2 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte, ISSN 1809-6182, v.18 n.1, p.2 - 5, mai. 2021
Resenha: Has China Won? The Chinese
Challenge to American Primacy
Daniel de Oliveira Vasconcelos1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2021v18n1pX
Recebido em: 21 de junho de 2020
Aceito em: 15 de agosto de 2020
1 Daniel Vasconcelos é mestre em Estudos sobre a China, com foco em Política e Relações Internacionais, pela Academia Yenching
da Universidade de Pequim. Pesquisa política ambiental e energética e urbanização na China. ORCID iD: https://orcid.org/0000-
0002-8675-6727
Resenha
2 • Conjuntura Internacional • Belo Horizonte,
ISSN 1809-6182, v.18 n.1, p.2 - 5, mai. 2021
O livro Has China Won? e Chine-
se Challenge to American Primacy, de Kishore
Mahbubani, se insere dentro do recente debate
sobre a ascensão da China e os desaos de sua
acomodação no atual sistema internacional.
Por isso, a obra não é bem uma tentativa de
responder se a China já atingiu o apogeu do
seu sucesso econômico, como sugere a primeira
parte de seu título, mas sobretudo uma minu-
ciosa análise sobre a crescente rivalidade entre
China e Estados Unidos. Mahbubani, que fora
embaixador de Singapura na ONU e fundador
da Escola de Políticas Públicas da Universida-
de Nacional de Singapura, utiliza tanto de ex-
tensa bibliograa especializada, quanto da sua
própria vivência e de sua rede de contatos para
traçar os contornos da rivalidade China-EUA.
Dedica, também, considerável parte ao que
chama de infundadas concepções sobre a Chi-
na. Aliás, o desconhecimento mútuo é, segun-
do o autor, fator chave para o entendimento
do atual acirramento entre as duas grandes po-
tências. O livro é, dessa forma, organizado em
nove capítulos que intercambiam entre análises
sobre a China e sobre os EUA.
O embate geopolítico entre a China e
os EUA é, portanto, inevitável. Contudo, de
acordo com Mahbubani, no Capítulo 1: “In-
trodução”, para compreendermos esse conito
que guiará a política internacional das próxi-
mas décadas, precisamos “pensar o impensá-
vel”. Uma questão fundamental que surge é: os
EUA podem perder? Já que, para a maioria dos
estadunidenses, é inconcebível uma derrota da
mais poderosa democracia do mundo para uma
sociedade comunista supostamente fechada,
essa é uma pergunta que poucos fazem. Seria
aqui um dos principais erros estratégicos que
sustentam a crescente incapacidade dos EUA
em se adequar à ordem mundial do século XXI:
a ideia de que sua sociedade inerentemente vir-
tuosa guiará a civilização para a paz. Mas, como
esclarece Mahbubani, a China – como também
os países em desenvolvimento – aprendeu com
o ocidente as melhores práticas na economia,
ciência e tecnologia. Junto a isso, a China é
uma civilização bastante resiliente, como de-
monstra sua própria história de mais de dois
mil anos. Portanto, estaria longe da verdade
uma vitória inequívoca dos EUA.
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Os primeiros dois capítulos após a intro-
dução são dedicados à identicação dos maio-
res erros estratégicos cometidos pela China e
pelos EUA, erros que levaram ao atual recru-
descimento de uma rivalidade conituosa. Em
relação à China, no Capítulo 2, Mahbubani
argumenta que seu maior erro estratégico foi
o de alienar importantes grupos que compõem
a sociedade estadunidense. Principalmente
compostos de empresas e conglomerados eco-
nômicos, esses grupos se viram sucessivamente
ignorados e seus interesses comprometidos por
conta das políticas econômicas chinesas, como
a transferência obrigatória de tecnologia, o rou-
bo de propriedade intelectual e a imposição de
barreiras não-tarifárias. Isso criou uma situação
inédita no debate público estadunidense: um
consenso e uma forte convicção sobre a ameaça
chinesa, em que houve apoio às ações do gover-
no Trump até mesmo entre as lideranças polí-
ticas de oposição e os pragmáticos empresários
que há décadas lucram com a abertura chinesa.
Do lado da China, seriam três os principais fa-
tores que contribuíram para essa alienação: a
relativa autonomia provincial e local, a arro-
gância experimentada na China após a crise
global de 2008 e a fraqueza da liderança central
na década de 2000.
Para os Estados Unidos, cujas análises es-
tão sintetizadas nos Capítulos 3, 5 e 7, Mah-
bubani diz não haver dúvidas da falta de uma
estratégia compreensiva em relação à China.
Distanciando-se do pensamento pragmático
que reinou na Guerra Fria, inuenciado por
George Kennan, os EUA fracassaram no desen-
volvimento de uma estratégia de longo prazo
não somente por conta das ações imprudentes
do atual governo Trump, mas principalmente
pela visão de mundo equivocada de todo o es-
tablishment político. Como exemplos, o autor
cita o uso do dólar como uma arma econômica
e a explosão da desigualdade nos EUA como
indicativos de que a auto concepção da socie-
dade estadunidense como adaptável, justa e de-
mocrática, que sempre ocupará a vanguarda do
mundo, não condiz com a realidade das últimas
décadas. A falta de uma estratégia condizente
com o mundo do século XXI estaria, com isso,
ligada à própria inexibilidade do pensamento
estadunidense em conceber o mundo como ele
realmente é, ou seja, um mundo multipolar,
em que a ação dos EUA muito se distancia da
benevolência pacíca. Pelo contrário, o autor
entende que certos aspectos da sociedade esta-
dunidense sofrem com um processo de “ossi-
cação”, de forma similar àquela percebida no
ocaso da dinastia Qing, na China. O preço de
se reconhecerem como inerentemente virtuo-
sos e insubstituíveis acarretaria na impossibili-
dade de os Estados Unidos mudarem de rumo.
Os demais capítulos que dizem respeito
à China abordam duas problemáticas centrais
nos estudos ocidentais: a ideia do expansio-
nismo chinês, explicitada no Capítulo 4, bem
como a possibilidade de a China se tornar mais
democrática, abordada no Capítulo 6. De acor-
do com Mahbubani, se é verdade que a China,
ao longo de sua história, ocupou nações vizi-
nhas, ela também soube construir a paz na sua
convivência regional. Com a ascensão chinesa,
há maior preocupação pela manutenção de
sua soberania do que com um expansionismo
desenfreado. Nesse sentido, a assertividade da
política militar chinesa é muito mais defensiva
do que ofensiva. Além disso, a concepção da
civilização chinesa não é universalista, como
assim se assume a cultura estadunidense, e, por
isso, não haveria intenção, por parte da China,
em promover uma “sinização” do mundo. A
resolução do impasse de Taiwan e Hong Kong,
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que é vista pelo ocidente como evidência do
expansionismo chinês, é identicada pelo go-
verno comunista sob a ótica de uma correção
histórica de uma herança imperialista japonesa
e europeia. Da mesma forma, Mahbubani vê
que a ação chinesa no Mar do Sul da China é
reativa, fruto de uma percepção de ameaça pela
incursão da marinha estadunidense na região e
da corrida por reclamação de terras iniciada por
países vizinhos.
Sobre potencial transição para um sistema
democrático, Mahbubani oferece, no Capítulo
6, uma visão diferente do mainstream ocidental.
Tendo uma opinião positiva a respeito do atual
líder chinês, Xi Jinping, o autor expõe que uma
China estável e dinâmica economicamente
contribui para o desenvolvimento socioeconô-
mico do seu povo, como também produz bens
públicos globais. Se a China se democratizasse
de forma abrupta, como queriam os ocidentais
ao investirem na estratégia de abertura econô-
mica chinesa, mais provável seria a ascensão de
lideranças nacionalistas raivosas, com tendên-
cias imperialistas, como o é Donald Trump nos
EUA, do que líderes pragmáticos. Uma demo-
cracia chinesa, além disso, estaria pouco apta a
contribuir para com desaos globais, haja vista
o potencial nacionalista e introvertido de sua
sociedade. Ao contrário, a governança respon-
sável da China se reproduz na resposta a esses
desaos globais, como a mudança climática, já
que a China comunista de hoje emerge como
uma “potência do status quo”, e não uma “po-
tência revolucionária”. Para o autor, os diversos
dilemas do autoritarismo chinês não impedi-
ram o crescimento econômico, a ascensão de
um sistema público meritocrático e competen-
te, e o surgimento de novas classes, que irão,
cada vez mais, pressionar o governo comunista
por mais voz. Uma transição a um futuro sis-
tema democrático, portanto, virá de dentro e
terá características distintas de uma democracia
liberal.
Kishore Mahbubani questiona: sendo o
objetivo primordial dos EUA manter sua pri-
mazia no mundo e conter a China, não seria
contra os interesses nacionais dos EUA promo-
ver a democracia na China, já que a democra-
cia é, em tese, um motor do desenvolvimento?
Diversos exemplos desde a Primavera Árabe
mostram que uma democracia imposta de fora
produz o caos. Não seria esse o real interesse
dos EUA? Com isso, Mahbubani difere reais
interesses nacionais com propaganda política,
que é comum a ambos os lados. Fornece, as-
sim, ideias interessantes para um debate ainda
muito enviesado. Ao questionar assunções ti-
das como verdades pelos ocidentais, demons-
tra que ainda lhes falta um entendimento mais
aprofundado sobre a Ásia em geral e a China
em particular. Has China Won? Tem foco, por-
tanto, na falta de entendimento entre China
e EUA, e Mahbubani aborda apenas tangen-
cialmente, no Capítulo 8, as relações da China
com a Ásia, a Europa e a África, sequer mencio-
nando a América Latina. Para ele, cada região
abordará a ascensão chinesa de forma diferente,
mas cada uma irá contrabalançar as realidades
geopolíticas da ascensão chinesa, evitando to-
mar decisões ideológicas e alianças automáticas
como acontecera na Guerra Fria. Dando me-
nos atenção a essas regiões, o autor simplica,
assim, futuras transformações sistêmicas aos
movimentos estratégicos das duas maiores po-
tências do século, mesmo que talvez sejam estes
o ponto nevrálgico para se compreender a evo-
lução do sistema internacional no século XXI.
Sua conclusão paradoxal, contida no Ca-
pítulo 9, é a de que o conito entre os EUA e a
China é, ao mesmo tempo, inevitável e contor-
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nável. Todavia, para ser contornável, dependerá
da ação assertiva de ambas as nações na produ-
ção de estratégias pragmáticas. Para o autor, se
a China deveria manter sua abertura econômi-
ca, os EUA devem, por sua vez, investir na re-
forma estrutural de sua “plutocracia”, além de
compreender melhor o mundo e evitar intervir
no desenvolvimento próprio de cada país, que
cumpre seu próprio tempo e tem suas particu-
laridades históricas. Mahbubani acredita que
uma transição democrática chinesa, por exem-
plo, estaria muito mais próxima do caso japo-
nês – onde um partido dominante governa a
ilha há décadas sob forte inuência de sua cul-
tura mais conservadora – e não de uma demo-
cracia liberal ocidental. Isso, entretanto, como
explicado no capítulo 6, dependerá da ascensão
de forças econômicas progressistas internas,
que demandarão por maior abertura política.
Assim, o autor naliza a obra esclarecendo que
os EUA e a China possuem interesses comuns
vitais, principalmente o progresso de seus po-
vos em um mundo de paz e ambientalmente
sustentável. Estes, sim, deveriam ser, para Mah-
bubani, o balizador de suas relações no futuro.
Referências
MAHBUBANI, Kishore. Has China Won? e Chinese
Challenge to American Primacy. Nova Iorque: Public Aairs,
Hachette Book Group, 2020.