comunista Chinês (PCC)
chegou ao poder, e “o papado, pelas suas estrei-
tas ligações com o Ocidente, e pela declarada
oposição ao comunismo, foi considerado como
uma ameaça para a soberania chinesa” (CAR-
LETTI, 2008, p. 12). Com efeito, a Igreja Ca-
tólica na China foi dividida em Igreja patrióti-
ca e Igreja clandestina: a primeira se declarou a
favor do Estado, aceitando ser controlada por
ele; e a segunda continuou ao lado do Vaticano
e do Ocidente, rejeitando as condições impos-
tas pelo governo comunista chinês (TSE-HEI
LEE, 2007, p. 279). Essa divisão ainda per-
dura, sendo uma problemática no sentido do
reconhecimento pelo Vaticano de bispos no-
meados pela China, mas que são considerados
ilegítimos para a Igreja.
Nos últimos dois anos do atual pontifica-
do, o diálogo sino-vaticano é alvo de discussões
dentro da arena de religião e de relações inter-
nacionais. Desde 2013 os laços entre o Vaticano
e a China começaram a se estreitar. Nesse ano,
Papa Francisco “entrou em contato com a Chi-
na trocando notas de congratulações com o Se-
cretário Geral do PCC, Xi Jinping em sua pos-
9 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019
se” (LEUNG; WANG, 2016, p. 14). De acordo
com Leung e Wang (2016), embora em 2015
o governo chinês tenha endurecido o controle
sobre as religiões
2
, notou-se uma abertura para
negociações entre o Papa Francisco e o governo
no ano seguinte sobre a questão que constan-
temente inflamou o relacionamento da China
com a Igreja Católica: a nomeação de bispos.
Para Faggioli (2018, s/p), as atuais “negociações
do Vaticano com a China representam o esforço
diplomático mais importante da Santa Sé em
décadas”. Logo, questiona-se como o olhar do
Papa Francisco, voltado para o Sul Global, con-
tribui para as relações sino-vaticanas.
Para nortear a discussão, o artigo está es-
truturado em duas seções: a primeira parte con-
textualiza a ruptura de relações entre a China e
o Vaticano, compreendendo que o advento do
PCC representa uma das variáveis causais para
a interrupção dessas relações; a segunda parte se
debruça sobre a figura do Papa Francisco, en-
tendendo o seu olhar direcionado ao Sul Global
como via de transformação em questões que en-
volve a Igreja Católica no cenário internacional.
Por fim, realiza-se uma reflexão sobre os esforços
do Papa Francisco e do governo chinês no esta-
belecimento de um acordo sobre os bispos na
China, e sobre a posição do Papa nesse cenário.
A Igreja Católica e a RPC:
contextos e perspectivas
A presença do cristianismo na China é se-
cular e chama a atenção pelo modo como os
princípios cristãos e ocidentais agitaram a esfe-
2 As religiões na China são reguladas pelo PCC, cujo principal
objetivo consiste em manter o poder político (KUAN, 2012,
p. 158). Uma das exigências do Partido para que uma religião
seja reconhecida pelo Estado é o desempenho dela na vida
pública (KUAN, 2012, p. 158).
ra política chinesa (CARLETTI, 2008, p. 14).
Na década de 1940, quando o PCC chegou ao
poder, o governo chinês expressou desconfian-
ça com representantes da Igreja Católica no
país. Para Carletti (2008, p. 11), essa descon-
fiança é fruto das circunstâncias do período co-
lonial europeu na China, quando as potências
ocidentais desrespeitaram a soberania chinesa.
Ademais, a forma como a doutrina cristã ca-
tólica era colocada em prática desconsiderava
a cultura e os costumes chineses (CARLETTI,
2008, p. 12). Com esses acontecimentos, “to-
dos os estrangeiros tornaram-se, aos olhos dos
chineses, automaticamente inimigos, incluindo
os missionários” (CARLETTI, 2008, p. 12).
Nessa acepção, o Estado chinês passou a exi-
gir que os católicos participassem de atividades
religiosas apenas em igrejas reconhecidas pelo go-
verno (YIK- YI CHU, 2012, p. 107). O Vaticano
sempre foi contra a política chinesa de interfe-
rência em assuntos religiosos (LEUNG; WANG,
2016, p. 5), uma das motivações para que o rela-
cionamento da Igreja Católica com a RPC fosse
marcado por perseguições, resistência e ruptura.
A posição anticomunista da Santa Sé resultou em
expulsões de clérigos contrários às diretrizes e prá-
ticas comunistas na região (CARLETTI, 2008, p.
83). Com efeito, na década de 1950 foi criada a
Associação Patriótica Católica Chinesa (APCC),
representando o primeiro traço da divisão da
Igreja Católica na China. A proposta da APCC
era a de continuar seguindo os preceitos da Igreja
Católica, composta por clérigos, mas também a
de apoiar o governo comunista, que era contra
a hegemonia ocidental (VUKIĆEVIĆ, 2015, p.
75). Por sua vez, os católicos e o clero que diver-
giam da Igreja Patriótica foram considerados pelo
governo um movimento clandestino, constituin-
do a “Igreja Católica Clandestina na China”, liga-
da ao Vaticano (TURZI, 2013, p. 24).
10 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019
A divisão da Igreja na China provocou dis-
sensos em questões que para o Vaticano deve-
riam ser somente de sua responsabilidade, como
a nomeação de bispos, tarefa exclusiva dessa en-
tidade, mas que passou a ser executada pelo PCC
(LEUNG; WANG, 2016, p. 5). Apesar das di-
vergências entre o Vaticano e a RPC, no governo
de Deng Xiaoping surgiu a possibilidade de mu-
danças em relação à Igreja Católica na China,
pois nesse período o país experimentava trans-
formações sociais. A política de “portas abertas”,
implementada no governo de Deng Xiaoping,
possibilitou, na década de 1970, a reabertura de
Igrejas Católicas na China que se encontravam
fechadas (CARLETTI, 2008, p. 127). Nes-
se contexto, a Santa Sé visava se aproximar da
Igreja Católica na RPC, tentativa que fracassou
(LEUNG; WANG, 2016). Como consequência
desse insucesso, a Santa Sé buscou dialogar com
os católicos de Taiwan e Hong Kong (LEUNG;
WANG, 2016, p. 8), aproximação vista com
desconfiança pelas autoridades chinesas.
O primeiro obstáculo para as relações
diplomáticas entre a Santa Sé e a RPC reside
justamente no fato dessa entidade reconhecer
Taiwan, questão relevante para a RPC, devi-
do ao seu histórico conflituoso com Taiwan
3
(VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 75). Por isso, pode-se
afirmar que Taiwan representa “um elemento
que influencia diretamente as prolongadas ne-
gociações sino-vaticanas” (LEUNG; WANG,
2016, p. 15). Outro obstáculo ao reatamento
de laços entre China e Vaticano consiste na in-
tenção de Pequim em designar bispos, o que é
3 Durante a Revolução chinesa na década de 1940, o conflito
entre Partido Nacionalista e Partido Comunista levou Chiang
Kai-shek fugir para Taiwan junto com seus aliados quando o
PCC chegou ao poder (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 75). Nesse
período, Taiwan se declarou um país e Kai-Shek se tornou o
seu líder, obtendo o reconhecimento de alguns atores inter-
nacionais, como a Santa Sé (CARLETTI, 2008, p. 10).
considerado um desrespeito à soberania do Va-
ticano (TURZI, 2013, p. 24). Por isso a Igreja
Católica na China ainda continua dividida, e os
laços entre o Vaticano e a RPC rompidos desde
1951. Essas relações sofrem atualmente trans-
formações desde quando Papa Francisco chegou
ao papado, mas em especial nos últimos dois
anos, contexto em que o governo chinês se mos-
trou mais aberto ao diálogo com o Vaticano.
Argumenta-se que Papa Francisco repre-
senta o principal elo entre o Vaticano e a China.
Segundo Turzi (2013), por ser jesuíta, na condu-
ção do diálogo sino-vaticano o pontífice é tanto
simbólico quanto significativo, tendo em vista
que os jesuítas possuem uma história longa com
a China. Para esse autor, “o carisma jesuíta busca
construir pontes, adaptar e trabalhar com a rea-
lidade, em vez de se impor contra ela” (TURZI,
2013, p. 24). Observa-se que Papa Francisco
busca justamente construir uma ponte entre o
Vaticano e a China com o principal objetivo de
unir a Igreja no país, dividida há mais de cinco
décadas (SUMMARY OF BULLETIN, 2018).
As negociações entre Papa Francisco e a Chi-
na têm provocado divergências na Instituição ca-
tólica, tendo em vista o histórico de perseguições
a clérigos da Igreja e a nomeação de bispos fei-
ta pelo PCC (CARLETTI, 2008). A “oposição
significativa do hemisfério ocidental” à abertura
do pontífice para um diálogo com a RPC não
impediu que o Papa se mantivesse firme na bus-
ca pelo objetivo pastoral de unir a Igreja naquele
país (FAGGIOLI, 2016). O primeiro passo para
uma reconciliação pode ser atribuído a assinatura
do Acordo Santa Sé-China de 2018 atinente à
questão dos bispos. Na mensagem aos católicos
chineses divulgada em 28 de setembro de 2018,
o pontífice declarou que esse é um momento
significativo para a vida da Igreja, especialmen-
te porque a presença da instituição na China é
11 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019
marcada por tensões (FAGGIOLI, 2016). Nessa
mensagem, Papa Francisco expressou o seu res-
peito pela cultura chinesa, afirmando que o povo
chinês resistiu as adversidades, abraçou as dife-
renças e se demonstrou receptivo a mensagem
cristã (SUMMARY OF BULLETIN, 2018).
O fator religioso se encontra presente não
somente na mensagem do Papa enviada aos chi-
neses, mas também no seu olhar estratégico para
o Sul Global com o intuito de estabelecer um
equilíbrio entre “centro” e “periferia” no quadro
de relações do Vaticano (CARLETTI, 2015, p.
218). Essa é um sinal de que a religião está ativa
na vida pública e política, seja em nível local, na-
cional e/ou global (GRAHAM, 2013). A prefe-
rência do pontífice é por um mundo multipolar
onde as diferenças ao invés de dividir podem
acrescentar”, rumo a um mundo menos desigual
(CARLETTI, 2015, p. 233). Tendo isso em vis-
ta, a seção subsequente se dedica à reflexão sobre
o papel do Papa Francisco na construção de uma
ponte que aproxime a RPC e o Vaticano.
Papa Francisco e seu projeto
global: construindo pontes
O líder da Igreja Católica, o Papa, é consi-
derado um importante ator por vários motivos,
um deles relacionado ao fato desse indivíduo
representar tanto o condutor da Instituição
Católica, quanto o chefe do “Poder Executivo
do Estado do Vaticano” (TURZI, 2013, p. 30).
Graças a sua liderança e a sua posição como ator
religioso nas relações internacionais, o Papa
pode exercer o chamado soft power
4
(HAYNES,
4 Soft power, para Joseph Nye Jr. (1990, p. 166), consiste em
um poder que um ator exerce, fazendo com que outros atores
concordem com determinada ação ou política. Segundo Car-
letti (2015, p. 221), a Igreja Católica age com o soft power por
meio de várias igrejas que se encontram pelo mundo.
2016), condição possível de ser executada por
diálogos, por exemplo, com outros atores in-
ternacionais. As mensagens, decisões e ações do
Papa representam três elementos que podem
gerar impactos significativos em matérias que
envolvam a Igreja Católica no cenário interna-
cional. Portanto, entende-se que o soft power
exercido pelo pontífice sucede por meio desses
três elementos, já que ele é considerado líder
religioso influente nas relações internacionais.
Desde sua chegada ao pontificado, Papa
Francisco busca gradativamente aproximar o
Vaticano com outras regiões do mundo que não
sejam parte apenas do Ocidente. Ao conferir
maior importância à periferia (TURZI, 2013,
p. 21), o pontífice promove discussões sobre as
desigualdades sociais e, ainda, facilita a aproxi-
mação do Vaticano com países não-ocidentais.
A conduta do Papa Francisco na mu-
dança de foco do mundo ocidental e europeu
para a “periferia do mundo” pode ser associa-
da ao fato de ser o primeiro Papa não euro-
peu (CARLETTI, 2015). É possível observar
que o comportamento e as experiências do
Papa Francisco, durante a sua trajetória de vida
até chegar ao pontificado, traduzem algumas
características particulares de sua pessoa como
indivíduo e como clérigo: faz parte da comu-
nidade jesuíta e sempre possuiu contato diário
com o povo (TURZI, 2013). Esses fatores in-
fluenciam a forma como o pontífice busca con-
duzir as decisões do Vaticano. Conforme Car-
letti (2015, p. 233), “as experiências de vida do
Papa Francisco como um cidadão da periferia
do mundo colaboram com sua visão da perife-
ria para o centro, e não o contrário como foi
feito com os outros papas”.
A antiga política do Vaticano, de manter
relacionamentos mais estreitos com o Ocidente
e com o “centro do mundo”, é alterada à me-
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dida que o deslocamento ideológico do Papa
Francisco se volta “mais às periferias do planeta
que aos centros tradicionais de poder” (CAR-
LETTI, 2015, p. 233). Isso pôde ser notado
na cúria romana
5
, quando ao invés de priorizar
cardeais de origem europeia, Papa Francisco
escolheu cardeais de outros continentes, como
África, Ásia, América Central e América do Sul
(CARLETTI, 2015, p. 231).
A reflexão sobre as características do Papa
Francisco, e sobre sua extensão global mais di-
recionada à periferia do planeta e ao Oriente,
condiciona a discussão do seu importante papel
na resolução de algumas divergências da Igreja,
como a que se refere à divisão da Igreja na Chi-
na. De acordo com Turzi (2013, p. 24), a maior
fronteira ainda hoje da Igreja Católica é com a
China. Apesar disso, acredita-se que o pontífice
é capaz de influenciar o cenário de ruptura en-
tre o Vaticano e a RPC. Para tanto, Vukićević
(2015, p. 73) acredita que “a diplomacia papal
precisa ser complexa e equilibrada para atingir
seus objetivos”, buscando melhorar também a
imagem da Igreja Católica em todo o mundo.
Segundo Turzi (2013, p. 23), Papa Fran-
cisco busca fazer jus ao próprio sentido da pa-
lavra ‘pontífice’, criando pontes entre pastores e
fiéis, entre credos e entre países. Argumenta-se,
aqui, que esse é o principal objetivo do líder ca-
tólico em relação à RPC: criar uma ponte entre
o Vaticano e o país, bem como entre a Igreja
que se encontra dividida na China. As variá-
veis que influenciaram a ruptura de relações do
Vaticano com a China são históricas, como foi
possível entender na seção anterior. No que diz
respeito a essas relações, a nomeação de bispos
5 A cúria romana diz respeito ao corpo da Igreja que ajuda o
papa na administração da instituição. Nesse contexto, o pon-
tífice decide sobre a nomeação e a substituição dos indivíduos
que poderão fazer parte desse corpo (VATICAN, on-line).
constantemente representou um ponto delica-
do, especialmente por causa da divisão da Igre-
ja Católica no país declaradamente comunista,
e, portanto, pelo não reconhecimento da Igreja
Patriótica pelo Vaticano.
As nomeações de bispos são de significati-
va importância para a Igreja Católica, uma vez
que está ligada à política da instituição de man-
ter hierarquias e doutrinas (FAGGIOLI, 2018).
Após a Segunda Guerra Mundial, “as nomea-
ções dos bispos foram consideradas uma ques-
tão importante para as relações diplomáticas
entre o Vaticano e os países sob o domínio co-
munista” (FAGGIOLI, 2018, s/p). Na China,
por exemplo, os bispos escolhidos pelo gover-
no não eram reconhecidos pela Igreja. Por esse
motivo, Vukićević (2015, p. 76) entende que a
questão da ordenação dos bispos na China ain-
da segue como um dos tópicos mais sensíveis
no diálogo entre o Vaticano e esse país. Esse é
um tema que está no centro do hodierno de-
bate sobre as relações sino-vaticanas, tendo em
vista que as negociações acerca das nomeações
de bispos, que não eram certificadas pela Igreja,
vêm progredindo. Para Pequim, o reconheci-
mento dos bispos pelo Vaticano que foram es-
colhidos pelo governo representaria um passo
significativo para o reatamento de laços entre a
China e o Vaticano (LEUNG; WANG, p. 9).
A temática que envolve o Vaticano e a
RPC chama a atenção daqueles que conhecem
a história do relacionamento desses dois ato-
res, caracterizado por dissensos. Argumenta-se
que o basilar projeto global do Papa Francisco
de construir pontes é significativo para o fim
das tensões entre o país e a entidade. Faggioli
(2018) afirma que
Aqueles que acreditam neste possível avanço
entre o Vaticano e a China hoje sabem que
já há uma longa história do cristianismo na
13 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.7 - 14, dez. 2019
China, com a qual a Igreja Católica global
precisa estar mais diretamente em contato.
Esta é uma parte integrante da visão do Papa
Francisco para uma Igreja Católica verdadei-
ramente global, a serviço de toda a humanida-
de e da paz mundial (FAGGIOLI, 2018, s/p).
O olhar do Papa Francisco voltado ao Sul
Global transforma a diplomacia do Vaticano e
possibilita o deslocamento de um cenário de
ruptura com a China para um cenário de re-
conciliação. O diálogo, que vinha acontecendo
de forma lenta e gradual, avança com o Acordo
Provisório Santa Sé-China, assinado em setem-
bro de 2018 (SICSI, 2018). Após a assinatura
desse acordo, Papa Francisco afirmou ser ne-
cessária a boa vontade de ambas as partes para
que o referido acordo tenha êxito (SUMMARY
OF BULLETIN, 2018). O pontífice ressaltou
que o Acordo Provisório pode contribuir na
escritura de um “novo capítulo da Igreja Cató-
lica na China”, pois, pela primeira vez durante
a trajetória do diálogo sino-vaticano, pôde se
estabelecer uma cooperação (SUMMARY OF
BULLETIN, 2018, s/p).
Considerações Finais
A religião exerce influência global e pode
definir o relacionamento entre atores interna-
cionais, como é o caso do diálogo entre China
e Vaticano (GRAHAM, 2013). A ruptura dos
laços sino-vaticanos possui caráter político e
religioso, e foi com a fundação da APCC que
as “divergências entre uma parte da Igreja Ca-
tólica chinesa e o Vaticano” foram oficializadas
(CARLETTI, 2008, p. 90). Para Tse-Hei Lee
(2007, p. 291), a trajetória da divisão da Igre-
ja Católica nesse país sempre foi um período
doloroso para os chineses que possuem sua “
expressa de duas maneiras diferentes”. Segundo
o autor, a esperança de futuras reconciliações
também sempre esteve presente. A unidade
da Igreja na China parece se aproximar cada
vez mais com a presença do Papa Francisco no
diálogo entre a RPC e o Vaticano. O pontífi-
ce, que opta pelo deslocamento ideológico do
centro para as “periferias do mundo político e
eclesial” (CARLETTI, 2015, p. 236), atua po-
liticamente seguindo a sua religiosidade. Por-
tanto, a visão secular sobre a separação entre
política e religião perde espaço, aqui, para a
perspectiva pós-secular, que considera a impor-
tância da religião na vida pública e nas relações
internacionais (GRAHAM, 2013).
Na mensagem conduzida aos católicos
chineses e à Igreja Universal em setembro de
2018, após a assinatura do Acordo Provisório
Santa Sé-China, Papa Francisco afirmou estar
convencido de que a reaproximação “só pode
ser autêntica e frutífera se ocorrer através da
prática do diálogo para construir um futuro
comum de harmonia sublime” (SUMMARY
OF BULLETIN, 2018, s/p). O pontífice acon-
selhou os católicos chineses a serem bons ci-
dadãos, amarem sua pátria e servirem seu país
com honestidade, demonstrando o seu respeito
ao povo chinês, à sua história e cultura. Segun-
do o Papa, os objetivos da Igreja com esse acor-
do são ‘espirituais e pastorais’, buscando contri-
buir para a unidade da Igreja na China, que foi
dividida no passado (SUMMARY OF BULLE-
TIN, 2018). Para atingir esses objetivos, o pon-
tífice entende ser necessário tratar de assuntos
concernentes a nomeação de bispos, uma das
principais questões que impedia a reaproxima-
ção entre a China e o Vaticano. Por isso, um
acordo entre o Papa e Pequim sobre esse tópico
parecia ser difícil de acontecer (TURZI, 2013,
p. 25), mas o Acordo Provisório Santa Sé-Chi-
na demonstra que a reconciliação é possível.
Papa Francisco, que é autoridade máxima da
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Igreja e possui a palavra final sobre o assunto
no Vaticano já demonstrou estar aberto para
um diálogo (LEUNG; WANG, 2016).
A imagem carismática do Papa Francisco
coloca-o em “uma boa posição para as negocia-
ções na diplomacia inter-civilizacional que conti-
nua a ser uma parte importante dos assuntos da
Santa Sé” (VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 76). O atual
líder da Igreja Católica busca mudar a política do
Vaticano de manter relações apenas com o Oci-
dente para uma política de reaproximação com
o Oriente, e “já fez muito para reparar a ima-
gem da Santa Sé aos olhos do mundo e torná-la
mais ativa e presente nas relações internacionais
(VUKIĆEVIĆ, 2015, p. 78). O projeto global
do Papa com seu olhar voltado ao Sul do mundo
tem como principal objetivo equilibrar ‘centro’ e
periferia’ nas questões que concernem ao Vatica-
no (CARLETTI, 2015, p. 231). O pontífice re-
conhece a importância da diplomacia e do diálo-
go como meios de transformação para a união da
Igreja. Por sua vez, o olhar do líder católico para o
Sul Global se manifesta como uma das ferramen-
tas necessárias para a unidade da Igreja na China
e para a reaproximação entre o país e o Vaticano.
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15 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019
A relação Estado-Igreja e o
papel da religião nas relações
internacionais da Rússia
1
e Church-State relations and the role of religion in Russias international relations
La relación Estado-Iglesia y el papel de la religión en las relaciones internacionales de
Rusia
Luiz Felipe Dias Pereira
2
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p15
Recebido em: 13 de maio de 2019
Aceito em: 26 de agosto de 2019
Resumo
O artigo aborda a relação Estado-Igreja existente na sociedade russa. Argumenta-se que a
religião não deve ser ignorada ao se analisar as políticas doméstica e externa da Rússia con-
temporânea. O argumento tem como base revisão bibliográfica sobre o tópico e informações
obtidas no website do Department for External Church Relations.
Palavras-chave: Relações Internacionais. Rússia. Religião. Igreja Ortodoxa.
Abstract
is article concerns the State-Church relationship in the Russian society. e argument is
that religion should not be neglected when analysing contemporary foreign and domestic
politics. e author’s argument is based on bibliographical review about the subject and
information obtained on the Department for External Church Relations’ website.
Keywords: International Relations. Russia. Religion. Orthodox Church.
Resumen
El artículo aborda la relación estado-iglesia existente en la sociedad rusa. Se argumenta
que la religión no debe ser ignorada cuando se analizan las políticas internas y externas de
la Rusia contemporánea. El argumento se basa en una revisión de la literatura del tema y
la información obtenida del sitio web del Department for External Church Relations.
Palabras clave: Relaciones Internacionales. Rusia. Religión. Iglesia Ortodoxa.
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES)
- Código de Financiamento 001.
2 Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PPGRI/PUC Minas). Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC Minas). E-mail: luizfdpereira@gmail.com. Belo Horizonte (MG)/Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-
0001-5135-104
Artigo
15 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte,
ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019
16 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019
Introdução
A Igreja Ortodoxa Russa – ou o Patriar-
cado de Moscou - é uma instituição de grande
relevância política que atua na sociedade russa
em níveis doméstico e internacional. Essa tra-
dição de articulação política com outras igre-
jas ortodoxas pode ser observada a partir do
pan-eslavismo e o uso da religião como instru-
mento geopolítico em nações regionais – prin-
cipalmente no contexto dos Bálcãs ainda sob
controle do Império Otomano (GERD, 2014).
A ideia de Moscou como a Terceira Roma
3
existe desde a queda do Império Bizantino;
contudo, é a partir do século IXX que a Rús-
sia busca se consolidar como protetora do cris-
tianismo ortodoxo no mundo (KLIMENKO;
YURTAEV, 2018).
Este estudo parte da seguinte questão:
qual é a influência da proximidade entre Estado
e Igreja para a política externa russa contempo-
rânea? O autor deste trabalho sugere que o uso
da religião enquanto instrumento de política
externa se trata de um fenômeno que pode ser
melhor compreendido a partir de um estudo
sobre o posicionamento da Rússia enquanto
protetora do cristianismo ortodoxo na socieda-
de internacional. Nesse sentido, é possível ob-
servar que o papel político ativo da Igreja Cristã
Ortodoxa Russa no país se trata de um elemen-
to que não deve ser ignorado em debates sobre
política externa e geopolítica da Rússia.
Buscar-se-á, aqui, realizar uma contextua-
lização histórica no que diz respeito à conso-
lidação da religião cristã ortodoxa enquanto
instituição politicamente ativa, além da proxi-
midade entre Igreja e Estado.
3 A Segunda Roma seria Constantinopla, capital do Império
Bizantino.
Nesse sentido, é importante levar em conta
a influência da Igreja na política externa russa no
período pós-soviético. Ademais, propõe-se uma
breve análise da atuação política da Igreja na
contemporaneidade, demonstrando, por exem-
plo, a articulação do Patriarcado de Moscou
com os demais patriarcados europeus, de forma
geral. No fim, o autor argumenta que a relação
entre Estado e Igreja na Rússia pode representar
uma contribuição no tocante à questão dos es-
tudos sobre religião no campo das R.I..
O Cristianismo Ortodoxo na
Rússia
A fins de contextualização, serão apre-
sentados, nesta seção, um breve histórico da
presença do cristianismo ortodoxo na Rússia,
de modo a prover ao leitor uma melhor com-
preensão do papel da Igreja Ortodoxa Russa
(daqui em diante, abreviada como IOR) en-
quanto ator político na sociedade.
O conceito de symphonia
4
data desde o
Império Bizantino para definir a relação entre
Igreja e Estado, afirmando a ideia de que “as
autoridades políticas e religiosas devem traba-
lhar juntas em um acordo sinfônico de modo
a alcançar o bem estar material e espiritual dos
fiéis” (LEUSTEAN, 2011, p.188, tradução
nossa)
5
. O termo symphonia representa uma
correlação harmoniosa interdependente entre
o Estado e autoridades eclesiásticas” (PROSIC,
2014, p.180, tradução nossa)
6
. As duas esferas
seriam interdependentes no que diz respeito ao
4 συµφωνία” pode ser traduzido como “acordo”.
5 Political authorities should work together in a symphonic
agreement towards achieving the material and spiritual wel-
fare of the faithful.
6 Harmonious interdependent correlation between state and
ecclesiastical authorities.
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que o autor denomina como uma emanação do
divino, isto é, um “objetivo final para ambos o
imperador e a igreja” (PROSIC, 2014, p. 180,
tradução nossa)
7
. Nesse sentido, as duas insti-
tuições atuariam de modo a “administrar dife-
rentes necessidades”, porém, ambas as institui-
ções poderiam ser vistas como sendo unânimes,
uma vez que as duas compartilhavam de uma
mesma origem (PROSIC, 2014, p.182, tradu-
ção nossa).
8
Uma vez apresentado o conceito, a
próxima seção irá abordar o contexto histórico
da relação entre Estado e Igreja na Rússia.
Estado e religião na Rússia
A presença do cristianismo ortodoxo na
sociedade russa não é recente. Sabe-se que o pri-
meiro Estado de povos eslavos teve origem em
Kiev, capital da atual Ucrânia, sendo o Estado
de Kiev viria a adotar o cristianismo ortodoxo
como religião oficial russa, juntamente com o
alfabeto cirílico, que deu origem à língua russa
em sua forma escrita (ZIEGLER, 2009). A pro-
ximidade entre Estado e Igreja tem origem nos
primórdios da formação do governo de Kiev e
da sociedade russa. Essa relação é descrita por
Ziegler (2009) como tendo caráter simbiótico,
levando em conta que o cristianismo ortodoxo
foi o alicerce da união cultural que ligava os
principados descentralizados de Kiev.
Em um primeiro momento, Estado e
Igreja atuaram em harmonia, de modo que
esta agia como “a consciência moral e apoia-
dora do Estado”, sendo que essa relação teria
fim no início do século XVIII, com a subor-
dinação da Igreja ao Estado estabelecida por
Pedro, o Grande (PETRO apud ZIEGLER,
7 Ultimate goal of both the emperor and the church.
8 Administer to different needs.
p.13, tradução nossa)
9
. Levando em conta a
proximidade entre Estado e Igreja na Rússia,
é imprescindível mencionar o movimento do
pan-eslavismo, considerando sua importância
para a política externa russa.
A Terceira Roma
Durante os séculos XIX e XX, o principal
objetivo da política externa russa no Oriente P-
ximo consistiu na busca por uma “união do mun-
do Ortodoxo sob a Rússia”, sendo que essa con-
cepção política neobizantina tem origem na ideia
de que Moscou seria considerada como a Terceira
Roma (GERD, 2014, p.20, tradução nossa)
10
.
Esse conceito remete ao casamento de Ivan III
com a sobrinha do último imperador bizantino
(Constantino XI Paleólogo), Sofia Paleóloga. O
matrimônio celebrou a transferência da herança
real bizantina para Moscou e, após 1480, Ivan III
adota o título de tsar, fato que celebrou tanto o
fim do domínio Mongol sobre a Rússia, quanto
a apropriação do legado bizantino (SHUBIN,
2004). A ideia de Moscou como a Terceira Roma
passou a significar para a Rússia a restauração do
Império Bizantino, sendo que o país passou a de-
sejar que sua capital fosse o centro desse mundo
(GERD, 2014). A Rússia seria, posteriormente,
vista por cristãos ortodoxos como uma salvação
da dominação Otomana (GERD, 2014).
É importante compreender o pan-
eslavismo para se entender a atuação da IOR na
política internacional na contemporaneidade.
Não menos importante foi a mudança na
relação entre Estado e Igreja durante o período
soviético. A hostilidade em relação à religião se
manifestou logo após chegada dos bolcheviques
9 e moral conscience and supporter of the state.
10 Union of the Orthodox world under Russia
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ao poder. Em 1928 foi estabelecido o Decreto
sobre a Separação de Igreja e Estado que, além
de estabelecer a separação entre as instituições
no sistema educacional, também retirou das
igrejas o direito de possuir propriedades e seus
direitos de entidade legal (WALTERS, 1986).
A ideia da Rússia como Terceira Roma foi
abandonada durante esse período, uma vez que
a União Soviética agora tinha como objetivo
construir o novo sistema de relações inter-
nacionais com base na justiça e na paz” (KLI-
MENKO; YURTAEV, 2018, p. 242, tradução
nossa)
11
. Houve também, além do abandono
da tradição geopolítica russa, um movimento
ideológico voltado para o ateísmo que contri-
buiu para uma deformação do conceito de Ter-
ceira Roma (KLIMENKO; YURTAEV, 2018).
A ressurgência da Igreja e da
religião na Rússia
Lamoreaux e Flake (2018) afirmam que a
IOR teve sucesso no que se refere ao seu “resta-
belecimento como religião dominante na Rús-
sia, frequentemente por meio do apoio da le-
gislação” (LAMOREAUX; FLAKE, 2018, p.2,
tradução nossa)
12
. No início da década de 1990,
a Igreja recebeu de volta as terras que haviam
sido apreendidas pelo Estado e, não obstante,
a lei de Liberdade de Consciência e Associação
Religiosa de 1997 “permitiu uma alavancagem
implícita para a Igreja ao limitar o que outras or-
ganizações religiosas poderiam fazer” (LAMO-
REAUX; FLAKE, 2018, p.2, tradução nossa)
13
.
11 To build the new system of international relations on the
basis of justice and peace.
12 Re-establishing itself as the dominant religion in Russia,
often through state supported legislation.
13 Provided implicit leverage to the Church by limiting what
other religious organisations could do.
Além disso, dentre as principais mudanças
que ilustram a consolidação da IOR como prin-
cipal ator religioso na Rússia, pode-se citar três
que foram feitas já no período de Kirill
14
como
Patriarca: o fortalecimento da reivindicação da
Igreja sobre terras tomadas no período soviéti-
co, uma diretiva que permite o ensino religio-
so em escolas públicas e a terceira diz respeito
aos benefícios relativos a impostos, como “tax
breaks” e propriedade parcial sobre firmas de
energia (KISHKOVSKY apud LAMOREAUX;
FLAKE, 2018; KÖLLNER apud LAMO-
REAUX; FLAKE, 2018; SOLODOVNIK apud
LAMOREAUX; FLAKE, 2018). Ademais, no
contexto de uma sociedade pós-soviética, a IOR,
visando à sua renovação e desenvolvimento, ig-
norou o passado da secularização soviética
15
, as-
sumindo novamente sua posição na sociedade
tendo como modelo a época em que a mesma
não era separada do Estado (ZORKAIA, 2014).
ОТДЕЛ ВНЕШНИХ ЦЕРКОВНЫХ
СВЯЗЕЙ/Department of
External Church Relations
De acordo com Blitt (2011), “o Patriarca-
do de Moscou, assim como o governo russo, é
ativamente preocupado em relação a desenvol-
vimentos fora da Rússia e as potenciais implica-
ções que esses desenvolvimentos possam ter no
ambiente doméstico” (BLITT, 2011, p. 365,
tradução nossa)
16
, sendo que essa preocupação
14 Patriarca de Moscou desde 2009.
15 Entende-se por secularização, aqui, o processo que diz res-
peito à diminuição da importância da religião no cotidia-
no em determinada sociedade. Para maiores detalhes, ver:
Rethinking Secularism, de: CALHOUN, Craig Jackson;
JUERGENSMEYER, Mark; VanAntwerpen.
16 e Moscow Patriarchate, like the Russian government, is actively
concerned about developments outside of Russia and the poten-
tial implications these developments may have on the home front.
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se refere não somente aos Estados da antiga
União Soviética, mas também por todos os Es-
tados nos quais cristãos ortodoxos estejam su-
jeitos à sua jurisdição (BLITT, 2011). O prin-
cipal que, segundo Blitt (2011), atua como um
ministério estrangeiro e interage instrumento
da IOR no que se refere a questões de assuntos
estrangeiros/internacionais é o Departamento
de Relações Exteriores da Igreja (Department
for External Church Relations, ou DECR) com
instituições internacionais como a Organização
das Nações Unidas e a União Europeia.
Levando em conta a proposta deste traba-
lho, é digno de menção o website do DECR,
que pode ser utilizado como fonte de docu-
mentos que permitem observar o funciona-
mento da instituição. Disponível em seis idio-
mas, o site - online desde 1997 - disponibiliza
informações desde a biografia do atual patriar-
ca Kirill no que se refere à sua vida política -
como presidente do DECR, de 1989 a 2009
(DECR, 1997-2019a) - assim como textos de
discursos como, por exemplo, discursos do pa-
triarca Kirill em encontros com o presidente
Putin (DECR, 2017). No endereço, também
é possível encontrar informações sobre relações
“interortodoxas”, “inter-cristãs” e “inter-reli-
giosas” da instituição.
De acordo com o próprio site da insti-
tuição, o DECR do Patriarcado de Moscou é
uma grande instituição sinodal da Igreja Or-
todoxa Russa” (DECR, 1997-2019b, tradu-
ção nossa).
17
No que se refere às suas funções,
o DECR
Mantém as relações da Igreja Ortodoxa Rus-
sa com Igrejas Ortodoxas Locais, Igrejas não-
-ortodoxas, associações cristãs e comunidades
religiosas não-cristãs, assim como instituições
governamentais, parlamentares, inter-gover-
17 A major Synodal institution of the Russian Orthodox Church.
namentais, religiosas e públicas no exterior e
organizações internacionais públicas (DECR,
1997-2019c, tradução nossa).
18
Nota-se que os assuntos externos da IOR
não se limitam apenas ao contato com outras
Igrejas Ortodoxas. Não obstante, também é
atividade do DECR “informar o Patriarca e o
Santo Sínodo sobre eventos e atividades fora
da Igreja Ortodoxa Russa envolvendo seus in-
teresses”, além da produção de documentos e
decisões no que se refere questões de natureza
“inter-ortodoxa, inter-cristãs, interreligiosas e
internacionais” (DECR, 1997-2019b, tradu-
ção nossa).
19
O estatuto da IOR foi adotado
em 2000, e emendas baseadas nos Conselhos
de Bispos foram adotadas posteriormente. Na
primeira seção do estatuto, referente às dis-
posições gerais, a IOR é definida como “uma
igreja multinacional local autocéfala em unida-
de doutrinal em comunhão orante e canônica
com outras Igrejas Ortodoxas Locais” (DECR,
1997-2019c, tradução nossa).
20
Também é importante mencionar os tex-
tos disponíveis no site do DECR no que con-
cerne à seção sobre conceitos sociais, mais es-
pecificamente o tópico sobre as delimitações
nas relações entre Estado e Igreja. De acordo
com o site, “as áreas de cooperação entre Es-
tado e Igreja no período histórico presente
envolvem assuntos como “peacemaking nos
níveis internacional, inter-étnico e cívico, e
18 Maintains the Russian Orthodox Churchs relations with
the Local Orthodox Churches, non-Orthodox Churches,
Christian associations, non-Christian religious communi-
ties, as well as governmental, parliamentary, non-govern-
mental institutions abroad and inter-governmental, reli-
gious and public international organizations.
19 Inter-Orthodox relations; inter-Christian relations;interre-
ligious relations
20 a multinational Local Autocephalous Church in doctrinal
unity and in prayerful and canonical communion with oth-
er Local Orthodox Churches.
20 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019
promoção mútua da compreensão e da coo-
peração entre povos, nações e Estados”; “diá-
logo com órgãos governamentais de todas as
ramificações e níveis em questões importantes
para a Igreja e a sociedade, incluindo o desen-
volvimento de leis, estatutos, instruções e deci-
sões”; “trabalho da mídia de massa eclesiástica
e secular”; entre outros (DECR, 1997-2019d,
tradução nossa).
21
Nesse sentido, pode-se dizer que influên-
cia da Igreja sobre as relações internacionais da
Rússia se torna relevante na medida em que a
IOR “cresceu como uma força capaz de gerar
ideias e fazer lobby a favor de certos rumos
da política externa russa” (LOMAGIN, 2012,
p.7, tradução nossa)
22
. A IOR também exerce
influência nas esferas social, econômica e edu-
cacional, provendo uma base para a constitui-
ção de um aumento de influência política e
adquirindo a capacidade de legitimar algumas
das políticas do Kremilin (LOMAGIN, 2012).
Para Lomagin (2012), a IOR teve êxito no que
concerne à restauração de seu poder nas últi-
mas décadas. A relação entre Estado e Igreja
na Rússia contemporânea é caracterizada pelo
compartilhamento de uma ideologia naciona-
lista por ambas as instituições, visando à “res-
tauração do poder russo após a desorganização
que seguiu o fim da União Soviética” (LOMA-
GIN, 2012, p.14, tradução nossa)
23
.
21 e areas of church-state co-operation in the present his-
torical period; peacemaking on international, inter-ethnic
and civic levels and promoting mutual understanding and
co-operation among people, nations and states; dialogue
with governmental bodies of all branches and levels on is-
sues important for the Church and society, including the
development of appropriate laws, by-laws, instructions and
decisions; work of ecclesiastical and secular mass media;
22 Grown as a force, which was capable of generating ideas and lob-
bying in favour of certain directions of Russian foreign policy.
23 Restoring Russias might after the disarray that followed the
end of the Soviet Union
Além disso, observa-se que a instituição
declara que sua jurisdição se estende a pessoas
de fé ortodoxa nos territórios classificados
como canônicos, fazendo referência aos terri-
tórios de diversos países, como as ex-repúblicas
soviéticas, assim como China e Japão (DECR,
1997-2019e). Com base nessa declaração, é
possível associar o discurso relativo à jurisdi-
ção do Patriarcado de Moscou com a proje-
ção da Rússia enquanto protetora dos cristãos
ortodoxos para além do território russo, ideia
compartilhada por grande parte da população
de países do leste europeu e/ou das ex-repúbli-
cas soviéticas.
Na contemporaneidade
24
, a IOR assume
um papel diferente daquele assumido durante
o período soviético; no que concerne à políti-
ca externa da Rússia pós-soviética, Lomagin
(2012) afirma que a instituição participou de
projetos de integração no território da antiga
União Soviética” (LOMAGIN, 2012, p.2, tra-
dução nossa)
25
. Com essa mudança, a IOR se
projeta de forma mais ativa no âmbito inter-
nacional, articulando politicamente com ins-
tituições internacionais como a Organização
das Nações Unidas e a União Europeia (LO-
MAGIN, 2012).
Como demonstrado previamente, a Igre-
ja Ortodoxa sempre esteve presente nos con-
textos políticos (doméstico e externo) russos.
Mesmo durante o período soviético, a tradição
de uma Igreja sujeita à autoridade do Estado
(que data desde o governo de Pedro, o Grande)
24 Devido ao escopo desta pesquisa, optou-se pela utilização
dos termos “contemporaneidade” (termo utilizado por Lo-
magin (2012) em seu artigo para se referir à Rússia após o
fim da URSS e a partir dos anos 1990 - e “pós-soviético
como o contexto social russo desde o fim da União Soviéti-
ca até o momento no qual este artigo foi escrito.
25 Integration projects on the territory of the former Soviet
Union.
21 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.15 - 23, dez. 2019
foi mantida, de modo que o próprio governo
soviético havia utilizado a Igreja como instru-
mento de política externa (HERPEN, 2016).
Já na primeira década do século XXI, a IOR
trabalhou duro para aperfeiçoar seu relacio-
namento com as primeiras administrações de
Putin (2000-2008)” (ANDERSON, 2016,
p.15, tradução nossa)
26
.
A cooperação entre Estado e Igreja adqui-
re “um novo patamar” sob o governo Vladimir
Putin, razão pela qual Herpen (2016) define a
Igreja como “um instrumento de soft power
27
da política externa do Kremilin” (HERPEN,
2016, p.132, tradução nossa).
28
Putin assumiu
publicamente sua fé no cristianismo ortodo-
xo em 1993, sendo que seu mandato como
primeiro ministro e subsequentemente pre-
sidente em exercício em 1999 seria marcado
por uma concatenação de motivações pessoais
e políticas. A respeito dessas motivações, Her-
pen (2016) comenta que
Deste ponto, para o novo líder do Kremlin
a aliança com a igreja também era ditada
pela raison d’état, e isso por duas razões. A
primeira razão foi que, quando ele acedeu ao
poder supremo do Estado, Putin instintiva-
mente seguiu a prescrição de Maquiavel de
que era útil para um governante se comportar
como se ele fosse religioso, sem ser necessaria-
mente religioso. A segunda razão foi que ele
entendeu muito bem o papel útil que Igre-
ja Ortodoxa Russa poderia desempenhar na
26 Worked hard to perfect its relationship with the first Putin
administrations (2000-2008).
27 Entende-se soft power como “A habilidade de conseguir o
que você quer por meio da atração em vez da coerção ou pa-
gamento. Surge da atratividade da cultura de um país, ideais
políticos e políticas” (NYE, 2004, p.10, tradução nossa). No
original: “It is the ability to get what you want through attrac-
tion rather than coercion or payments. It arises from attrac-
tiveness of a country’s culture, political ideals and policies.
28 A new high; a “soft-power” tool of the Kremlins foreign policy.
reconstrução do império perdido (HERPEN,
2016, p.134, tradução nossa).
29
Anderson (2016) argumenta que, a des-
peito de a Rússia ser, constitucionalmente, um
país secular, politicamente, a relação entre a
IOR e Putin faz com que o país não se carac-
terize como tal, uma vez que a IOR se tornou
parte da coalizão conservadora de apoio cons-
truída pelo próprio presidente. A IOR desem-
penha o papel de igreja dominante no país, e
Putin já chegou a afirmar que “a ortodoxia é
um elemento central da identidade civilizacio-
nal da Rússia” (ANDERSON, 2016, p. 4, tra-
dução nossa).
30
Desta forma, pode-se afirmar que Putin
incorporou a religião à política externa, consi-
derando a importância de indivíduos falantes
da língua russa no exterior (DEMYDOVA,
2019). Ainda no que diz respeito à política
externa russa, Demydova (2019) o grupo de
trabalho do Ministério Russo das Relações Ex-
teriores e a Igreja Ortodoxa Russa, que existe
desde 2003 e se reúne anualmente para discutir
questões relevantes da política externa da Rús-
sia. Vale mencionar também que a IOR parti-
cipa ativamente na formulação de políticas do
Kremlin; na política externa, a IOR também
influencia em questões relacionadas à educação,
à cultura e à política (DEMYDOVA, 2019).
Por fim, sugere-se algumas observações.
Em primeiro lugar, é possível notar que, ao
29 From this point, for the new Kremlin leader the alliance
with the church was also dictated by the raison d’état, and
this for two reasons. e first reason was that when he ac-
ceded to the supreme power of the state, Putin instinctively
followed Machiavelli’s precept that it was useful for a ruler
to behave as if he were religious without necessarily being
religious.e second reason was that he understood full
well the useful role the Russian Orthodox Church could
play in the reconstitution of the lost empire.
30 A core element of Russias civilizational identity.
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longo da história russa, Estado e Igreja sempre
estiveram próximos (HERPEN, 2016). A re-
ligião esteve arraigada na cultura russa, sendo
um elemento constituidor da identidade rus-
sa, como afirmado por Putin (ANDERSON,
2016). Nesse sentido, o cristianismo ortodo-
xo esteve presente tanto na política doméstica
quanto na externa, sendo possível observar uma
interseção entre tópicos como religião, política
externa (pan-eslavismo) e o modelo de relação
entre Estado e Igreja na Rússia; a IOR, como
ator internacional, ainda busca exercer influên-
cia sobre ex repúblicas soviéticas, sendo uma
expressão dessa atuação a ideia de uma suposta
extensão da jurisdição do Patriarcado de Mos-
cou sobre outros países (DECR, 1997-2019e).
A relevância da religião para a sociedade
russa não apenas foi reconhecida por Putin,
como também foi utilizada pelo presidente na
contemporaneidade como um instrumento de
exercício do soft power. A proximidade entre Es-
tado e Igreja na Rússia acaba implicando em po-
líticas que não se configuram como estritamente
seculares, considerando que a IOR possui privi-
légios em relação a outras instituições religiosas
no país, ao mesmo tempo em que demonstra
apoio ao governo Putin (ANDERSON, 2016).
Percebe-se que um estudo histórico que leve em
conta o conceito de symphonia pode colaborar
para estudos sobre a Rússia contemporânea.
Conclusões
Buscou-se, neste trabalho, abordar a rela-
ção entre Estado e Igreja na sociedade russa,
desde a adoção do cristianismo ortodoxo na
Kievan Rus, até a ressurgência da Igreja Orto-
doxa Russa na contemporaneidade, de modo
a demonstrar sua atuação como ator político
de relevância em nível internacional. A seguir,
pretende-se argumentar sobre possíveis colabo-
rações deste estudo.
Diferentemente do contexto religioso oci-
dental, no qual houve uma separação entre reli-
gião e política, estas estiveram sempre interliga-
das na sociedade russa (HERPEN, 2016). Essa
diferença pode apresentar implicações para os
estudos do campo das Relações Internacionais.
Levando em conta a origem ocidental do cam-
po das R.I. - cuja origem se encontra relaciona-
da ao pensamento Iluminista e à ideia de um
Estado secular - i.e., a não interferência da reli-
gião na política. Prasad (2014) afirma que uma
vez que a disciplina tem raízes na experiência
secular europeia ocidental, a religião se encon-
trou à margem dos estudos do campo.
Feitas essas considerações, o autor deste ar-
tigo sugere que o caso abordado apresenta duas
implicações. Em primeiro lugar, ao se observar
a sociedade russa por meio de uma perspectiva
baseada nos termos políticos seculares existentes
nos países ocidentais, seria de se esperar que a
religião não fosse incorporada em análises políti-
cas da Rússia. Todavia, o presente estudo buscou
demonstrar como a religião se apresenta como
uma variável que não deveria ser ignorada em es-
tudos sobre as relações internacionais da Rússia.
Com base no argumento de Prasad
(2014), que estudos sobre contextos tais como
a relação de symphonia entre Estado e Igreja na
Rússia, que diferem da ideia ocidental de secu-
larismo intrínseco ao Estado moderno referido
no campo das R.I., também requerem uma re-
flexão acerca do entendimento que se tem sobre
o secularismo do campo. Nesse sentido, ao se
estudar casos similares, é necessária uma aná-
lise que se diferencie do entendimento que se
tem sobre a natureza da política internacional
no Ocidente. Além disso, uma revisão históri-
ca permite a acadêmicos compreender a relação
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Estado-Igreja a partir de uma análise da herança
bizantina da Rússia cristã ortodoxa e como isso
pode apresentar repercussões sobre o compor-
tamento de líderes políticos até os dias de hoje.
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24 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019
A Faith Diplomacy de Xi Jinping: as
implicações político-religiosas do acordo
provisório sobre a nomeação dos bispos
católicos na China
Xi Jinpings Faith Diplomacy: e Political-Religious Implications of the Interim Agree-
ment on the Appointment of Catholic Bishops in China
La diplomacia de fe de Xi Jinping: las implicaciones político-religiosas del acuerdo provi-
sional sobre el nombramiento de los obispos católicos en China
Anna Carletti
1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p24
Recebido em: 16 de junho de 2019
Aceito em: 30 de setembro de 2019
Resumo
O artigo visa identificar os motivos que levaram o atual governo de Pequim a assinar um
acordo provisório com a Santa Sé aceitando sua participação na nomeação dos bispos chi-
neses. A pesquisa pode ser enquadrada no âmbito das análises de Política Externa.
Palavras-chave: China. Santa Sé. Diplomacia da Fé.
Abstract
e article aims to identify the reasons that led the current Beijing government to sign an
interim agreement with the Holy See accepting their participation in the appointment of
the Chinese bishops. e research can be framed within the scope of Foreign Policy analysis.
Keywords: China. Holy See. Diplomacy of the Faith.
Resumen
El artículo tiene como objetivo identificar las razones que llevaron al actual gobierno de
Beijing a firmar un acuerdo provisional con la Santa Sede aceptando su participación
en el nombramiento de los obispos chinos. La investigación puede enmarcarse dentro del
alcance del análisis de la política exterior.
Palabras clave: China. Santa Sede. Diplomacia de la fe.
1 Doutora em História (2207) pela UFRGS e Pós-Doutora em Ciência Política (2011) pela mesma instituição. Professora Associada
do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e Professora da Pós-Graduação de Relações
Internacionais da UEPB. Residente no Brasil em Santana do Livramento (RS). https://orcid.org/0000-0002-7998-4457
Artigo
24 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte,
ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019
25 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019
Introdução
Em setembro de 2018, a Republica Popular
da China (RPCh), sob o comando de Xi Jinping e
a Santa Sé liderada pelo Papa Francisco assinaram
um acordo provisório sobre a espinhosa questão
da nomeação dos bispos chineses. Tal acordo foi
considerado por estudiosos da China e Santa Sé
(SISCI, 2018; CHAMBON, 2018), como um
evento histórico dentro das relações entre o gigante
da Ásia e o menor estado do mundo, a Cidade do
Estado do Vaticano, base territorial da Santa Sé,
única instituição religiosa reconhecida como sujei-
to internacional que mantém relações diplomáti-
cas com cerca de 180 países. A desconfiança chine-
sa em relação à prerrogativa do Papa, chefe de um
estado estrangeiro, de nomear figuras públicas
atuantes no território chinês, como são os bispos
católicos, gerou desde o início das relações entre
os dois atores estatais, discussões sobre as modali-
dades dessas nomeações. A partir da proclamação
da República Popular da China, em 1949, sob a
liderança de Mao Zedong e da ruptura das relações
diplomáticas com a Santa Sé em 1951, quando da
fuga para Taiwan do então núncio apostólico da
Santa Sé, Antonio Riberi, tal questão se tornou
uma dificuldade aparentemente insuperável pela
convicção por parte do governo comunista de que
a nomeação dos bispos chineses por parte do Papa
constituísse uma ingerência política indevida e
uma violação da soberania do Estado chinês.
Com efeito, o governo de Pequim não
conseguia entender porque um chefe de um
Estado estrangeiro, a saber, o estado da Cidade
do Vaticano, reivindicava para si o direito de
nomear bispos chineses que operariam dentro
do território chinês. De acordo com a visão das
autoridades de Pequim da época, isso poderia
configurar-se como uma tentativa de interferir
na construção da Nova China.
A partir do pontificado de João XXIII,
que assumiu o comando da Santa Sé em 1958,
registraram-se tentativas de diálogo instauradas
mais por iniciativa da Santa Sé que do próprio
governo chinês visando retomar as relações
diplomáticas com a RPCh. Contudo, as de-
mandas chinesas para que as relações fossem
retomadas baseava-se sempre em dois pontos
considerados condições sine qua non para a
retomada do diálogo: a primeira que dizia res-
peito à cessão de ingerência por parte da Santa
Sé no que dizia respeito à nomeação dos bispos
chineses e a segunda que a Santa Sé rompesse
suas relações diplomáticas com Taiwan.
Em realidade, a repetição quase que retóri-
ca dessas duas demandas consideradas necessári-
as para que se iniciasse um diálogo com a Santa
Sé pareciam um pretexto por parte do governo
chinês para esconder a falta de interesse por parte
das autoridades de Pequim em retomar relações
diplomáticas com um estado cujo interesse na-
cional é predominantemente ligado ao fator reli-
gioso e que não poderia oferecer nada que fosse,
naquele momento, de interesse do governo chinês.
Contudo, quando da eleição do Papa Fran-
cisco contemporânea à chegada de poder de Xi
Jinping à presidência da República Popular da
China, pareceu que algo mudara. O novo pres-
idente começou a prestar mais atenção aos ape-
los lançados pelo Papa Francisco para que tivesse
início uma nova rodada de negociações entre os
dois interlocutores. As missivas da Santa Sé, pela
primeira vez, obtiveram resposta por parte das
autoridades de Pequim diretamente ou indireta-
mente. O acordo provisório assinado em setembro
de 2018 pode ser considerado o resultado visível
desta mudança por parte do governo chinês.
Frente a isso, o artigo visa identificar os mo-
tivos que levaram o governo de Pequim a assinar
um acordo provisório com a Santa Sé aceitando
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sua participação na nomeação dos bispos chine-
ses. A pesquisa pode ser enquadrada no âmbito
das análises de Política Externa, onde elementos
como cultura e religião, em particular a chamada
Faith Diplomacy emerge como um fator condi-
cionante na construção das relações de força no
cenário internacional (LEIGHT, 2011).
De acordo com Zhang (2011), os ob-
jetivos da Diplomacia da Fé chinesa incluem
promover uma compreensão internacional e
aceitação das políticas religiosas da China, de-
fendendo as atuações chinesas para com a re-
ligião, melhorando a imagem da China no ex-
terior, contribuindo desta forma à construção
de um mundo harmonioso.
O uso da Faith Diplomacy por parte de Xi
Jinping, desde o início de seu primeiro man-
dato político, leva à pergunta principal de nos-
sa pesquisa: o que mudou na política externa
chinesa para que Xi Jinping aceitasse assinar
um acordo provisório com a Santa Sé para no-
meação dos bispos chineses?
A hipótese a ser verificada é que a Repúbli-
ca Popular da China na sua atual busca de ex-
troversão internacional esteja fazendo uso não
apenas de tradicionais instrumentos de hard
power, mas que esteja apostando no uso de soft
power (ou poder suave, poder branco) em sua
política externa principalmente para mitigar as
inevitáveis perceções suscitadas em seus vizin-
hos frente à sua expansão geopolítica e militar.
Neste contexto, nos parece que o presidente Xi
Jinping tenha identificado a Santa Sé como um
sujeito internacional dotado de grande influên-
cia no âmbito mundial e que poderia legitimar
e apoiar sua busca por ocupar um lugar de
destaque no atual sistema internacional.
Para testar esta hipótese, na primeira parte do
artigo será analisado o conceito da Faith Diploma-
cy - considerada parte do emprego do soft power - e
seu uso por parte do governo chinês aplicando-o
especificamente ao estudo de caso das relações do
governo chinês com a Santa Sé. Na segunda parte
do artigo, serão evidenciados os principais avanços
que ocorreram nas relações entre a RPCh e a San-
ta Sé a partir de 2013, sublinhando as inéditas ini-
ciativas de aproximação tomadas pelo governo de
Pequim que pela primeira vez decidiu responder
aos apelos da Santa Sé. A terceira e última parte
do artigo será dedicada à análise das implicações
político-religiosas do acordo provisório assinado
em 22 de setembro de 2018 apresentando tam-
pem as conclusões da pesquisa.
O estudo envolverá a análise qualitativa de
fontes primárias e secundárias quais documen-
tos oficiais do governo chinês e e da Santa Sé,
assim como estudos de intelectuais chineses e
ocidentais sobre as relações entre os dois estados.
A Faith Diplomacy de Xi
Jinping
Desde sua chegada ao poder em 2013, o
governo de Xi Jinping diferenciou-se dos gov-
ernos que o precederam, sobretudo pelo forte
sentimento nacionalista que caracterizou seus
primeiros atos políticos, principalmente no que
se refere a sua política externa. Ao lançar o lema
de seu governo “O sonho chinês” que implicaria
no Ressurgimento da China, o líder da quinta
geração política chinesa mostrou claramente
sua intenção de afastar-se da política externa de
baixo perfil inaugurada pelo Deng Xiaoping na
década de 1980 e seguida pelos sucessivos li-
deres políticos até a chegada de Xi Jinping (BA-
TES, 2017). De acordo com Estebam (2017,
p. 3, tradução nossa)
2
, Assim como acontece
2 Al igual que sucede en otras áreas, también en política exte-
rior Xi Jinping ha mostrado mayor capacidad de liderazgo
que sus dos inmediatos predecesores (Jiang Zemin y Hu Jin-
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em outras áreas, também em política externa
Xi Jinping mostrou maior capacidade de lid-
erança que seus imediatos predecessores (Jiang
Zemin e Hu Jintao) proporcionando uma vira-
da diplomática de uma envergadura sem prece-
dentes desde os tempos de Deng”.
Para alcançar o objetivo de levar a China
a reocupar um lugar de destaque dentro do
sistema internacional, Xi Jinping está fazendo
uso tanto de instrumentos tradicionais de pod-
er conhecidos como hard power que de outros
meios de fortalecimento de sua imagem no
âmbito internacional que Joseph Nye batizou
de soft power (ou poder suave, poder branco).
De acordo com Becard (2019), o conceito de
soft power criado pelo Nye em 1990 foi intro-
duzido na China por Wang Huning que defin-
iu este conceito como a cultura que representa
o poder de um país. Com o passar do tempo,
porém, debates acadêmicos na China apon-
taram à necessidade de traduzir o conceito de
soft power de Nye para um conceito de soft pow-
er com características chinesas. Isso resultou em
uma alteração do conceito original que passou
a ser chamado de Chinese Soft Power (GLA-
SER, MURPHY, 2009). Mesmo concordando
com a definição de Nye que sublinhava o pod-
er de atração de um país por meio da cultura,
política externa e outros valores, os acadêmicos
chineses defendiam uma visão mais abrangente
do conceito chinês de soft power, envolvendo
fatores como o desenvolvimento econômico da
China e o Consenso de Pequim como caracte-
rística proeminente do soft power.
Acadêmicos chineses enfatizam que o sucesso
socioeconômico da China e sua experiência
com o desenvolvimento dão oportunidade
para o poder brando. Relações diplomáticas
tao) propiciando un giro diplomático de una envergadura sin
precedentes desde los tiempos de Deng.
sofisticadas e comportamento respeitável na
arena internacional também são endossadas
para melhorar o poder brando de um país.
(OSMAN, 2017, p. 6, tradução nossa).
Conforme Becard, a promoção do soft power
como meio de melhorar a imagem chinesa frente
à comunidade internacional foi incentivada pelo
governo de Pequim desde a década de 1990, so-
bretudo após os acontecimentos da Praça Tian
Anmen, tendo visível aumento em 2008, após o
sucesso das Olimpíadas de Pequim (2019).
No âmbito deste esforço de implementar o
que foi chamada de diplomacia cultural, encon-
tramos também o conceito bastante recente de
Faith Diplomacy (Diplomacia da Fé). Em 2001,
o então presidente Jiang Zemin pela primeira
vez reconheceu que a religião poderia agir como
força estabilizadora na sociedade e, assim, pode
ser considerada uma força positiva para o de-
senvolvimento nacional (LEUNG, 2005). De
acordo com Chu (2011, p. 53, tradução nos-
sa)
4
as religiões são consideradas um recurso
diplomático por parte do governo chinês”.
Conforme Zhang (2011), na China, a
Diplomacia da é um esforço conjunto de
diferentes agências governamentais coordena-
do pelo Escritório Estatal de Assuntos Religi-
osos, O Escritório de Informação do Conselho
Estatal, o Ministério da Cultura, O Departa-
mento do Trabalho da Frente Unida do Partido
Comunista assim como o Conselho Nacional
das Religiões.
No que diz respeito às relações com o a
Santa , desde que os canais de diálogos foram
3 Chinese academics stress that Chinas socioeconomic success
and its experience with development give opportunity for
soft power. Sophisticated diplomatic relations and respect-
able behavior in the international arena are also endorsed to
improve a nations soft power.
4 religions are considered by the Chinese government a dip-
lomatic resource”.
28 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.24 - 33, dez. 2019
reabertos, a saber, durante o pontificado de
João Paulo II, nunca foram registrados avanços
significativos como ocorreu a partir de 2013,
ano em que Xi Jinping assumiu a presidência
da RPCh e o Papa Francisco foi eleito novo
pontífice da Igreja Católica.
Os principais avanços nas
relações China-Santa Sé
(2013-2018)
A partir do primeiro mandato dos dois
líderes, o da China, e o da Santa Sé, é possí-
vel identificar passos importantes dados pelo
governo de Pequim em direção a uma possível
normalização das relações com a Santa Sé, fa-
zendo justamente uso deste instrumento de soft
power que é a Faith Diplomacy.
O primeiro passo ocorreu no segundo ano
do pontificado de Francisco quando Pequim
permitiu que o Papa Francisco entrasse no es-
paço aéreo chinês durante seu vôo para a Coreia
do Sul. A permissão se repetiu outras duas vezes
durante as viagens realizadas pelo Papa na Ásia.
Mas a virada e a aceleração na aproximação
entre as duas partes foi identificada pelo profes-
sor da Renmin University de Pequim, Franc-
esco Sisci durante a visita que os dois lideres,
o presidente Xi Jinping e o Papa Francisco fiz-
eram no mesmo período aos Estados Unidos.
De acordo com Sisci, na sua visita aos EUA,
Xi Jinping esperava receber a máxima atenção
dos meios de comunicação norte americanos
assim como ocorrera nas visitas dos seus prede-
cessores. Contudo, ele não havia calculado que
a visita do Papa poderia ofuscar sua presença
no país. Na visão de Sisci (2018, p. 2) “esse fato
fez com que se entendesse de forma concreta o
que alguns, na China, já diziam há algum tem-
po, mas que não era entendido pela liderança,
isto é, o super poder suave do Papado”. Xi Jin-
ping percebeu, de acordo com a análise do Sisci
(2018), que a questão China-Santa Sé até então
considerado como um assunto domestico, era,
ao contrário, uma questão relacionada à política
externa. É interessante o raciocínio que o Sisci
apresenta sobre a mudança da percepção chine-
sa a propósito das relações China-Santa Sé,
Se a Santa Sé é a super potência, o pensamento
se torna: somos nós, chineses que devemos nos
inserir nesse mundo onde o Vaticano conse-
gue ser tão importante. Devemos ter um senso
de urgência. Em segundo lugar, chega tam-
bém um cálculo de risco. Se o Vaticano é tão
poderoso, não se trata mais de gerir esses pou-
cos milhões de católicos chineses. Talvez eles
possam nos ajudar, mas talvez até prejudicar
nossa posição no mundo. (SISCI, 2018, p. 3).
A entrevista concedida pelo Papa Francis-
co ao professor Sisci logo depois da visita aos Es-
tados Unidos pareceu confirmar tal percepção.
Na entrevista, o Papa demonstrou grande ad-
miração para com a China definindo-a como
um país de grande cultura que não deveria ser
temida mas da qual poderíamos aprender, uma
nação que poderia dar grande contribuição ao
resto da humanidade (SISCI, 2016).
A entrevista teve repercussões bastante
positivas na China sendo replicada e comen-
tada por diversos jornais chineses, incluindo os
mais próximos ao governo de Pequim como o
Jornal Global Times que comentou em grande
medida a entrevista (GLOBAL TIMES, 2016).
É importante sublinhar como os jornais próx-
imos ao governo de Pequim e jornais italianos
próximos ao Vaticano contribuíram à aproxi-
mação das duas partes veiculando as intenções
das respectivas partes em relação à questão. Do
lado chinês, jornais próximos ao governo de
Pequim, como o já mencionado Global Times
usado pelo governo de Pequim para fazer con-
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hecer suas orientações no exterior, publicou,
naquele ano 04 artigos
5
sobre a questão, fato
inédito que evidenciou o incremento de inter-
esse da China em relação à questão das relações
com a Santa Sé.
Em agosto de 2016, pela primeira vez na
história das relações entre China e Santa Sé, o
presidente da RPCh respondeu à mensagem
de um Papa e enviou de presente uma cópia
da Estela Cristã da cidade de Xi’an do século
VII. Lembramos que no passado, vários Papas
dirigiram missivas aos presidentes chineses, ma
nenhum obteve resposta (SISCI, 2018).
Outro passo importante foi o discurso
proferido, sempre em 2016, pelo Secretário de
Estado da Santa Sé, Pietro Parolin, sobre a im-
portância do papel desenvolvido na China pelo
Cardeal Celso Costantini na década de 1920.
O discurso pronunciado por um figura politi-
camente importante (ele seria como o Ministro
das Relações Exteriores de um Estado) ressoou
positivamente em Pequim principalmente pelo
fato do Secretário de Estado evidenciar a renun-
cia do Costantini a ser nomeado cardeal na Chi-
na para que fosse nomeado um cardeal chinês,
e além disso por ser quem procurou que a Santa
Sé conseguisse estreitar relações diplomáticas di-
retas com a China sem ter que passar pela inter-
mediação da França. A mensagem que chegou
aos ouvidos de Pequim era que a Santa Sé apo-
iava o processo de sinicização da Igreja Católica
na China e que não estava ligada a nenhuma
potência hegemômica (SISCI, 2018).
Em 29 de outubro de 2016, realizou-se um
congresso organizado pela Universidade do Povo
de Pequim (Renmin University), fundada por
Mao Zedong e voltada principalmente ao estu-
5 Cautious optimis over Sino-Vatican ties (28/12/2016);
Between God and Caeser (25/10/2016); LitFest 2016
(10/03/2016); From Rome to Beijing (25/2/16).
do de história e política. O discurso de Parolin
foi objeto de debate e aprofundamento por parte
dos acadêmicos, e considerado fundamental para
que as autoridades de Pequim aceitassem dis-
cutir um possível acordo em relação à nomeação
dos bispos chineses. Na visão do Sisci, a questão
Santa Sé-China se tornou, aos olhos chineses,
fator condicionante nas mudanças que estavam
ocorrendo no cenário internacional, principal-
mente as que resultaram da eleição de Donald
Trump à presidência dos Estados Unidos. Eles
perceberam como a Santa Sé, a diferença dos
tempos de João Paulo II, não se alinhara com o
poder norte-americano. O Papa Francisco esta-
va seguindo seus objetivos estratégicos indepen-
dentemente da política dos Estados Unidos e,
mesmo assim, sua influencia internacional con-
tinuava crescendo. (SISCI, 2018, p. 8).
No mês de junho de 2017, uma visita do
diretor do Fundo de Investimentos Culturais
da China ao Papa, levou à decisão de realizar
uma mostra conjunta dos Museus Vaticanos
em Pequim e do Museu da Cidade Proibida em
Roma, junto aos Museus Vaticanos. Esta inici-
ativa da mostra cultural conjunta foi noticiada
por parte da China batizando-a de Diploma-
cia da Arte e foi logo comparada à diplomacia
do Ping-pong que levou à normalização das
relações entre China e Estados Unidos na déca-
da de 1970 (DENG XIAOCI, 2017).
Em seguida, teve a visita do Papa ao Mian-
mar. Esta visita foi acompanhada com particu-
lar interesse pelo governo de Pequim porque
Mianmar é um país estrategicamente impor-
tante para o projeto chinês das Novas Rotas da
Seda. As autoridades chinesas pareceram satis-
feitas pelo apoio aberto que o Papa deu à et-
nia minoritária muçulmana dos Rohingya de-
safiando os interesses econômicos do governo
do Mianmar. A China, contrariamente à sua
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política de não interferência nos assuntos inter-
nos de outros países, no caso do Mianmar es-
colheu uma política de intervenção visando re-
duzir ao mínimo os fatores de desestabilização
que colocariam em risco seus investimentos na
região (RAMACHANDRAN, 2017). O Glob-
al Times, pela primeira vez publicou uma arti-
go inteiramente dedicado à visita e um grupo
de sacerdotes chineses participaram da missa
na catedral de Yangoon exibindo a bandeira
nacional da Republica Popular da China e um
cartaz com a escrita “Venha logo Santo Padre”.
Obviamente eles não poderiam fazer este con-
vite se não tivessem tido a permissão oficial
do governo comunista. (POPE URGES RE-
SPECT... 2017)
Tais avanços, consequência da decisão do
governo de Pequim de mudar o rumo de suas
relações com a Santa Sé, teve como resultado
concreto a assinatura de um acordo provisório
sobre a nomeação dos bispos chinês. Vamos ver
na próxima seção do artigo quais as implicações
religiões e políticas deste acordo.
O acordo provisório sobre
a nomeação dos bispos:
implicações políticas e
religiosas nas relações entre
Santa Sé e República Popular
da China.
Ao longo desses anos, numerosas visitas de
representantes da Santa Sé na China e vice-ver-
sa ocorreram para discutir um possível acor-
do sobre a nomeação dos bispos chineses. Tal
questão era considerada inaceitável por parte
do governo de Pequim que a interpretou como
uma ingerência política por parte de um chefe
estrangeiro, o Papa, mesmo que ele se consid-
erasse e fosse considerados pelos demais países
da comunidade internacional mais um chefe
religioso que político. A polêmica questão da
nomeação dos bispos chineses se agravou logo
depois da proclamação da República Popular da
China em 1949. A China nacionalista e a San-
ta Sé haviam estabelecido relações diplomáticas
em 1942, recebendo em suas respectivas sedes
as credenciais de seus embaixadores (CAR-
LETTI, 2008).
Tais relações, porém, foram interrompidas
pelo governo comunista em 1951. Os motivos
que levaram o governo comunista a romper as
relações com a Santa Sé devem ser compreendi-
dos no âmbito da antiga desconfiança chinesa
em relação a esta religião estrangeira que por
longo tempo se associara aos interesses colo-
nizadores do Ocidente.
Na época sucessiva ao fim do Segundo
Conflito Mundial, o alinhamento da Santa Sé
ao lado das potências ocidentais, contra o bloco
comunista, foi um elemento ulterior que con-
venceu Mao Zedong a incluir a Igreja Católica
na lista dos inimigos da nova China. Em 1957,
o governo de Pequim fundou a Associação
Patriótica Católica Chinesa (APCC), para ex-
ercer a função de ligação entre o Partido Co-
munista da China e a Igreja Católica na China.
Em 1958, o governo chinês, provavelmente
como demonstração de força, por meio da
APCC, decidiu consagrar dois bispos católicos
independentemente da Santa Sé. Os dois can-
didatos enviaram às pressas à Santa Sé o pedido
de reconhecimento da sua consagração. A Santa
Sé, porém, rejeitou as consagrações episcopais
julgando-as ilícitas. O governo chinês recebeu
tal rejeição como uma espécie de declaração de
guerra por parte da Santa Sé e devolveu com a
mesma moeda (CARLETTI, 2008).
A partir daquele momento abriu-se uma
fenda, não somente entre a Santa Sé e a Chi-
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na, mas no âmbito da própria Igreja Católica
na China, que se encontrou dividida. Nascem
então, de um lado a Igreja Patriótica ou Oficial
constituída por católicos, membros do clero e
bispos que aceitaram se registrar junto ao órgão
da Associação Patriótica da Igreja Católica e,
de outro, a Igreja Clandestina, constituída por
católicos, membros do clero e bispos que con-
sideravam tal registro como uma traição à co-
munhão com o Papado de Roma. O governo
chinês sempre considerou os membros da Ig-
reja Clandestina como adversários políticos da
RP da China, passíveis de perseguição e prisão,
não tanto pelo fato de ser religiosos quanto
por se negarem a ser controlados pelo gover-
no de Pequim. Esta divisão dificultou muito as
negociações entre a China e Santa Sé até que
Bento XVI, em 2007, com uma carta dirigida
aos católicos chineses convidou todos os mem-
bros da Igreja Chinesa a superar esta divisão e
se tornar uma Igreja unida sem distinções entre
Igreja Oficial e Igreja Clandestina (BENTO
XVI, 2007). Francisco seguiu o mesmo camin-
ho incentivando as negociações e encorajando
sempre a Igreja chinesa a se unir.
A partir destas premissas histórico-po-
líticas, entende-se o porquê o comunicado
oficial da Santa Sé, em 22 de setembro de
20918, anunciando a assinatura de um acordo
provisório sobre a nomeação dos bispos desper-
tou tanto interesse na comunidade internacio-
nal que o definiu como um fato histórico. O
acordo foi assinado pelo Monsenhor Antoine
Camilleri, Subsecretário para as Relações da
Santa Sé com os Estados e pelo Senhor Wang
Chao, Vice- ministro dos Assuntos Exteriores
da República Popular da China, respetiva-
mente chefes das Delegações vaticana e chinesa
(SANTA SEDE, 2018). O comunicado evi-
denciou que a questão da nomeação dos bispos
dizia respeito a uma questão de grande relevo
para a vida da Igreja e que o acordo criaria as
condições para uma mais ampla colaboração
em nível bilateral (SANTA SEDE, 2018).
Apesar de o acordo tratar apenas de
matéria religiosa, mesmo fundamental para a
Igreja Católica, podemos entrever, portanto,
desdobramentos mais amplos que dizem res-
peito também às relações institucionais entre
Santa Sé e China, como a futura retomada das
relações diplomáticas entra os dois estados.
O jornal chinês Global Times publicou
dois dias depois uma matéria sobre o acordo
apontando que seus resultados iam muito além
da questão da nomeação dos bispos chineses.
Com efeito, o acordo demonstrou que as duas
partes conseguiram superar preconceitos que
impediam uma aproximação efetiva.
ao assinar o acordo provisório, os dois lados
superaram uma importante barreira cogni-
tiva. O Vaticano eliminou seu mal-entendi-
do anterior sobre o sistema social e político
chinês e a comunidade católica chinesa. [...]
Vaticano demonstrou muita sinceridade.
Por outro lado, a China também modificou
sua atitude em relação ao Vaticano. A Chi-
na manterá seu princípio religioso de inde-
pendência e auto-gestão, mas ao mesmo
tempo respeitará a prática internacional. É
por isso que as negociações continuaram.
(CHENYAN, 2018)
O acordo sanciona a participação conjunta
das duas partes na escolha dos bispos chineses.
O lado chinês seleciona um candidato e o apre-
senta ao Papa que tem o poder de veto. O texto
do acordo não foi publicado até o momento
porque, por ser provisório, poderá ser reavalia-
do e revisado a qualquer momento. Como par-
te do acordo, o Papa Francisco reconheceu a le-
gitimidade de sete bispos chineses que haviam
sido nomeados apenas pelo governo chinês.
Com este ato, acabaria, de acordo com o Car-
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deal Parolin, “a divisão até então existente en-
tre bispos legítimos e ilegítimos” (PULLELLA,
2018). De agora em diante, todos os bispos da
China estariam em comunhão com o Papa.
Conclusões
No dia 26 de setembro, Papa Francisco
enviou uma mensagem aos católicos chineses
e ao resto da Igreja Católica explicando o teor
do acordo assinado poucos dias antes (FRAN-
CISCO, 2018).
É importante evidenciar 03 pontos fun-
damentais dessa mensagem que podem nos
ajudar a compreender as implicações mais
amplas deste acordo. O primeiro reitera a un-
idade da comunidade católica na China, ou
seja reconhece a legitimidade da Igreja Oficial
e de certa forma deslegitima o papel da Igreja
Clandestina. Isso significaria que gradualmente
a perseguição religiosa dos católicos por parte
do governo de Pequim deveria se reduzir não
tendo mais razão para continuar pois os mem-
bros da comunidade católica chinesa, seguindo
as diretrizes do Papa Francisco poderiam se re-
gistrar junto ao governo sem ter medo de trair,
com este ato, sua lealdade ao Papa.
Segundo, ele convida os católicos chine-
ses a abraçar os projetos nacionalistas da China
e trabalhar para o ressurgimento do país. Este
convite é importante pois nos parece ir ao en-
contro do processo de sinacização das religiões
na China anunciado por Xi Jinping durante o
XIX Congresso do Partido Comunista e oficial-
izado quando da publicação do Regulamento
sobre Assuntos Religiosos publicado pelo go-
verno em 2018.
Terceiro, e não menos importante, Fran-
cisco deixa aos católicos chineses a liberdade de
poder contribuir de forma crítica mas respeitosa
à construção de uma sociedade chinesa que res-
peite a dignidade de cada ser humano. Isso talvez
seja a parte que o governo de Pequim menos
aprecie, mas que descreve um papel que no dis-
curso da Igreja Católica é irrenunciável, o de tra-
balhar para a plena realização do ser humano.
Portanto, o acordo garantiu aparente-
mente benefícios para ambas as partes. Como
o Papa Francisco afirmou é um instrumento
que não poderá resolver todos os problemas ex-
istentes, mas certamente colocou as bases para
uma aproximação mais profícua entre o menor
estado do mundo e o gigante da Ásia.
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34 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019
Guerra justa insuficiente: a ideia da paz
justa na construção da paz pós-guerra no
cristianismo
Insufficient just war: the idea of a just peace in post-conflict peacebuilding in Christianity
Guerra justa insuficiente: la idea de una paz justa en la construcción de la paz posguerra
en el cristianismo
Joyce Kelly Costa Silva
1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p34
Recebido em: 30 de junho de 2019
Aceito em: 01 de dezembro de 2019
Resumo
A “paz justa” enfatiza a reconciliação e a justiça como paz. O objetivo do artigo é discutir
como essa abordagem fornece uma alternativa à antiga tradição da guerra justa na cons-
trução da paz pós-conflito no cristianismo.
Palavras chave: Religião. Paz. Cristianismo.
Abstract
A peace “just” emphasizes reconciliation and justice as peace. e purpose of the article is
to discuss how this approach provides an alternative to the ancient tradition of just war in
post-conflict peacebuilding in Christianity.
Keywords: Religion. Peace. Christianity.
Resumen
La paz justa“enfatiza la reconciliación y la justicia como paz. El objetivo del artículo es
discutir cómo este enfoque proporciona una alternativa a la antigua tradición de la guerra
justa en la construcción de la paz post-conflicto en el cristianismo.
Palabras clave: Religión. Paz. Cristianismo.
1 Mestra em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (2019), Bacharela em Relações Internacionais pela Uni-
versidade Federal da Paraíba (2016) e Membra do Grupo de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (GEPRIR/
UEPB). ORCID: 0000-0002-0698-8342.
Artigo
34 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte,
ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019
35 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.34 - 41, dez. 2019
Introdução
Os eventos do 11 de setembro e, mais ain-
da, as reações ao 11 de setembro, convenceram
o mundo de que a religião é a única ou a princi-
pal causa dos conflitos internacionais. De fato,
o papel da religião é especialmente evidente
quando invocado para justificar atos de violên-
cia, como os atentados suicidas, e as execuções
ritualizadas de tais atos (OMER, 2010). Toda-
via, muitas vezes as interconexões entre religião
e violência desconsideram que da mesma for-
ma que a religião é um fator importante na di-
nâmica do conflito, ela pode desempenhar (por
meio de líderes religiosos e leigos) uma função
na construção da paz (SMOCK, 2006). Certa-
mente, existem inúmeros exemplos de violên-
cia religiosa em todo o mundo. Mas, afirmar
que a religião é inerentemente violenta é igno-
rar que a paz é um dos principais fundamentos
das principais religiões do mundo.
A contribuição que a religião pode dar
para a paz - como o outro lado da religião no
conflito - está apenas começando a ser explora-
do e explicado. O surgimento desse novo cam-
po de estudos chamado de “construção da paz
religiosa
2
tem como pano de fundo a revisão de
antigos paradigmas, tais como: a guerra justa,
a guerra santa, e o pacifismo. Esses paradigmas
de forte raiz religiosa têm sido por séculos os
principais meios em que a religião se insere nos
debates sobre violência, conflito, guerra e paz
(HERTOG, 2010). Na ética cristã, o pacifismo
representa uma atitude de rejeição à guerra, a
2 A prática e a utilização desse termo envolve tanto o diálogo
inter-religioso, pelos quais indivíduos religiosos discutem o
papel da religião entre as nações, quanto à descrição do tra-
balho de pacificadores cuja motivação das ações em favor de
vítimas e a implementação da paz e da justiça derivam de
uma compreensão particular advinda de uma tradição reli-
giosa (OMER, 2010).
guerra justa está associada à participação quali-
ficada do cristão no serviço militar, já a guerra
santa cristã representada pelas Cruzadas, está
associada ao domínio da Igreja sobre o mundo
(BAINTON, 2008).
A paz justa representa um importante
ponto de virada na forma de lidar com a guer-
ra no pensamento cristão. Além disso, esse pa-
radigma questiona a tradição da guerra justa
justamente como aquela que embora seja im-
portante na limitação e/ou regulação moral da
violência não contempla as questões referentes
ao pós-guerra ou a construção de uma paz sus-
tentável (LOVE, 2018). Considerando que a
grande maioria dos conflitos contemporâneos
envolve uma série de razões, tanto tangíveis
quanto intangíveis, a religião pode ser uma
variável decisiva, capaz de exercer um papel
construtivo, como mediadora e promotora da
reconciliação entre as partes (BERCOVITCH;
KADAYIFCI-ORELLANA, 2009). Segundo
Matyok e Flaherty (2015), não é possível ig-
norar a presença da religião na vida das pes-
soas. Bilhões de pessoas moldam suas vidas a
partir de crenças religiosas. Por isso, a constru-
ção de respostas multidisciplinares ao conflito,
não pode ignorar a presença da religião (MA-
TYOK, FLAHERTY, 2015). Logo, as discus-
sões a respeito da prática da abordagem da “paz
justaé uma oportunidade de demonstrar a
capacidade reconciliatória do cristianismo no
cenário internacional.
3
Diante disso, o presente artigo tem como
objetivo apresentar a nova abordagem da paz
3 Este artigo buscou abordar o cristianismo de forma geral,
fundamentado nos ensinamentos de Jesus Cristo a respeito
do conceito de paz justa. Todavia, é provável que em cada
uma das vertentes do cristianismo (“catolicismos” e “protes-
tantismos” – em referência às várias subdivisões) existam dis-
tinções sobre o significado e a aplicação da paz justa.
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justa como um contraponto à guerra justa na
construção da paz pós-conflito no pensamen-
to cristão. A guerra justa, apesar de contribuir
para as discussões sobre os limites para entrar
em um conflito (jus ad bellum) e para conduzi-
-lo (jus in bello), provou ser suscetível a abusos
políticos, além de conter um número de de-
ficiências conceituais (HOPPE, 2007). Tendo
em vista o “retorno” da religião às Relações
Internacionais (RI), parte-se aqui do pressu-
posto de que há uma influência dessa variável
nas ações dos indivíduos e que essas ações po-
dem favorecer a construção da paz em socieda-
des no pós-conflito.
A tradição cristã da
guerra justa
A tradição da guerra justa surgiu como
uma proposta de regulação dos conflitos por
meio da ética. Ao longo da história humana, as
sociedades passaram a considerar a importância
da ética na guerra. Em quase praticamente to-
das as grandes civilizações do mundo, dos an-
tigos egípcios aos astecas, da Babilônia à Índia,
da China à Europa antiga e contemporânea,
praticamente todos defendem características e
crenças fixas sobre quais são as razões permiti-
das para ir à guerra e quais os meios aceitáveis
para lutá-la. Da mesma forma, em quase todos
os principais documentos religiosos há algu-
ma ponderação sobre a moralização da guerra,
a exemplo da Bíblia cristã, do Bhagavad Gita
hindu, do Tao-te-ching do Taoísmo e do Alco-
rão do Islã (OREND, 2013).
No cristianismo, a determinação básica é
pacifista, derivada dos ensinamentos de Jesus
Cristo. Jesus declarou: “Felizes os que promo-
vem a paz” (BÍBLIA, 2016, p. 1249). Portanto,
o cristão deve trabalhar como um construtor
da paz. Os primeiros cristãos eram pacifistas
e rejeitavam qualquer participação no servi-
ço militar. Segundo Bell (2005), existem pelo
menos duas razões que são tipicamente citadas
para explicar essa posição. A primeira é que os
cristãos primitivos seguiram os ensinamentos
e os exemplos de Jesus Cristo e foram opostos
ao derramamento de sangue e à violência. Esse
é um argumento bastante discutido, mas mes-
mo para os teólogos defensores da guerra justa,
como Agostinho, há o reconhecimento de que
os cristãos primitivos eram mais pacíficos. A se-
gunda razão refere-se ao caráter idólatra que o
serviço militar tinha dentro de Roma. Para um
cristão servir ao exército era preciso jurar leal-
dade e devoção ao Imperador (BELL, 2005).
Um dos primeiros filósofos cristãos a refle-
tir sobre a guerra foi Agostinho (354-430) du-
rante o governo de Constantino. Influenciado
por filósofos romanos, ele ensinou que a guerra
limitada poderia ser um meio legítimo de de-
fender o Império. A guerra era um mal, mas
poderia ser considerada justa quando travada
em prol de propósitos defensivos, por meio de
uma autoridade legítima, com intenções corre-
tas e com dano mínimo. Ao defenderem a paz
de Roma (pax romana), Agostinho argumen-
tava que os cristãos estavam servindo a Deus e
protegendo a pureza do cristianismo contra as
heresias dos povos bárbaros (DUFFEY, 2015).
Para Agostinho a presença dos bárbaros repre-
sentava uma ameaça à unidade e à pureza dou-
trinária da Igreja cristã, ao passo que Roma re-
presentava o lugar de proteção para os cristãos,
a qual, portanto, eles deveriam defender contra
essa ameaça. Assim, ao contrário do pacifismo,
a participação dos cristãos no serviço militar era
moralmente possível diante de uma realidade
bastante problemática e que causava sofrimen-
to enorme nas pessoas (AGOSTINHO, 1996).
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Apesar de a guerra justa ser uma impor-
tante tradição no pensamento sobre a ética
na guerra, ao longo dos anos essa perspectiva
vem recebendo algumas críticas. De acordo
com Bartoli (2004), a tentativa cristã de usar
o poder militar e político durante o governo
de Constantino eram no mínimo ambivalen-
tes, pois, por um lado, inaugurou um novo pe-
ríodo na história da Europa, por outro lado,
possibilitou intervenções violentas desastrosas
como as Cruzadas (BARTOLI, 2004). Scott
Appleby (2000, p. 34), diz que: “a existência da
tradição moral da guerra justa no cristianismo
avança nos argumentos sobre o uso apropriado
da força, mas nunca a resolve”. Para o autor,
a ambivalência e o próprio pluralismo existen-
te dentro das tradições religiosas estimulam o
raciocínio situacional e a liderança pragmáti-
ca (APPLEBY, 2000). Para omas Hoppe
(2007), embora a tradição da guerra justa con-
dene a violência e coloque parâmetros para a
limitação da violência indiscriminada por parte
do Estado, a partir do momento que ela esta-
belece critérios morais que tornam a violência
justificada “como um mal menor”, estas condi-
ções ficam sujeitas a interpretação, e inerente-
mente correm o risco de serem mal utilizadas
(HOPPE, 2007).
De acordo com Selengut (2003), durante
a Idade Média, a doutrina da guerra justa fun-
cionou eficazmente como uma “guerra santa
para o cristianismo. O cristianismo como re-
ligião aceita dentro do Império Romano teve
que proteger suas doutrinas de uma possível
contaminação teológica”. Logo, o “justo” uso
da força foi entendido como forma de preser-
var a fé cristã genuína. Para o autor, a forma
universalista defendida pela fé cristã destinada
a oferecer à única possibilidade de salvação para
toda a humanidade fez com que as guerras em
nome da religião fossem justificadas (SELEN-
GUT, 2003, p. 26). Assim, como aconteceu na
guerra do Afeganistão (2001) e na guerra do
Iraque (2003), os princípios da guerra justa e
os valores ditos “cristãos” foram usados para fa-
zer com que as pessoas acreditassem que essas
guerras eram necessárias e “boas”. De acordo
com Fiala (2008), existe uma romantização em
torno da ideia de guerra justa que não permi-
te enxergar a face brutal, caótica e horrível de
uma guerra (FIALA, 2008).
Diante dessas críticas, é possível consi-
derar a existência de falhas na abordagem da
guerra justa. Além disso, como visto, o argu-
mento da guerra justa cristã pode ser usado
como motivação ou justificativa para o uso in-
discriminado da violência. O fato é que, tanto
o pacifismo cristão quanto a guerra justa cristã
se desenvolveram ao longo da história e busca-
ram à sua maneira responder às mudanças no
cenário político. Nenhuma das posições repre-
senta um sistema fixo de afirmações teológicas
ou éticas. Ambos foram sujeitos a frequentes
deturpações e mal usos. No entanto, muitas
vezes a ênfase na religião como fonte de con-
flito, retirou a força da religião na construção
da paz. Assim, em decorrência das mudanças
no cenário internacional (principalmente após
as Guerras Mundiais)
4
e dadas às limitações da
guerra justa, várias igrejas começaram a discutir
a respeito de uma nova abordagem que estives-
se em conformidade com os ensinamentos de
Jesus Cristo e que tivesse o compromisso para
a paz e não para a guerra. Essas igrejas desen-
4 Um dos aspectos fundamentais dessa mudança é com relação
ao caráter dos conflitos. Antes da Guerra Fria os conflitos
eram marcados por disputas ideológicas entre os Estados.
Com o declínio do confronto Norte-Sul, os conflitos passam
a ocorrer dentro dos Estados e na maioria das vezes derivam
de confrontos de identidade comunitária com base na raça,
etnia, nacionalidade ou religião.
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volveram um novo paradigma que incorpora a
mudança fundamental na prática ética e am-
plia a estrutura de análise e critérios de ação
para a Igreja Cristã no cenário internacional.
Esse novo paradigma é a paz justa, como será
visto a seguir.
A paz justa e a construção da
paz no cristianismo
Desde o final da Segunda Guerra Mundial
têm surgido dentro da tradição cristã aborda-
gens referentes à construção da paz não-violen-
ta (APPLEBY, 2004). A paz justa está inserida
dentro dessa escola de pensamento. Historica-
mente, o movimento pela paz justa surgiu na
Igreja Unida de Cristo (United Church of Christ,
UCC) em 1981 quando, no Sínodo Geral um
delegado trouxe uma resolução convocando a
Igreja a tornar-se uma “igreja da paz” (ligada ao
movimento pacifista). A resolução foi aprovada,
mas ficou claro que era preciso desenvolver essa
abordagem. Sendo assim, em 1983 um grupo
de teólogos e estudiosos se reuniu para criar
fundamentos para essa abordagem, e em 1986,
membros desse grupo criaram um livro, editado
por Susan istlethwaite intitulado “A Just Pea-
ce Church” que se tornou uma fonte primária
para a abordagem da paz justa (UCC, 2015).
Ao longo dos anos a ideia de paz justa foi
se aperfeiçoando e não ficou restrita somente a
Igreja da Paz. Em 2011 a Convocatória Ecumê-
nica Internacional pela Paz (IEPC) do Conselho
Mundial de Igrejas (CMI) produziu dois docu-
mentos seminais: “Um chamado Ecumênico
à paz justa” e a “Companhia da paz justa”. O
primeiro documento declarou que a perspectiva
e o pensamento da guerra justa são obsoletos.
O segundo traz uma extensa orientação sobre
a implementação da teologia da paz justa. Em
ambos os documentos há o argumento de que a
mensagem de Cristo convida os cristãos a com-
prometer-se com o “caminho da paz justa”. Esse
caminho é trilhado por meios de resistência
não-violenta, de transformação de conflitos e de
promoção da reconciliação (BERGER, 2016).
A paz justa cristã traduz a visão bíblica
da paz em termos contemporâneos, a partir da
relação interdependente entre justiça e paz. A
tradução hebraica para paz, o shalom é geral-
mente traduzido com “completude, solidez,
bem-estar e paz”, mas também liga a paz a con-
ceitos como: justiça (mishpat), retidão (tsedeq,
tsedeqah) compaixão (hesed) e veracidade (emet)
(CHURCHES, 2011). De acordo com Smyth
(2008, p. 348), “onde há injustiça ou violência
contra os fracos, a paz de Deus é destinada ao
exílio. A paz traz justiça, e é essa justiça que
assegura que o shalom prevaleça sobre os inte-
resses humanos e falsa paz”. Na prática, pode
haver divergências entre os imperativos da jus-
tiça e a necessidade da paz, no entanto, é den-
tro desse desacordo que a reconciliação é tra-
balhada para estabelecer a paz justa (SMYTH,
2008). De maneira geral, a paz justa significa a
prática da justiça social definida em termos de
reconciliação. Em outras palavras, a justiça se
manifesta na reconciliação, que é o meio para
alcançar o fim que é a paz justa.
5
As discussões sobre a paz justa no cristia-
nismo dizem respeito à revisão de paradigmas
tradicionais ocorridas dentro do novo campo
de estudo da “construção da paz religiosa”, que
enfatiza que da mesma forma que a religião
pode incentivar os conflitos ela pode ajudar a
resolvê-los e construir a paz (APPLEBY, 2000).
5 Embora contenha componentes retributivos, a justiça bíblica
é fundamentalmente sobre restauração, reparação e reconci-
liação. Para saber mais: MARSHALL, Chris. Divine justice as
restorative justice. Center for Christian Ethics, p. 11-19, 2012.
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Segundo Omer (2010), a religião pode ser um
fator importante na construção da paz em pelo
menos três níveis: primeiro, ela motiva e inspira
os indivíduos a agirem de determinada maneira
que promova a paz e a não-violência. Segun-
do, as infraestruturas institucionais podem ser
importantes espaços de mediação e cooperação
entre redes e organizações não-governamen-
tais. Da mesma forma, o prestígio dos líderes
religiosos e atores leigos podem conferir legi-
timidade a processos políticos e institucionais
de reconciliação e cura pós-conflito. Terceiro, a
religião e a tradição oferecem amplos recursos
para reinterpretação de definições etno-religio-
sas de nacionalidade que resultam em práticas
estatais excludentes e discriminatórias e agres-
sões não-estatais (OMER, 2010).
Nessa perspectiva, pressupondo os ensina-
mentos da paz justa, indivíduos, comunidades
e instituições religiosas cristãs estão cada vez
mais atuantes nas tentativas de acabar com os
conflitos violentos e construir a paz em diver-
sas partes do mundo. Apesar de esse fenômeno
ter ganhado maior atenção após a Guerra Fria,
ele não é algo novo. Os exemplos incluem a:
mediação realizada pelos Quakers e financiada
pela fundação Ford na Guerra Civil da Nigé-
ria (1967-1970); os esforços dos Menonitas
por meio do professor John Paul Lederach
6
na Nicarágua na década de 1980; o trabalho
do Conselho Mundial de Igrejas na mediação
e cessação do conflito no Sudão em 1972; a
mediação promovida pela comunidade leiga
católica Sant’Egidio em Moçambique, funda-
6 Lederach é um dos teóricos responsáveis pelas discussões
sobre a construção da paz religiosa. Vale salientar que essas
discussões ainda são iniciais e restritas à Universidade católica
norte americana de Notre Dame. Fazem parte desse campo:
Scott Appleby (2000), Atalia Omer (2010), Daniel Philpott
(2010), entre outros.
mental para por fim a guerra civil em 1992
(HAYNES, 2009).
O caso do Sudão chama a atenção pela
promoção da reconciliação por meio do diálogo
inter-religioso. Depois das negociações de 1972
promovidas pelo Conselho Mundial de Igrejas
terem alcançado sucesso ao encerrar a primeira
guerra civil sudanesa, a dimensão religiosa do
conflito no Sudão passou a ter destaque após
a implantação da sharia (lei islâmica) em se-
tembro de 1983 pelo presidente Numeiry sem
qualquer consideração pelos não-muçulmanos
da região. Historicamente, muçulmanos e cris-
tãos conviviam pacificamente, contudo, após
a implantação forçada da sharia houve um es-
tranhamento entre eles. Todavia, isso foi essen-
cial para que pessoas de diferentes religiões se
unissem em vez de se dividirem para buscarem
soluções para que a paz fosse estabelecida no
Sudão. O Conselho de Igrejas no Sudão do Sul
tornou-se um espaço em que líderes cristãos e
muçulmanos passaram a discutir soluções pací-
ficas para o Sudão (LOWILLA, 2006).
O que chama a atenção nesse caso é que
ao mesmo tempo em que as ações em prol da
paz são efetuadas pelo Conselho Ecumênico de
Igrejas no Sudão do Sul, a guerra geralmente
tem sido interpretada como um conflito envol-
vendo o norte islâmico arabizado dominante,
mais desenvolvido, contra o sul africano, me-
nos desenvolvido e predominantemente cristão
e animista (LOWILLA, 2006). No entanto,
como explica Assefa (1990), seria simplista
demais reduzir as guerras civis no Sudão ba-
seada puramente nas diferenças religiosas. A
divisão religiosa entre cristãos e muçulmanos
se sobrepõem a divisões profundas de raça,
etnia e geografia. A esperança para o Sudão é
que o diálogo possa abrir caminhos para a re-
solução do conflito e diminuição da violência
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(ASSEFA, 1990). Segundo Hayward (2012),
em ambientes conflituosos em que existe algu-
ma divisão religiosa, o diálogo inter-religioso
é uma maneira de construir relacionamentos
cooperativos. O diálogo inter-religioso é capaz
de promover ações transformadoras em prol da
construção de uma paz justa após conflitos vio-
lentos (HAYWARD, 2012).
Conclusão
Scott Appleby (2000) chamou a atenção
para a idéia da “ambivalência do sagrado”, ao
perceber que os ensinamentos, narrativas e rei-
vindicações religiosas têm sido predominan-
temente associados com os conflitos violentos
em todo o mundo. Indiscutivelmente, as ex-
pressões mais audíveis da religião é a associa-
ção dessa variável com a violência no âmbito
político. Contudo, os ensinos, as autoridades
religiosas e os indivíduos têm constituído um
central, embora negligenciado, aspecto da prá-
tica de resolução de conflitos e construção da
paz (APPLEBY, 2000).
Esse artigo buscou apresentar a nova abor-
dagem da paz justa como um contraponto à
tradição da guerra justa na construção da paz
pós-conflito no cristianismo. A paz justa é uma
evolução do conceito de paz no pensamento
cristão. Na Bíblia, a palavra “paz” pode se re-
ferir à ausência de um conflito, mas também
aponta para a presença de algo. A definição da
paz como justiça que se manifesta na reconci-
liação pode ser sem dúvidas uma das grandes
contribuições teológicas para a construção da
paz e, portanto, para uma percepção para o
bem, do papel público da religião.
De fato, existem casos que mostram que os
aspectos mais nobres da religião foram usados
para facilitar a reconciliação desafiando a percep-
ção comum de que essa variável causa violência.
No Sudão do Sul, o diálogo relacional é usado
como plataforma para a reconciliação e mitiga-
ção das animosidades. É certo que isso tem sido
mais uma exceção do que uma regra. No entanto,
isso nos desafia a reconhecer o grande potencial
inerente à religião para amenizar as paixões des-
trutivas e se tornar um instrumento para a paz.
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Relações Internacionais e Religião: Frei
Betto, a crítica do ateísmo do socialismo
internacional e a construção da
laicidade do socialismo cubano
International Relations and Religion: Frei Betto, criticizing the atheism of international
socialism and building the secularism of Cuban socialism
Relaciones internacionales y religión: Frei Betto, la crítica del ateísmo del socialismo
internacional y la construcción de la laicidad del socialismo cubano
Fábio Régio Bento
1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2019v13n3p42
Recebido em: 08 de maio de 2019
Aceito em: 01 de dezembro de 2019
Resumo
Neste artigo estudaremos a experiência política-internacionalista de Frei Betto com o objetivo
de identificar o papel exercido pelo brasileiro na transformação política de Cuba que trocou o
ateísmo de Estado pela laicidade. Utilizamos fontes bibliográficas para a redação e participa-
ção em eventos temáticos para a formulação das aproximações hermenêuticas apresentadas.
Palavras-chave: Frei Betto. Cuba. Relações Internacionais.
Abstract
In this article, we will study Frei Bettos political-internationalist experience in order to
identify the role played by the Brazilian in the political transformation of Cuba, which
changed state atheism by secularism. We use bibliographic sources for the writing and par-
ticipation in events for the formulation of the hermeneutic approaches.
Keywords: Frei Betto. Cuba. International Relations.
Resumen
En este artículo, estudiaremos la experiencia político-internacionalista de Frei Betto con el
objetivo de identificar el papel desempeñado por lo brasileño en la transformación política
de Cuba que cambió el ateísmo del Estado por la laicidad. Utilizamos fuentes bibliográfi-
cas y participar en eventos temáticos para formular los enfoques hermenéuticos presentados.
Palabras clave: Frei Betto. Cuba. Relaciones Internacionales.
1 Pós-doutor junto ao Núcleo de Estudos da Religião do PPGAS da UFRGS com pesquisa sobre Religião e Revolução na América
Central (2015). Doutor em Ciências Sociais pela PUC San Tommaso (Roma, 1996). Mestre em Teologia Moral pela Academia
Alfonsiana da PUC Lateranense (Roma, 1992). Professor associado na Universidade Federal do Pampa onde leciona Política, Re-
lações Internacionais e Religião no curso de Relações Internacionais (campus Santana do Livramento-RS). Professor colaborador
no mestrado em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (campus João Pessoa). Membro do CEPRIR: Centro
de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião. https://orcid.org/0000-0003-3796-1799
Artigo
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Introdução
No capítulo de livro intitulado Religião nas
Relações Internacionais, o britânico Jeffrey Hay-
nes (2016, p. 22), diretor do Centro de Estudos
de Religião, Conflito e Cooperação da London
Metropolitan University (UK), destacou que
há duas categoriais de atores religiosos “ativos
atualmente nas relações internacionais”, os esta-
tais e os não-estatais. Entre os não-estatais estão
“indivíduos, movimentos religiosos transna-
cionais e instituições”, figuras como Desmond
Tutu, Papas como João Paulo II, Papa Francis-
co, movimentos como a Al-Qaeda e instituições
como a Santa Sé/Vaticano (HAYNES, p. 23).
O caso Frei Betto se insere nas três moda-
lidades de ator religioso não-estatal identifica-
das por Haynnes: Betto faz parte do movimen-
to latino-americano da Teologia da Libertação,
situado na esquerda da instituição Igreja Cató-
lica, e se trata de uma biografia politicamente
relevante pela influência local e internacional
gerada por suas obras literárias, várias delas tra-
duzidas em vários idiomas, e sua atuação políti-
ca internacional, que analisaremos neste artigo
do ponto de vista de sua atuação internacional
pela construção da laicidade de experiências
socialistas caracterizadas pelo ateísmo devido
à influência exercida ao longo de décadas pela
União Soviética no socialismo internacional.
Nos cursos de Relações Internacionais do
Brasil, estudar Relações Internacionais e Reli-
gião não é regra geral, mas já há oferta da disci-
plina, como obrigatória ou optativa, em alguns
cursos brasileiros de graduação em Relações In-
ternacionais (CARLETTI; FERREIRA, 2018).
A temática já conta com a publicação de
um livro específico no Brasil, intitulado Reli-
gião e Relações Internacionais, publicado em
2016 pela Editora Juruá (Curitiba), organizado
pela professora Anna Carletti, do curso de Re-
lações Internacionais da Universidade Federal
do Pampa, e pelo professor Marcos Alan Fer-
reira, da Universidade Federal da Paraíba, cujo
quinto capítulo, sobre Relações Internacionais
e Religião na América Latina é de nossa autoria.
O analista das Relações Internacionais que
reconhece o poder relativo dos sujeitos coleti-
vos confessionais transnacionais, independen-
te de concordar ou não com a atuação local e
internacional desses movimentos, instituições
e biografias confessionais, não negligencia em
seus estudos a análise da influência política de
tais sujeitos coletivos confessionais no cenário
complexo das relações internacionais. A análise
se desenvolve geralmente por meio do estudo de
casos, dada a complexidade cognitiva dos sujei-
tos e cenários e das relações entre tais sujeitos e
cenários. Nesse sentido, estudos “civilizatórios”
sobre religiões transnacionais e relações interna-
cionais correm o risco de se tornarem explana-
ções mais apologéticas do que de pesquisa.
Em artigo anterior (BENTO, 2017), pro-
curamos demonstrar, por meio de pesquisa his-
tórico-bibliográfica, que o ateísmo do socialis-
mo soviético não deriva de Karl Marx, que foi
ateu, mas não ateísta, mas de fonte externa ao
marxismo que foi adotada por Lenin e levada
por ele para dentro do socialismo soviético. E
tal associação a nosso aviso equivocada entre
ateísmo, marxismo e socialismo exerceu forte
influência nos países e movimentos socialis-
tas internacionais para os quais foi exportada.
Mesmo após o término da União Soviética,
essa associação produzida e difundida interna-
cionalmente pelo socialismo leninista-soviético
permanece como memória político-cultural de
movimentos socialistas internacionais como se
fosse tese-dogma do marxismo para movimen-
tos e Estados socialistas.
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A contestação teórico-prática da associa-
ção leninista entre marxismo e ateísmo emerge,
porém, em vários autores, entre eles Rosa Lu-
xemburgo (BENTO, 2017), contemporânea e
crítica de Lenin, e também nas ações (locais-
-internacionais) e pensamento de Frei Betto,
dominicano brasileiro que é ao mesmo tempo
crente e socialista.
Em Frei Betto (1986a; 2006; 2015) fica
evidente que a briga entre comunismo - que
seria ateu, por ser marxista, “materialista” - e
religiões, tratadas tout court como resquício de
irracionalidade da humanidade pelos positivis-
tas burgueses e pelos positivistas socialistas, é
uma história mal contada.
Frei Betto contesta a confessionalidade
(ateísmo) do socialismo e, no caso do socialis-
mo cubano, promoveu diretamente, como ve-
remos no artigo, a desconstrução dessa confes-
sionalidade de Estado e construção da laicidade
do socialismo cubano, com o abandono tam-
bém jurídico do ateísmo de Estado no início da
década de 1990.
Betto escreveu e publicou dezenas de li-
vros e centenas de artigos
2
. Sobre sua vida de
militante e literato (uma relação de unidade
e distinção) destacamos a recente Biografia de
Frei Betto, escrita por Evanize Sydow e Américo
Freire (2016), e seu premiado livro Batismo de
Sangue (2006), que chegou também ao cinema.
Pode-se verificar também o posfácio do
livro A Guerra dos deuses, onde Michael Löwy
(2000) analisa a contribuição dos intelectuais
franceses da ordem dos dominicanos, comuni-
dade religiosa de Betto, na formação da esquer-
da católica brasileira. Além disso, para a com-
preensão do contexto histórico inicial de sua
2 Disponível em: http://www.freibetto.org/index.php. Acesso
em: 20/12/2017.
experiência política de juventude na Juventude
Estudantil Católica (JEC) e Juventude Univer-
sitária Católica (JUC) pode-se conferir o livro
História da Ação Popular, da JUC ao PCdoB, de
Haroldo Lima e Aldo Arantes (1984), a pesqui-
sa do brasilianista Scott Mainwaring, Igreja Ca-
tólica e Política no Brasil, sobretudo os capítulos
sobre a Igreja reformista e a esquerda católica
(2004, p. 62-100), e a pesquisa do historiador
Oscar Beozzo, Cristãos na Universidade e na Po-
lítica – história da JUC e da AP (1984).
Nesta pesquisa, focaremos especificamente
apenas neste recorte do pensamento político de
Frei Betto: socialismo internacional e laicidade.
Socialismo internacional
e laicidade
Em Frei Betto (1990; 2007; 2015), a
previsão positivista do declínio inelutável da
religião pelo “progresso da ciência” é biografi-
camente contestada, dado que se trata de um
intelectual socialista crente, autor de dezenas
de livros que, com o passar dos anos continua
crente, intelectual e socialista.
O pensamento político de Frei Betto é
pensamento em ação. E a sua, mais do que mi-
litância partidária (nunca foi filiado a partido),
é militância em movimentos de base, tipifica-
da não pelo basismo vulgar de quem mitifica
a base em si. Ao contrário, é caracterizada pela
visão de quem considera a base como uma ex-
periência em autoconstrução nos processos de
tomada de consciência (educação popular) das
situações constitutivas de dominação de classe,
de raça, de gênero, e contestação dessas formas
coletivas estruturais de subordinação.
Dessa forma, em Frei Betto, a defesa da
tese da laicidade do socialismo internacional
ocorre nessa sua trajetória prático-teórica: ele
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viaja por países socialistas, encontra-se com
líderes políticos, contesta a tese confessional
do ateísmo de Estado diante de seus próprios
sustentadores e reivindica, em tal contesto prá-
tico-dialético, a associação entre socialismo
e laicidade. As suas formulações teóricas são
construídas nesses diálogos francos e, por isso,
algumas vezes tensos.
Tudo começou em Manágua
No dia 11 de abril de 2014, uma sexta-fei-
ra, em entrevista que nos concedeu pela ma-
nhã, em Manágua, na sede do Movimento Fe y
Alegria, o sacerdote jesuíta Fernando Cardenal,
que foi ministro de Estado da junta revolucio-
nária sandinista, nos relatou que
na celebração do primeiro ano da Revolu-
ção Sandinista, em julho de 1980, Fidel veio
nos visitar. Felicitava-nos pela “aliança entre
cristãos e marxistas na luta revolucionária
quando uma freira levantou o braço e disse
que não tinha sido bem assim. “Puxa, deixa-
mos uma freira reacionária entrar na reunião
com Fidel”, pensei. Mas ela concluiu: “Aqui
não houve aliança entre cristãos e marxistas.
Trabalhamos todos juntos na luta revolucio-
nária”. Não era uma freira reacionária, mas
mais revolucionária do que pensei (BENTO,
2016, p. 75-77; CARDENAL, 2009).
Nessa celebração do primeiro aniversário da
Revolução Sandinista, estava também Frei Bet-
to, que manteve uma conversa ousada com Fidel
Castro, como veremos, dando início, assim, em
Manágua, ao processo de construção da laicida-
de do socialismo cubano (BETTO, 2015).
Para as festividades desse 1° aniversário da
Revolução Sandinista, o governo da Nicarágua
convidara, do Brasil, dom Paulo Evaristo Arns
(que não pôde viajar), Luiz Inácio Lula da Sil-
va, presidente do Partido dos Trabalhadores, e
Frei Betto. Dois religiosos e um civil. Entre os
convidados internacionais a grande atração era
Fidel Castro.
Na Praça 19 de Julho, pela manhã, dia 19
de julho de 1980, Fidel discursou para 600 mil
pessoas. Após o ato, o ministro das Relações
Exteriores da Nicarágua, o sacerdote sandinista
Miguel D’Escoto deu carona a Betto até seu ho-
tel e avisou-lhe de ficar atento ao telefone, pois
queria que viesse com ele à casa de um amigo
naquela mesma noite. De fato, Betto foi depois
levado à casa de Sérgio Ramirez, escritor nica-
raguense, membro da Junta de Governo. Pela
mediação desse sacerdote católico revolucioná-
rio, quando os últimos convidados se retiraram,
por volta das 2h da madrugada, na biblioteca
da casa de Sérgio Ramirez ocorreu o primeiro
encontro entre Betto e Fidel. O brasileiro pen-
sou que além de ser o primeiro seria também o
único. Não sabia que dialogaria com o revolu-
cionário cubano dezenas de outras vezes.
Naquela madrugada de julho, Frei Betto
discorreu sobre as Comunidades Eclesiais de
Base e sobre a escolha que considerava equi-
vocada dos partidos comunistas que adotaram
o ateísmo como programa político. Fidel, por
sua vez, destacou que em Cuba, às vésperas da
Revolução de 1959, diversamente da Nicará-
gua, o clero católico era conservador e mesmo
franquista. Depois, o diálogo entre eles tomou
o seguinte rumo:
- Por que o Estado e o Partido Comunista de
Cuba são confessionais? – perguntou Betto.
- Como Confessionais?! – reagiu Fidel, sur-
preso. - Somos ateus.
- O ateísmo é uma forma de confessionalida-
de, assim como o teísmo, pois professa a ne-
gação da existência de Deus. Uma conquista
da modernidade é o Estado e o partido laicos.
Um Estado ateu é tão confessional quanto
um Estado cristão ou muçulmano.
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- Você tem razão – admitiu Fidel. – Estaria
disposto a nos ajudar a conseguir um bom
diálogo com os bispos cubanos?
- Sim, comandante, desde que eles também es-
tejam dispostos a isso (BETTO, 2015, p. 43).
Na biblioteca da casa de Sérgio Ramirez,
em julho de 1980, começou a construção da
laicidade do socialismo cubano por meio da in-
fluência exercida pelo religioso brasileiro junto
ao revolucionário cubano.
De fato, anos depois, durante o IV Con-
gresso do Partido Comunista cubano, em outu-
bro de 1991, decidiu-se pela supressão do cará-
ter ateu do partido, que passou a ser considerado
laico. Para o Partido Comunista de Cuba, a
crença religiosa não seria mais obstáculo à filia-
ção. Os bispos cubanos, entretanto, dois meses
depois proibiram os católicos de se filiarem ao
partido (BETTO, 2015, p. 126).
No ano seguinte (1992), a Assembleia Na-
cional modificou a Constituição e considerou
Cuba como sendo um Estado laico, mesmo sem
usar essa expressão (laicidade no conteúdo da lei):
Esta Constitución proclamada el 24 de febre-
ro de 1976, contiene las reformas aprobadas
por la Asamblea Nacional del Poder Popular
en el XI Período Ordinario de Sesiones de la
III Legislatura celebrada los días 10, 11 y 12
de julio de 1992.
Artículo 8° - El Estado reconoce, respeta y
garantiza la libertad religiosa. En la Repúbli-
ca de Cuba, las instituciones religiosas están
separadas del Estado. Las distintas creencias y
religiones gozan de igual consideración.
Artículo 55° - El Estado, que reconoce, res-
peta y garantiza la libertad de conciencia y
de religión, reconoce, respeta y garantiza a la
vez la libertad de cada ciudadano de cambiar
de creencias religiosas o no tener ninguna, y
a profesar, dentro del respeto a la ley, el culto
religioso de su preferencia
3
(CUBA, 1992).
3 Constitución de la República de Cuba (1992). Disponível em:
http://www.cuba.cu/gobierno/cuba.htm. Acesso em: 30/10/2017.
Questionado por um jornalista sobre
essa passagem, em Cuba, da confessionalida-
de (ateísmo) de partido e Estado à laicidade, o
teólogo brasileiro Leonardo Boff explicou que
O mérito desse trabalho é de Frei Betto. O que
de fato mudou a situação foi o livro dele [do
Frei Betto] Fidel e a religião [1985]. O livro
vendeu um milhão de exemplares em Cuba.
Agora saiu uma nova edição, outra vez com
uma tiragem de um milhão de exemplares.
Então, o povo percebeu que não há contra-
dição entre cristianismo e socialismo. A partir
disso, Fidel aceitou e convidou o papa João
Paulo 2º, depois o papa Bento 16, e agora o
papa Francisco, duas vezes (BOFF, 2016).
Portanto, no meio do caminho tinha um
livro, que quebrou a pedra exógena do ateísmo
de Estado. Entre o encontro na biblioteca de
Sérgio Ramirez, em 1980, e as mudanças em
relação às conexões entre socialismo e religião
ocorridas em Cuba em 1991 e 1992, está Fidel
e a Religião (BETTO, 1986b).
Fidel e a Religião: um caso de
literatura militante
Frei Betto pisou em Cuba pela primeira vez
em setembro de 1981, integrando a delegação
brasileira do Iº Encontro de Intelectuais pela So-
berania dos Povos de nossa América. Entre se-
tembro de 1981 até o início das entrevistas com
Fidel, em 1985, o religioso brasileiro retornou
várias vezes à ilha. A proposta de entrevistar Fidel
com o objetivo de fazer um livro sobre religião
foi-lhe feita em fevereiro de 1985 - Betto fora
convidado como jurado do prêmio literário da
Casa de las Americas - durante um jantar com
Fidel, que aceitou, marcando as entrevistas para
maio do mesmo ano (SYDOW; FREIRE, 2016).
O brasileiro traduziu pessoalmente o con-
teúdo de 23 horas de diálogo que ocorreram
de 23 a 28 maio de 1985. Foi a primeira vez
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que Fidel deu entrevistas especificamente sobre
o tema religião, o que foi possível porque Fi-
del andava já percebendo as mudanças de lugar
político de algumas ideologias confessionais no
terreno da luta de classes latino-americana. An-
tes da Nicarágua, de fato, havia dialogado com
sacerdotes chilenos socialistas em novembro de
1971. Tratara sobre o tema religião também na
Jamaica, em outubro de 1977, dessa vez com
cristãos majoritariamente protestantes (SY-
DOW; FREIRE, 2016).
Fidel e a Religião: conversas com Frei Bet-
to, foi lançado no Brasil na primeira semana de
outubro de 1985, alcançando várias edições em
poucos meses. Em Cuba, a primeira edição ul-
trapassou os 360 mil exemplares. A obra chegou
às livrarias de Havana no dia 02 de dezembro de
1985, esgotando-se em apenas duas horas. Em
Pinar del Rio, Matanzas e Isla de la Juventud,
os livros chegaram no dia 04 de dezembro. Em
Villa Clara, Cienfuegos, Sancti Spiritus, Ciego
de Avila e Camagüey, no dia 06. Em Santiago
de Cuba, Las Tunas, Holguín, Granma e Guan-
tánamo, no dia 09 (SYDOW; FREIRE, 2016).
Fidel e a Religião foi um dos maiores fenô-
menos da história editorial cubana:
Muitas pessoas em Cuba deixaram de ir ao
trabalho para conseguir comprar um exem-
plar, porque os estoques se esgotavam logo
que chegavam às livrarias. Quem deixava para
adquirir no final do dia já não encontrava o
livro disponível. Chegou ao ponto de o Mi-
nistério da Cultura proibir a venda de mais
de um exemplar por pessoa, para impedir que
se criasse um mercado clandestino. A polícia
teve que ir a algumas livrarias porque o pú-
blico amotinado quebrava vitrines. Quem es-
tava nas filas para comprar dizia coisas como
sou religiosa e estou certa que nele Fidel dis-
se coisas de grande valor”, “encontraremos no
livro materiais muito esclarecedores” ou “será
uma fonte singular de ensino para o povo”.
Hoje (2016), a tiragem cubana da obra – tra-
duzida em 32 países e 20 idiomas – passa de
1,3 milhão de exemplares (SYDOW; FREI-
RE, 2016, p. 16).
Só o fato de um líder socialista internacio-
nal como Fidel Castro tratar sobre o tema reli-
gião com seriedade, considerando-o relevante,
e tendo como interlocutor um intelectual ao
mesmo tempo crente e socialista, já represen-
tava em si um fato subversivo, pela contestação
do ateísmo socialista, considerado “normal”
nos círculos leninistas.
O livro, portanto, em si provocador, ao ser
lido perturbava os setores “confessionalistas
do socialismo internacional também por seu
conteúdo. Nele, Fidel (apud BETTO, 1986b,
p. 19) elogiou os cristãos revolucionários e cri-
ticou os marxistas que adotavam o sectarismo
em suas relações com os crentes revolucioná-
rios: “Há muitos marxistas que são doutri-
nários. E acredito que ser doutrinário neste
problema dificulta esta questão”. Fidel (apud
BETTO, 1986b, p. 332) afirmou também que
a frase “a religião é o ópio do povo”, que pode
ter sido “justa num determinado momento” e
valer ainda em algumas circunstâncias,
de nenhum modo tem ou pode ter o caráter de
dogma ou de verdade absoluta. É uma verdade
ajustada a determinadas condições históricas
concretas. Creio que é absolutamente dialético
e marxista tirar esta conclusão. Em minha opi-
nião, a religião, sob a ótica política, não é em
si mesma ópio ou remédio milagroso. Pode
ser ópio ou maravilhoso remédio na medida
em que sirva para defender os opressores e os
exploradores ou os oprimidos e os explorados.
As reflexões abertas de Fidel sobre a religião
foram rejeitadas tanto por católicos reacionários
quanto por marxistas “ortodoxos”. Bem acolhi-
do em Cuba, o livro, de fato, foi censurado em
países do socialismo real que adotaram o ateís-
mo de Estado e partido dos velhos manuais pro-
duzidos e exportados pelo socialismo soviético.
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Com a sua publicação, porém, Betto fi-
cou mais conhecido internacionalmente, tor-
nando-se uma espécie de símbolo vivo da pos-
sibilidade de relações críticas e construtivas
entre marxismo, socialismo e religião. Assim,
aumentaram os convites para visitas em países
socialistas, para onde se dirigia sozinho ou em
delegações com outros pesquisadores-militan-
tes do movimento da Teologia da Libertação.
Dessa forma, quando chegava, sua presença já
possuía o significado paradigmático citado, que
Betto utilizava para promover abertura à liber-
dade religiosa, propondo direta e indiretamen-
te o reconhecimento da laicidade do socialismo
como forma de se efetivar a liberdade coletiva
de credo ou não-credo nesses Estados socialis-
tas confessionais (ateísmo de Estado).
Repercussão internacional de
Fidel e a Religião
Quando de sua viagem a Moscou, em
maio de 1986, Frei Betto (2015, p. 183) en-
controu-se com Konstantin Khartchev, e dis-
parou: “Não considero positivo o conteúdo
dos manuais soviéticos de marxismo exporta-
dos para a América Latina. São dogmáticos e
tratam a questão religiosa de modo simplista e
preconceituoso”.
Na então Tchecoslováquia, onde Betto es-
teve em junho de 1988, o Partido Comunista
não autorizou uma edição em tcheco de Fidel e
a religião. Só mesmo em inglês. Alegaram que o
livro ‘é muito cubano’ e haveria o risco de que-
rerem aplicá-lo ali...” (BETTO, 2015, p. 300).
Todavia, também na Tchecoslováquia, no dia
26 de maio de 1989, monsenhor Liska (apud
BETTO, 2015, p. 375), bispo auxiliar de Pra-
ga, revelou a Frei Betto: “Graças ao seu livro
utilizei, junto ao governo tcheco, argumentos
de Fidel Castro favoráveis ao trabalho das reli-
giosas em Cuba. Assim, conseguimos tirá-las da
clandestinidade. Agora só faltam os religiosos”.
Nesse mesmo dia, Betto encontrou-se com
Cinolder e Mracan, membros do Comitê Cen-
tral do Partido Comunista, com quem debateu
o direito à liberdade religiosa. Queria saber
também por que não permitiram a publicação
integral de Fidel e a religião na Tchecoslováquia.
“Nossos filósofos acham que a posição de Fidel
diante da religião pode causar dúvidas na cabeça
de nossos militantes”, responderam (BETTO,
2015, p. 376). Na noite desse mesmo dia, Frei
Betto autografou a versão resumida de Fidel e a
religião, com o título também modificado, ou
seja, com censura no conteúdo e na forma: Ca-
minhar ao lado dos pobres (Na strasse chudych).
Além disso, a obra de Betto e Fidel, editada por
um organismo ecumênico, “não foi vendida ao
público, apenas distribuída gratuitamente nos
círculos religiosos” (BETTO, 2015, p. 377).
Na Alemanha Oriental o título do livro
também foi modificado: Frei Betto: conversações
noturnas. Censuraram o nome de Fidel Castro
na capa, pois poderia gerar “confusão” (SY-
DOW; FREIRE, 2016, p. 277).
Betto, com outros brasileiros, esteve tam-
bém na República Popular da China, em ou-
tubro de 1988. Na cidade de Pequim, em diá-
logo com Madame Chao Jinru, vice-presidente
da Comissão de Assuntos Religiosos, o teólogo
brasileiro Clodovis Boff a interrogou sobre as re-
lações entre ateísmo e marxismo, e sua resposta
foi a seguinte: “Nosso pensamento fundamen-
tal é o materialismo histórico e o materialismo
dialético. Esta é a nossa referência de base. Se
utilizamos o materialismo dialético, somos, por-
tanto, ateus. (...) Como marxistas, somos ateus,
mas não podemos exigir que toda a população
também o seja” (apud BETTO, 2015, p. 314).
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Frei Betto a contestou citando a carta de
Marx a Bolte onde ele critica a proposição de
Bakunin de impor “o ateísmo como dogma
obrigatório para os membros da Internacional
(MARX, 1871). O religioso sustentou que o
conflito com a religião deveria ser interpretado de
um ponto de vista histórico-político e não como
uma questão de princípio. Sua tentativa, porém,
foi rejeitada: “Cremos no marxismo e somos ma-
terialistas; portanto, ateus”, sintetizou Chao Jin-
ru (apud BETTO, 2015, p. 315). A laicidade do
materialismo do marxismo não estava contida no
seu leque de possibilidades hermenêuticas.
Em Hankou, no dia 16 de outubro de
1988, encontraram-se com Wang Chu Jie,
presidente do Birô de Assuntos Religiosos de
toda a província de Hubei, que sustentou a tese
da confessionalidade da dialética: “Nós, como
militantes do Partido Comunista, somos ateus,
devido ao materialismo dialético” (apud BET-
TO, 2015, p. 330). E ainda: “A única coisa que
diferencia um militante do Partido e um cristão
é a fé. Temos fés diferentes. Cremos no mate-
rialismo ateu e, vocês, em Jesus Cristo” (apud
BETTO, 2015, p. 330).
Em Xangai, os brasileiros encontraram-se
com o vice-presidente do Birô de Assuntos Re-
ligiosos, Senhor Albert. “Funcionários do Birô
de Assuntos Religiosos nos disseram que a reli-
gião vai desaparecer. Vocês dizem que ela deve
contribuir para o progresso do país. Deve-se
trabalhar para o desaparecimento da religião?”,
perguntou-lhe Frei Betto (BETTO, 2015,
p.338). “Nós, materialistas dialéticos, afirma-
mos que há leis objetivas na natureza e na his-
tória. Tudo nasce, cresce, declina e desaparece”,
respondeu-lhe o vice-presidente do Birô chinês
de Xangai (apud BETTO, 2015, p. 338).
Betto (2015, p.338) continuou questio-
nando-lhe: “E o marxismo, enquanto fenôme-
no objetivo, também desaparecerá?”. Senhor
Albert respondeu que sim, pois “todos os fenô-
menos objetivos estão sujeitos ao ciclo de nasci-
mento e morte, inclusive o Partido Comunista
e o país” (apud BETTO, 2015, p.338).
Betto (2015, p.338) pisou no pedal da
provocação com uma última pergunta: “A lei
da objetividade também é um fenômeno ob-
jetivo. Ela também desaparecerá?”. Acuado, o
vice-presidente do Birô de Assuntos Religiosos
pediu calma: “Sejamos pacientes e aguardemos
o tempo...” (apud BETTO, 2015, p.338).
A China, portanto, acolheu Betto, mas
não sua crítica da confessionalização do mar-
xismo e socialismo. Na América Latina, porém,
estava sendo diferente.
Em janeiro de 1989, nos festejos do 30°
aniversário da Revolução Cubana, Betto abriu
uma mesa-redonda na Escola Superior do Par-
tido, em Havana, analisando as relações entre
cristianismo e marxismo, Igreja e Estado nos
países socialistas. Na plateia, dezenas de diri-
gentes políticos cubanos e latino-americanos.
Rigoberto Padilla (apud BETTO, 2015,
p. 347), secretário-geral do Partido Comunista
de Honduras, interveio:
Meu primeiro impacto com os cristãos veio
da leitura do documento episcopal de Me-
dellín e do testemunho de sacerdotes que de-
ram a vida pelo povo. Antes, ficava-se discu-
tindo se haveria ou não glória eterna, quando
se deveria discutir é se há ou não injustiça ter-
rena e como combatê-la. Considero um ab-
surdo que, no passado, meu partido exigisse
que seus militantes renunciassem à fé, provo-
cando profundos traumas psicológicos. Hoje,
em Honduras, estão unidos os comunistas, os
católicos e os luteranos. A entrevista de Fidel
Castro sobre a religião foi amplamente difun-
dida em meu país. A meu ver, não há contra-
dição entre religião e revolução.
Nesse mesmo evento, Alvaro Monteiro
(apud BETTO, 2015, p. 347), secretário-geral
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do Partido Socialista da Costa Rica, destacou
que “devemos falar de ‘revolucionários’ e não
de ‘cristãos e marxistas’. Ingressar num partido
marxista não torna ninguém revolucionário, a
não ser como ato de fé. São as atitudes concre-
tas que forjam um revolucionário”.
Ainda em janeiro de 1989, em Cuba, Frei
Betto ouviu de Carlos Aldana (apud BETTO,
2015, p. 364), então responsável pelas esferas
ideológica e cultural do Secretariado do Comi-
tê Central do Partido Comunista:
O Partido tem, hoje (1989), cerca de 500 mil
militantes e 600 mil na Juventude Comunista.
Reconhecemos que há um vazio na elabora-
ção teórica. Domingo passado, Fidel disse que
é preciso acabar com o ensino dogmático do
marxismo. Sabemos que as escolas do Partido
são incipientes e, por isso, estamos revendo seus
textos e métodos. Basta dizer que passamos dez
anos sem estudar a história de Cuba como ma-
téria específica! Era parte da história geral.
Em dezembro de 1991, novamente em
Havana, Betto dialogou com Carneado, do
Comitê Central, sobre as mudanças ocorridas
no outubro anterior no partido comunista e
sobre a iminente reforma da Constituição com
a proposta, que depois se confirmou, de des-
confessionalizar também o Estado cubano. Co-
mentaram que, depois da sua desconfessionali-
zação, alguns membros do partido comunista
passaram a manifestar publicamente sua fé cris-
tã, e cristãos ingressavam no partido. Carneado
(apud BETTO, 2015, p. 424) destacou que
foram tempos difíceis quando o ateísmo era
dogma de partido, mas que “muitos que foram
afastados do Partido, por terem se casado na
Igreja, ou batizado um filho, agora reingressam
em nossas fileiras”. Sobre isso, Frei Betto (BE-
TTO, 2015, p. 424) fez a seguinte anotação:
Pareceu-me que Carneado mostrava-se sen-
sível à dificuldade de os setores cristãos da
Ilha aceitarem Lênin, visto como inspirador
do modelo autoritário de partido único e do
ateísmo como critério de firmeza ideológica.
Para Frei Betto (BETTO, 2015, p. 454-
455), “a Revolução Cubana, ao contrário da
russa, não se fez contra a religião”, mas “o apoio
do Kremlin teve seu preço ideológico: Estado e
Partido Comunista declararam-se oficialmente
ateus; os currículos escolares incluíram a dis-
ciplina ‘ateísmo científico’”. A seu aviso, “a
abertura da Revolução ao fenômeno religioso
deu-se graças à Revolução Sandinista e ao des-
moronamento do socialismo europeu” (BET-
TO, 2015, p. 455). Dessa forma, para ele, “a
queda do Muro de Berlim contribuiu para des-
dogmatizar princípios fundamentais do mar-
xismo vulgar” (BETTO, 2015, p. 455). Não
representou, portanto, o fim do marxismo, mas
libertação e recomeço.
Papas em Cuba: depois do frei
chegaram os papas
Em janeiro de 1998, durante sua visita à
ilha, o papa João Paulo II “evitou extremos: nem
condenou nem canonizou a Revolução”, decep-
cionando os anticastristas de Miami e deixando
Fidel aliviado, dado que se tratava de uma visita
de alto risco (BETTO, 2015, p. 456-458).
Na reunião de avaliação da visita do papa
feita por Fidel, na qual Betto também se encon-
trava, no final de janeiro de 1998, o revolucio-
nário cubano destacou que o país ganhara um
expressivo aliado contra o bloqueio dos EUA a
Cuba”, que o papa polonês classificou como “in-
justo e eticamente inaceitável” (BETTO, 2015,
p. 458). Fidel surpreendeu-se com a crítica do
pontífice ao “capitalismo neoliberal” e ficou
agradecido “pelo modo respeitoso como o papa
tratou o povo cubano” (BETTO, 2015, p. 458).
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Anos depois, em março de 2012, Betto
encontrava-se em Havana para acompanhar
também a visita de Bento XVI quando tomou
conhecimento que Ratzinger dissera, na entre-
vista que concedera aos jornalistas no voo que
o levava à Ilha, que o marxismo “já não é mais
útil” (BETTO, 2015, p. 506).
Em sua resposta, Frei Betto (2015, p. 506-
507) lembrou que a casa de Ratzinger também
tem telhado de vidro:
Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não é mais
útil, porque já não se justifica enviar mulheres ti-
das como bruxas à fogueira nem torturar suspei-
tos de heresia. Ora, felizmente o catolicismo não
pode ser identificado com a Inquisição, nem
com a pedofilia de padres e bispos. Do mes-
mo modo, o marxismo não se confunde com
os marxistas que o utilizaram para disseminar o
medo, o terror, e sufocar a liberdade religiosa.
Há que voltar a Marx para saber o que é marxis-
mo; assim como há que retornar aos Evangelhos
e Jesus para saber o que é cristianismo, e a Fran-
cisco de Assis para saber o que é catolicismo.
Para o religioso brasileiro, o que “já não
é útil” é o capitalismo, um sistema “intrinse-
camente perverso” (BETTO, 2015, p. 507),
com o qual “a Igreja Católica muitas vezes é
conivente”, “porque este a cobre de privilégios
e lhe franqueia uma liberdade que é negada,
pela pobreza, a milhões de seres humanos
(BETTO, 2015, p. 508).
Ao contrário, para Betto (BETTO, 2015,
p. 508),
o marxismo, ao analisar as contradições e
insuficiências do capitalismo, nos abre uma
porta de esperança a uma sociedade que os
católicos, na celebração eucarística, caracte-
rizam como o mundo em que todos haverão
de “partilhar os bens da Terra e os frutos do
trabalho humano”. A isso Marx chamou de
socialismo.
E concluiu essas suas anotações ao comen-
tário de Bento XVI citando o livro O capital
– um legado a favor da humanidade, do arcebis-
po católico de Munique, Reinhard Marx, no-
meado Cardeal por Bento XVI em 2010. Por
ocasião do lançamento desse livro, em 2011,
o cardeal alemão, que chamou Karl Marx de
querido homônimo”, destacou que “Marx não
está morto e é preciso levá-lo a sério”: “Há que
se confrontar com a obra de Karl Marx, que
nos ajuda a entender as teorias da acumulação
capitalista e o mercantilismo. Isso não significa
deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades
cometidas em seu nome no século XX” (apud
BETTO, 2015, p. 508).
Em suma, uma coisa é a obra de Marx,
cujo livro O Capital, segundo o cardeal alemão
é um legado a favor da humanidade, outra, dife-
rente, o uso dela pelo seu vasto, heterogêneo e
contraditório fã clube internacional.
Posteriormente, em setembro de 2015,
quem visitará Cuba será um papa argentino,
com uma avaliação do capitalismo diferen-
te da que sustentou o reformismo dos pa-
pas anteriores. No seu encontro com Fidel
Castro, em sua casa, no dia 20 de setembro
de 2015, Papa Francisco recebeu das mãos
do revolucionário cubano, de presente, o li-
vro subversivo de Frei Betto e Fidel Castro
sobre religião.
Segundo o então porta-voz do Vaticano,
padre Federico Lombardi (2015), o revolucio-
nário cubano escreveu na dedicatória de Fidel
e a Religião: “Para o papa Francisco em ocasião
de sua visita a Cuba, com a admiração e o res-
peito de todo o povo cubano”.
Fidel e a Religião entrou assim no Vatica-
no, na bagagem de um papa, como presente
de um revolucionário cubano. Se Francisco o
leu, não sabemos, mas, de fato, emerge que há
certa sintonia política entre o frei brasileiro e o
papa argentino.
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Um aliado inesperado
Entre João Paulo II, Bento XVI e Papa Fran-
cisco há solução de continuidade e, também, re-
lativa diversidade. O âmbito de atuação e refle-
xão dos papas é muito amplo e em tal situação
de complexidade e amplitude existe continui-
dade (tradição) e modificações hermenêuticas e
de atuação vinculadas às mudanças históricas e
alterações hermenêuticas em relação a tais trans-
formações contextuais. No caso do Papa Francis-
co, a questão ambiental, o risco vital-ambiental
produzido pela lógica do lucro a qualquer custo
fez com que a crítica ao capitalismo sem freios
(effrenus), já presente no pensamento de João
Paulo II e Bento XVI, se tornasse mais radical,
gerando, indiretamente, uma aproximação em
relação ao pensamento crítico de Frei Betto em
relação ao capitalismo. Papa Francisco não nega
a importância das reformas sociais, mas vai mais
além do reformismo, propondo uma posição
reformadora radical em relação à hegemonia
do lucro. Ele manifestou sua posição crítica em
relação ao capitalismo internacional sobretudo
nos seus três encontros com os movimentos po-
pulares internacionais, dois deles realizados em
Roma (2014 e 2016), e um na Bolívia (2015).
Para Francisco, de fato, é preciso “lutar con-
tra as causas estruturais da pobreza”, “fazer face
aos efeitos destruidores do império do dinheiro
(PAPA FRANCISCO, 2014, p. 2). A seu aviso,
há um elo invisível que une cada uma das
exclusões. Não se encontram isoladas, estão
unidas por um fio invisível. Conseguimos nós
reconhecê-lo? É que não se trata de questões
isoladas. Pergunto-me se somos capazes de re-
conhecer que estas realidades destrutivas cor-
respondem a um sistema que se tornou global.
Reconhecemos nós que este sistema impôs a
lógica do lucro a todo custo, sem pensar na
exclusão social nem na destruição da nature-
za? (PAPA FRANCISCO, 2015c, p. 2)
A dramaticidade da exclusão e destruição
do “solo, água, ar e todos os seres da criação
(PAPA FRANCISCO, 2015c, p. 2) indica que
o sistema precisa ser urgentemente transforma-
do caso se queira evitar o apocalipse ambiental:
Digamo-lo sem medo: Queremos uma mu-
dança, uma mudança real, uma mudança de
estruturas. Este sistema é insuportável: não o
suportam os camponeses, não o suportam os
trabalhadores, não o suportam as comunida-
des, não o suportam os povos... E nem sequer
o suporta a terra, a irmã Mãe Terra, como
dizia São Francisco (PAPA FRANCISCO,
2015c, p. 02).
Para ele o capitalismo precisa ser freado
também pelo risco de colapso do planeta, pela
destruição da terra, do ar e da água, o que re-
presentaria a possibilidade de uma espécie de
apocalipse ambiental.
Em suma, para Francisco (2015c, p. 03),
Quando o capital se torna um ídolo e dirige
as opções dos seres humanos, quando a avidez
de dinheiro domina todo o sistema socioeco-
nômico, arruína a sociedade, condena o ser
humano, transforma-o em escravo, destrói
a fraternidade inter-humana, faz lutar povo
contra povo e, até, como vemos, põe em risco
esta nossa casa comum, a irmã e mãe terra.
Ainda em 2015 ele destacou que
a causa principal da pobreza é um sistema
econômico que deslocou a pessoa do centro e
ali colocou o deus dinheiro; um sistema eco-
nômico que exclui, exclui sempre: exclui as
crianças, os idosos, os jovens, sem trabalho...
e que cria a cultura do descarte em que vive-
mos (PAPA FRANCISCO, 2015a).
Francisco, portanto, radicaliza a já tra-
dicional crítica feita pela Doutrina Social
da Igreja Católica ao capitalismo sem freios
sociais. Abre um capítulo diferente, mais an-
tissistêmico na Doutrina Social da Igreja mas
sempre na relação de continuidade e inovação
que a tipifica.
53 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.16 n.3, p.42 - 54, dez. 2019
Sobre Francisco, Frei Betto (2016) de-
clarou, em setembro de 2016, na Itália, onde
encontrava-se para o Festival Internacional de
Literatura de Mântua, que
em mais de 70 anos eu não tinha visto um
milagre na Igreja, desde a eleição do Papa
João XXIII. Eu pensava que algo assim nun-
ca mais voltaria a acontecer. E outro milagre
aconteceu: a eleição de Bergoglio, o Papa
Francisco.
Para o brasileiro, “Francisco é, efetivamen-
te, o primeiro Papa que fala das causas das injus-
tiças no mundo” (BETTO, 2016). Papas ante-
riores criticaram os efeitos do capitalismo, mas
Francisco vai além, aponta as causas. Nenhum
Papa havia feito isso antes. Em sua encíclica
Laudato Si ele aponta que a desigualdade
vem de um sistema que tem o capital como
prioridade e não os direitos humanos. Disse
que o problema ecológico não pode ser visto
sem levar em conta o aspecto social, porque
o desequilíbrio ambiental afeta, sobretudo, os
mais pobres (Ibidem).
Conclusão
Neste artigo apresentamos a contestação
da associação entre socialismo e ateísmo por
Frei Betto em sua militância internacional (po-
lítica e literária) em prol da superação de tal
aproximação. É verdade que o pensamento de
Betto está associado ao contexto do pensamento
mais amplo do movimento da Teologia da
Libertação, mas é verdade, também, a nosso
aviso, que em Betto a rejeição da confessiona-
lidade (ateísmo) do socialismo se manifesta de
uma forma peculiar que não emerge na produ-
ção literária de outros autores desse movimento
internacional, nem com as mesmas característi-
cas prático-teóricas típicas do pensamento po-
lítico do brasileiro Betto.
Se, de um lado, a ação do religioso brasi-
leiro conseguiu obter êxito em Cuba, onde de
fato houve a troca do confessionalismo (ateís-
mo) de Estado pela laicidade, a permeabilidade
que ocorreu em Cuba não se verificou, como
vimos, em outras partes do mundo socialista.
Todavia, para além dos resultados históricos
positivos ou menos exitosos, a atuação e pen-
samento de Betto restam como paradigma po-
lítico de um socialismo pós-ateísta, laico. Betto
propõe assim, direta e indiretamente, a liber-
tação epistemológica e política do socialismo e
marxismo internacionais das amarras da con-
fessionalidade redutiva do ateísmo.
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