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De Trump a Biden: a política externa dos
EUA e a Ordem Liberal Internacional
From Trump to Biden: US foreign policy and the International Liberal Order
De Trump a Biden: la política exterior de Estados Unidos y el orden liberal internacional
Bárbara Vasconcellos de Carvalho Motta1
DOI: 10.5752/P.1809-6182.2022v19n1p42-54
RESUMO
O unilateralismo agressivo de Donald Trump colocou em questionamento um dos
principais motes sobre os quais, historicamente, se construiu a hegemonia norte-
americana: a lógica de que uma ordem liberal era benéca tanto aos demais países quanto
principalmente aos interesses dos Estados Unidos. A vitória de Joe Biden veio então
acompanhada da expectativa de um total reajuste na política externa estadunidense e
retorno dos EUA como patrocinador desta ordem. A partir desta discussão, o presente
artigo apresenta duas contribuições. Em primeiro lugar, apresentar a administração Trump
como um ponto de inexão neste processo. Diferentemente de governos anteriores, Donald
Trump tensiona, em conjunto e ao mesmo tempo, as três principais dimensões da ordem
liberal internacional, a saber: o liberalismo econômico, político e a intergovernabilidade
liberal. Em segundo lugar, inserir a administração Biden no amplo debate sobre transição
hegemônica e enfraquecimento da OLI com o objetivo de pontuar quais iniciativas de
política externa foram adotadas até o presente momento para recuperar a importância de
valores liberais e o status de liderança dos EUA.
Palavras-chave: Política Externa dos EUA; Donald Trump; Joe Biden; Ordem Liberal
Internacional; Transição Hegemônica.
ABSTRACT
Donald Trump’s aggressive unilateralism called into question one of the main pillars on
which, historically, American hegemony was built upon: the logic that an international
liberal order (ILO) was benecial both to other countries and mainly to the interests
of the United States. Joe Bidens victory forged the anticipation of a total readjustment
in American foreign policy and the US return as a sponsor of this order. Based on
this discussion, this article presents two contributions. First, it presents the Trump
administration as a turning point in this process. Unlike previous governments, Donald
Trump puts tension, together and at the same time, on the three main dimensions of
the international liberal order, namely: economic and political liberalism and liberal
intergovernability. Second, it inserts the Biden administration into the broad debate on
1 Doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas. Professora de Relações Internacionais na Universidade Fede-
ral de Sergipe. Membra do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Coordenadora do Observatório de
Política Exterior Brasileira (OPEB) do Observatório de Política Exterior (OPEx). Email: b.motta@academico.ufs.br
Artigo
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INTRODUÇÃO
O debate sobre mudanças na Ordem Libe-
ral Internacional (OLI) e consequente declínio
dos Estados Unidos (EUA) enquanto potência
hegemônica não é novo (Acharya, 2017; Allan;
Vucetic; Hopf, 2018; Ikenberry, 2005; Stokes,
2018). A cada momento crítico das relações
internacionais, seja por força de fatores exó-
genos ou endógenos aos Estados Unidos, essa
discussão ganha fôlego renovado. Fatores como
o fortalecimento de um possível contestador,
como o Japão nos 70 e 80 (Torres, 1999) e,
ainda, anos 90 (Gill, 1991; Huntington, 1988)
e atualmente a China (Layne, 2009; Schweller;
Pu, 2011), a existência de ameaças transnacio-
nais que colocam em xeque a preponderância
norte-americana, como no caso do terrorismo
internacional (Bergesen; Lizardo, 2004; Nayak;
Malone, 2009), ou até mesmo o recente cres-
cimento da nova direita global (Abrahamsen et
al., 2020), com governos que advogam práticas
nacionalistas e iliberais, são exemplicações do
conjunto de preocupações que impulsionaram
e ainda impulsionam os estudos sobre essa te-
mática.
No entanto, para além desses fatores in-
ternacionais que se impõem aos Estados Uni-
dos e afetam seu status de liderança internacio-
nal, recentes administrações norte-americanas
também contribuíram para a fragilização dos
valores liberais institucionalizados no pós-Se-
gunda Guerra Mundial. Desde a intervenção
de Clinton no Kosovo sem a aprovação do
Conselho de Segurança da ONU até a inter-
venção de George W. Bush no Iraque baseada
em ação unilateral e guerra preventiva (Silvers-
tone 2012), além da explícita violação de direi-
tos humanos e da Convenção de Genebra, pelo
uso de tortura contra os “unlawful combatants
hegemonic transition and weakening of the ILO with the objective of highlighting which
foreign policy initiatives have so far been adopted to recover the importance of liberal
values and the US leadership status.
Keywords: US Foreign Policy; Donald Trump; Joe Biden; International Liberal Order;
Hegemonic Transition.
RESUMEN
El agresivo unilateralismo de Donald Trump puso en duda uno de los principales temas
sobre los que, históricamente, se construyó la hegemonía norteamericana: la lógica de
que un orden liberal era benecioso tanto para otros países como principalmente para
los intereses de Estados Unidos. La victoria de Joe Biden estuvo acompañada entonces de
la expectativa de un reajuste total de la política exterior estadounidense y del regreso de
Estados Unidos como patrocinador de este orden. A partir de esta discusión, este artículo
presenta dos contribuciones. En primer lugar, presentar a la administración Trump como
un punto de inexión en este proceso. A diferencia de gobiernos anteriores, Donald Trump
pone en tensión, juntas y al mismo tiempo, las tres dimensiones principales del orden
liberal internacional, a saber: el liberalismo económico y político y la intergobernabilidad
liberal. En segundo lugar, insertar a la administración Biden en el amplio debate
sobre la transición hegemónica y el debilitamiento de la OLI con el objetivo de resaltar
qué iniciativas de política exterior se han adoptado hasta la fecha para recuperar la
importancia de los valores liberales y el estatus de liderazgo estadounidense.
Palabras clave: Política exterior de Estados Unidos; Donald Trump; Joe Biden; Orden
Liberal Internacional; Transición hegemónica.
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detidos pelos EUA (Steele, 2008, 2017), todas
essas ações de política externa colocaram sob
escrutínio a legitimidade norte-americana e a
ordem liberal.
Nessa toada, a administração Trump agra-
vou ainda mais essas contradições, tanto no
âmbito doméstico quanto internacional. Inter-
namente, se outros governos mantiveram um
nacionalismo cívico que buscava apaziguar as
desigualdades internas pela construção de um
pertencimento nacional razoavelmente inclusi-
vo, Trump deu voz a discursos ainda mais rea-
cionários, reinscrevendo o nacionalismo nor-
te-americano em bases étnicas e contribuindo
para acentuar os já existentes divisionismos
internos (Restad, 2020). No plano interna-
cional, por mais que governos unilateralistas
e bastante agressivos já tivessem passado pela
história norte-americana, Trump também reto-
mou o isolacionismo dos Estados Unidos com
sua política do “America First” e colocou em
questionamento um dos principais pilares de
sustentação da hegemonia norte-americana: a
aliança do eixo atlântico.
Toda essa trajetória apresenta uma série
de desaos ao atual governo Biden para repo-
sicionar os EUA na política internacional. O
presente artigo analisa, então, como esta admi-
nistração tem buscado reposicionar a hegemo-
nia norte-americana e, por desdobramento, a
OLI. Com isso, esta proposta apresenta duas
contribuições. Em primeiro lugar, apresentar
a administração Trump como um ponto de
inexão neste processo. Diferentemente de
governos anteriores, Donald Trump tensiona,
em conjunto e ao mesmo tempo, as três princi-
pais dimensões da ordem liberal internacional,
a saber: o liberalismo econômico, político e a
intergovernabilidade liberal. Além disso, anta-
goniza o principal grupo de países apoiadores
da liderança estadunidense: os países da Europa
Ocidental. Em segundo lugar, inserir a admi-
nistração Biden no amplo debate sobre tran-
sição hegemônica e enfraquecimento da OLI
com o objetivo de pontuar quais iniciativas
de política externa foram adotadas até o pre-
sente momento para recuperar a importância
de valores liberais e o status de liderança dos
EUA. Por mais que este governo ainda esteja
em curso, o que não nos possibilita olhar para
ele a partir de um sentido de conclusão e um
afastamento histórico, ainda assim entendemos
que ele é um objeto de análise importante para
compreendermos, no tempo presente, os sig-
nicados da atuação Biden para a política in-
ternacional em possível contexto de transição
hegemônica.
Nesse sentido, além desta introdução e da
conclusão, o artigo será estruturado da seguin-
te forma. A primeira seção abordará o debate
sobre a construção da ordem liberal interna-
cional pelos Estados Unidos, apontando em
que medida a administração Trump contribuiu
para colocar em xeque tanto esta respectiva or-
dem quanto o papel dos EUA nela. A segunda
terá como foco as iniciativas do governo Biden
com vistas a resgatar a importância dos valores
liberais e a liderança norte-americana, usando
pontualmente a guerra na Ucrânia como uma
ilustração desse processo.
TRUMP E SUAS POLÍTICAS
ILIBERAIS
Independente de o início da hegemonia
norte-americana ter seu marco zero no pós-Se-
gunda Guerra Mundial ou no pós-Guerra Fria,
o debate sobre a construção da hegemonia es-
tadunidense e da OLI converge para o enten-
dimento de que esta é marcada por pelo menos
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três dimensões: a defesa do liberalismo econô-
mico, a ênfase no liberalismo político e o papel
das instituições internacionais (Cooley; Nexon,
2020; Ikenberry, 2005; Peterson, 2018).
No que tange o liberalismo econômico2, a
ordem foi construída a partir do compromisso
com o mercado e a liberalização cada vez mais
intensa das economias nacionais, sob a justica-
tiva de que o livre-mercado seria a forma mais
eciente e benéca de inserção internacional.
Em relação ao liberalismo político, o elemento
denidor desta ordem é a criação de uma gover-
nança internacional com o maior número pos-
sível de democracias liberais que estabeleçam
um compromisso de representatividade e obri-
gações perante seus nacionais (Deudney; Iken-
berry, 1999; Ikenberry, 2005; Ruggie, 1982).
Do ponto de vista dos valores liberais, as
estratégicas de engajamento externo dos EUA,
tanto em sua via exemplarista, com o reforço
dos valores liberais em âmbito doméstico, apre-
sentando-o como exemplo a ser seguido pelos
demais países, quanto pela via excepcionalista,
que enxerga a experiência dos EUA de modo
singular e superior, outorgando-lhe o direito
de intervir externamente para propagar estes
valores, compartilham a concepção da paz de-
mocrática (Doyle, 2005; Owen, 2014; Russett
et al., 1995). Isto é, de que um mundo com-
posto por democracias seria um mais pacíco
na medida em que democracias não entram em
conito entre si.
Na esfera da intergovernabilidade liberal,
a presente ordem estaria assentada não apenas
2 Vale, neste ponto, tensionar a defesa do liberalismo eco-
nômico proposta pelos Estados Unidos. Ainda que Trump
tenha aprofundado o protecionismo norte-americano, tal
prática foi adotada em vários momentos pregressos da his-
tória dos EUA. Como apontam Mendonça (et al, 2017),
enquanto os EUA defenderam o liberalismo para além de
suas fronteiras nacionais, avançaram internamente práticas
para proteger, sobretudo, seu setor agrícola.
na compreensão de que as relações entre os
atores geralmente respeitam a ideia da igualda-
de soberana entre as partes, como também na
identicação de que as instituições internacio-
nais são ao mesmo tempo um fórum que re-
força a igualdade de direitos e reconhecimento
mútuo3, como um ente que auxilia na difusão
do liberalismo político e econômico (Cooley;
Nexon, 2020).
Nesse sentido, dois elementos são impor-
tantes para avaliarmos a atuação do ex-presiden-
te Trump frente à hegemonia norte-americana
e à OLI. Em primeiro lugar, a compreensão de
que qualquer ordem internacional não é estan-
que, nem totalmente estável. Ela é um proces-
so dinâmico que se (re)estabelece ao longo do
tempo, via processos de ordenamento baseados
em normas, regras e arranjos que, por mais que
sejam avançados por um ator preponderante,
precisam do auxílio e legitimação dos demais
atores. Em segundo lugar, o entendimento de
que nunca existiu uma ordem liberal comple-
tamente homogênea, sem entes questionado-
res, potenciais revisionistas ou contradições
internas (Simão, 2019). Esses dois pontos são
importantes para situarmos a administração
Trump em um contexto mais amplo e com-
preendermos o porquê de ela ter sido enfatiza-
da como ponto de inexão na trajetória esta-
dunidense. Se Donald Trump não é a causa do
declínio dos EUA e do questionamento à OLI,
3 A aparência se isonomia no que tange à intergovernabilida-
de liberal é um dos fatores que auxilia os EUA na construção
de uma hegemonia que se pretende ser apresentada como
sustentada por dinâmicas de consenso. No entanto, con-
senso e coerção são dinâmicas constitutivas da hegemonia
(Gramsci, 1999). Seja pela via do constrangimento, da isen-
ção (Ruggie, 2009), do reconhecimento de direitos especiais
(Bull, 2012) ou da violação explícita de regras e normas pac-
tuadas, como nos casos da ruptura unilateral com o acordo
de Bretton Woods nos anos 1970, ou na intervenção dos
EUA no Iraque, em 2003, dinâmicas de desigualdade por
vezes se sobrepõem a essa pretensa isonomia.
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mas sim consequência de uma série de elemen-
tos domésticos e internacionais que contribuí-
ram para a sua eleição (Boyle 2020; Ikenberry,
2019, 2017), ele pode ser visto, sem dúvida,
como um fator catalisador desse processo.
Diferentemente de presidentes anterio-
res, Trump contribuiu para enfraquecer as
três dimensões da ordem liberal internacional,
em conjunto (Cooley; Nexon 2020; Karkour,
2020; Stokes, 2018). Autores como Barry Po-
sen (2018), em seu texto para a Foreign Af-
fairs, classicam a grande estratégia de Trump
como iliberal, tanto por seu questionamento
às instituições internacionais e ao multilatera-
lismo, priorizando ações unilaterais e coerciti-
vas, quanto pela percepção ampla de que não
mais interessaria aos Estados Unidos a difusão
de valores liberais, como os de democracia e
livre-comércio.
Este desinteresse é perceptível na National
Security Strategy (NSS), de 2017, segundo a
qual desde “a década de 1990, os Estados Uni-
dos apresentaram um grande grau de compla-
cência estratégica” pois “assumi[ram] que [sua]
superioridade militar estava garantida e que
uma paz democrática era inevitável”, além de
acredita[rem] que o alargamento e a inclusão
de democracias liberais alterariam fundamen-
talmente a natureza das relações internacionais
e que a concorrência daria lugar à cooperação
pacíca4 (THE WHITE HOUSE, 2017, p.
27). A percepção de que se vincular aos valores
liberais não mais beneciava os EUA é ponto
4
No original: “Since the 1990s, the United States dis-
played a great degree of strategic complacency. We
assumed that our military superiority was guaranteed
and that a democratic peace was inevitable. We be-
lieved that liberal-democratic enlargement and inclu-
sion would fundamentally alter the nature of interna-
tional relations and that competition would give way
to peaceful cooperation”. Tradução nossa.
fundamental para compreendermos a política
externa da administração Trump, sobretudo
em relação aos pilares da OLI.
Nas relações dos EUA com o sistema eco-
nômico internacional, Trump buscou repensar
o engajamento dos EUA com o liberalismo
econômico, retirando o país de acordos consi-
derados ruins ou, pelo menos, de acordos que
não atendiam aos interesses de alguns setores
econômicos que nos últimos anos perderam
competitividade e passaram a se sentir mar-
ginalizados, como as áreas manufatureiras do
Rust Belt (Poty, 2021). Essa lógica também fun-
damentou a retirada dos EUA da Trans-Pacic
Partnership (TPP)5, um extenso acordo de li-
vre-comércio entre doze países banhados pelo
Oceano Pacíco, além de orientar Trump em
sua ameaça de sair do North American Free Tra-
de Agreement (NAFTA), voltando atrás e rene-
gociando a criação de novo acordo de livre co-
mércio com o Canadá e o México, o USMCA
(Peterson, 2018). Ademais, Trump contribuiu
para a fragilização do principal ente interna-
cional para contenciosos comerciais, o Órgão
de Solução de Controvérsias (OSC) da Orga-
nização Mundial do Comércio (OMC), ao se
recusar a aprovar a troca de juízes nesse órgão
(Drezner, 2019).
Para além do questionamento a acordos
especícos, essas ações também estavam alicer-
çadas em uma perspectiva conservadora mais
ampla veiculada pela administração Trump.
Esta buscava atender aos anseios de certos se-
tores sociais nos EUA, como os white trash
5 Essa iniciativa, no entanto, não se restringe ao governo
Trump, ainda que este tenha intensicado práticas de prote-
ção à economia norte-americana. Durante o governo Oba-
ma o próprio congresso já havia sinalizado a não-raticação
do acordo, o que demonstra a existência de segmentos polí-
ticos, para além de Trump, contrários à proposta de adesão
ao TPP (Pecequilo; Forner, 2017).
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parcela branca, cristã e de classe média, que nas
últimas décadas perdeu poder de compra e viu
o sonho americano sendo inviabilizado. Além
disso, almejava também a inclusão na pasta
econômica de indivíduos, como Peter Navarro,
um dos mais altos conselheiros de Trump para
assuntos comerciais, que em seu documentário
Death by China vinculou o declínio da capaci-
dade de fabricação manufatureira dos EUA ao
aumento do aborto, do divórcio, da infertilida-
de, ao uso de opioides, ao aumento do crime,
entre outros fatores (Peterson, 2018).
Do ponto de vista do liberalismo político,
a administração Trump rompeu com o consen-
so histórico de que a difusão da democracia e o
arregimento de Estados competidores seria be-
néco aos EUA. Como apontado em sua NSS,
os EUA precisavam “repensar as políticas (...)
baseadas na suposição de que o engajamento
com rivais e sua inclusão em instituições in-
ternacionais e comércio global os transforma-
ria em atores benignos e parceiros conáveis
pois, na maior parte do tempo “essa premissa
acabou se mostrando falsa” (THE WHITE
HOUSE, 2017, p. 3)6. Além disso, Trump exa-
cerbou uma série de divisionismos internos:
(i) seja com discursos pautados em preconcei-
tos raciais, como a iniciativa de construir um
muro entre EUA e México e banir a entrada
de indivíduos de países, em sua maioria mul-
çumanos (Restad, 2020); (ii) com discursos
de gênero, como quando mencionou em seu
twitter a proibição de indivíduos transgênero
nas forças armadas norte-americanas (Peterson,
2018); (iii) ou até mesmo encorajando grupos
6 No original: “to rethink the policies of the past two de-
cades—policies based on the assumption that engagement
with rivals and their inclusion in international institutions
and global commerce would turn them into benign actors
and trustworthy partners. For the most part, this premise
turned out to be false”. Tradução nossa.
de extrema direita e supremacia branca, como
os Proud Boys, Oath Keepers e o QAnon, inclu-
sive na contestação dos resultados da eleição de
2020 (Forrest, 2021; Jackson, 2020; Levy; Ail-
worth, 2021; McQueen, 2021), que culminou
na invasão do Capitólio.
Além de colocar em dúvida o imaginário
largamente veiculado da sociedade estaduni-
dense como multicultural e aberta (Milani,
2021), essas políticas perseguidas por Trump
também privilegiaram, como aponta Restad
(2020), um nacionalismo étnico em detrimen-
to de um nacionalismo cívico. Em outras pala-
vras, o conservadorismo do governo Trump em
várias circunstâncias enfatizou uma concepção
nativista (Goldstein, 2017; Huber, 2016) de
nacionalidade, em que a ideia de nação é cir-
cunscrita a fatores físicos, culturais e raciais,
como religião e idioma, fragmentando a socie-
dade estadunidense entre indivíduos de primei-
ra e segunda classe. Com isso, esta administra-
ção reduziu em importância um nacionalismo
de contornos cívicos, hegemônico desde o m
da Segunda Guerra Mundial, que se assenta na
compreensão dos EUA como um país fundado
por um conjunto de ideias liberais, em contra-
posição a liações de sangue e pertencimento
ao solo (Restad, 2020).
Por m, outro traço de iliberalidade do
governo Trump se refere à sua postura em re-
lação à intergovernabilidade liberal. As práticas
estadunidenses de se ausentarem de compro-
missos multilaterais não é uma especicidade
do governo Trump (Ruggie, 2009). Em mo-
mentos anteriores os EUA optaram por não
participar de iniciativas importantes como o
Tribunal Penal Internacional (TPI), o Protoco-
lo de Kyoto, o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, da ONU, e
a Convenção Americana sobre Direitos Hu-
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manos. Trump, no entanto, exacerba esse pro-
cesso. Em seu governo, o descompromisso dos
EUA com as instituições multilaterais se dá
menos de modo pontual e mais a partir de um
amplo questionamento ao multilateralismo em
sua essência, como quando o Secretário de Es-
tado de Trump, Mike Pompeo, armou que:
O multilateralismo muitas vezes passou a ser
visto como um m em si mesmo. Quanto
mais tratados assinarmos, mais seguros es-
taremos. Quanto mais burocratas tivermos,
melhor será o trabalho. Isso foi realmente
verdade? (...) Toda nação – toda nação – deve
reconhecer honestamente suas responsabili-
dades para com seus cidadãos e perguntar se
a atual ordem internacional serve ao bem de
seu povo tão bem quanto poderia (Pompeo,
2018)7
Assim, a administração Trump retirou os
EUA de importantes fóruns e pactos, como o
Acordo de Paris, o Conselho de Direitos Hu-
manos (CDH) da ONU e a UNESCO. No
entanto, uma das iniciativas que contribuiu
largamente para o questionamento da OLI e a
posição de preponderância e legitimidade dos
EUA nela foram os sucessivos ataques de ex-
-presidente à Organização do Tratado do Atlân-
tico Norte (OTAN), constrangendo os demais
países-membros a aumentarem seus aportes de
recursos (Drezner, 2019; Hill; Hurst, 2020).
Entretanto, como apontam Nexon e Newman
(2017), o fornecimento insuciente de defesa
pelos aliados não é uma distorção na arquite-
tura de segurança global proposta pelos EUA,
mas sim uma de suas características denido-
ras, já que foi esta mesma arquitetura que não
7
No original: “Multilateralism has too often become viewed
as an end unto itself. e more treaties we sign, the safer
we supposedly are. e more bureaucrats we have, the bet-
ter the job gets done. Was that ever really true? (...) Every
nation—every nation—must honestly acknowledge its re-
sponsibilities to its citizens and ask if the current interna-
tional order serves the good of its people as well as it could”.
Tradução nossa.
apenas permitiu um ambiente favorável para
que os EUA se consolidassem como o primeiro
lugar inconteste em capacidades bélicas, como
também favoreceu o estabelecimento de uma
relação de dependência entre Europa e Estados
Unidos para a garantia da segurança e da estabi-
lidade no eixo atlântico e internacionalmente.
Ainda, em sua primeira conferência da
OTAN, para a ocasião de inauguração de me-
morial para as vítimas do 11 de setembro,
Trump se recusou a mencionar o compro-
misso estadunidense com o artigo V do trata-
do constitutivo da organização, fundante do
compromisso de segurança coletiva (Peterson,
2018). Além de romper com trajetória pre-
gressa, em que, na contemporaneidade, todos
os presidentes norte-americanos reforçaram a
interpretação de que um ataque a um mem-
bro da organização seria visto como um ataque
a todos, Trump também abalou a relação de
conança e o compromisso dos EUA com seus
aliados europeus.
Esses elementos são apenas algumas ilus-
trações de como a administração Trump con-
tribuiu para colocar, ao mesmo tempo, os três
pilares da OLI sob estresse. No entanto, como
pontuado anteriormente, toda ordem interna-
cional e seus projetos hegemônicos necessitam
de apoio e legitimação vindos de demais ato-
res, redes e instituições. No caso da OLI, um
dos seus principais eixos de sustentação é jus-
tamente o eixo atlântico, o que torna o ques-
tionamento de Trump à aliança historicamente
estabelecida entre Estados Unidos e Europa
Ocidental um elemento fulcral de fragilização
da presente ordem e da hegemonia norte-ame-
ricana. Ainda que Trump não tenha extinguido
a aliança atlântica, a despeito de seus questio-
namentos à OTAN, a relação com seus aliados
europeus foi fragilizada. Sob esta perspectiva, é
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importante considerarmos como a administra-
ção Biden busca reposicionar a preponderância
estadunidense, bem como as relações de amiza-
de com a sua contraparte europeia.
BIDEN E O PROJETO DE
RETOMADA DA ORDEM
LIBERAL
Joe Biden, desde a sua campanha para a
presidência, se apresentou com uma visão de
mundo oposta àquela de Trump. Contraria-
mente à postura unilateral e individualista do
make America great again” (Stephens, 2017),
o mote da chapa Biden-Harris foi “we are
back” (Biden, 2021b); ou seja, os EUA reto-
mariam não apenas a ênfase na participação
em instituições multilaterais internacionais,
sobretudo naquelas com debates apresentados
pelo governo Biden enquanto urgentes, como
a questão de direitos humanos, meio ambiente
e gênero/direito das mulheres, como também
no seu compromisso de garantir a estabilidade
internacional e a manutenção dos valores libe-
rais democráticos (Biden, 2020). Na busca por
reassumir o controle, a presença e a liderança
estadunidense, Biden vem buscando resgatar a
legitimidade dos EUA nos três pilares da OLI.
Do ponto de vista do liberalismo econô-
mico, por mais que Biden tenha mantido intac-
tas várias das tarifas impostas à China (Nathan,
2021), seu governo tem objetivado aumentar
as relações de livre comércio com países asiáti-
cos na tentativa de conter a expansão chinesa.
Neste sentido, em 23 de maio de 2022, o pre-
sidente Biden viajou para o Japão para lançar
um acordo econômico entre doze países do In-
do-Pacíco que, entre outros objetivos, tem o
intuito de oferecer tarifas mais baixas e acesso
ao mercado estadunidense (Sevastopulo; Inaga-
ki, 2022). Para além de manter os EUA eco-
nomicamente ativos em regiões estratégicas, o
governo Biden também tem buscado lidar in-
ternamente com a questão das desigualdades
sociais, interpretando-as como resultado de
políticas que enfraqueceram os trabalhadores e
fortaleceram grandes corporações e, portanto,
só poderiam ser sanadas por meio de políticas
públicas para a promoção de uma prosperidade
amplamente compartilhada (Biden, 2020).
Em relação ao liberalismo político, Biden
apontou de modo explícito que sua adminis-
tração objetiva atuar “não apenas pelo exem-
plo do nosso poder, mas também com o poder
do nosso exemplo” e que para isso seu gover-
no “tomar[ia] medidas decisivas para renovar
nossos valores fundamentais” (Biden, 2020,
tradução nossa). Dessa forma, em âmbito do-
méstico, além de mobilizar o aparato público
para resgatar a conança no sistema eleitoral
norte-americano, Biden, em junho de 2021,
estabeleceu iniciativa crucial para combater
movimentos extremistas internos que tem con-
tribuído para a fragilização da democracia esta-
dunidense: a National Strategy for Countering
Domestic Terrorism. Nesse documento há uma
inclinação para considerar as milícias domésti-
cas, principalmente as de supremacia branca,
como grupos que praticam terrorismo domés-
tico, podendo assim ser investigadas e incrimi-
nadas (THE WHITE HOUSE, 2021b). Já no
âmbito internacional, a administração Biden
cumpriu sua promessa de campanha ao fomen-
tar um diálogo internacional para o avanço da
democracia, na elaboração da Summit for De-
mocracy, ocorrida em dezembro de 2021, que
reuniu uma série de lideranças políticas, da so-
ciedade civil e do setor privado, com o objetivo
de colocar uma agenda armativa para renovar
a democracia e enfrentar o problema interna-
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cional da ascensão de grupos antidemocráticos
(U.S. DEPARTMENT OF STATE, 2021).
Por m, no que tange à intergovernabili-
dade liberal, uma das primeiras iniciativas de
Biden foi retomar a participação dos EUA em
acordos e instituições centrais da OLI, como o
Acordo de Paris, o CDH e a UNESCO. Para
além disso, a escolha de Linda omas-Green-
eld como embaixadora estadunidense na
ONU é central para o resgate do engajamento
dos EUA com o multilateralismo internacio-
nal. Em sua conrmation hearing, omas-
-Greeneld armou que, por mais que certas
instâncias internacionais estejam engessadas e
tenham perdido sua capacidade de constran-
ger e penalizar, como o CDH que, em suas
palavras, há muito tempo não consegue avan-
çar uma condenação por violação de direitos
humanos, o caminho ideal para os EUA não
é se retirar e se isentar das discussões nesses
órgãos, mas sim de reforçar sua participação
(omas-Greeneld, 2021). Essa postura é
fundamental não apenas porque a participa-
ção dos EUA em fóruns multilaterais é vista
como importante pelos demais países da OLI,
mas também pela percepção de que atores
como a China e a Rússia, mas principalmente
a China, foram ocupando os espaços deixados
com o vácuo de poder norte-americano (o-
mas-Greeneld, 2021).
No entanto, de todos os questionamen-
tos apresentados pelo governo Trump sobre
a validade e a desejabilidade do engajamento
internacional dos EUA, aquele direcionado à
OTAN pode ser visto como o mais prejudicial
para a liderança norte-americana, uma vez que
fragiliza sua principal base de apoio. O resgate
desses laços de conança é um dos maiores de-
saos da administração Biden. Neste sentido,
a guerra na Ucrânia, iniciada com a invasão
russa em fevereiro de 2022, é útil aos EUA,
na medida em que auxilia nas duas dimensões
desenhadas pela política externa Biden: uma
competitiva em relação aos governos iliberais
e outra cooperativa em relação às democracias
(Soller, 2021).
Na dimensão competitiva, a Interim Na-
tional Security Strategic Guidance, apresentada
por Biden já em março de 2021, colocou de
modo claro a China e a Rússia como os prin-
cipais desaantes dos EUA e da OLI (THE
WHITE HOUSE, 2021a). Dessa forma, a
invasão da Rússia à Ucrânia, combinada com
a aproximação recente entre Rússia e China e
a recusa desta em condenar explicitamente tal
ato (McGregor, 2022), contribuem para o (re)
estabelecimento do recorrente discurso norte-
-americano que reforça “os valores dos Estados
Unidos [como] imprescindíveis ao mundo
(Biden, 2021c, tradução nossa). Em um mo-
mento internacional em que a Guerra Global
ao Terror vem, continuamente, perdendo for-
ça8 e não consegue mais mobilizar o aparato
estadunidense e a comunidade ocidental in-
ternacional contra um inimigo comum, a lo-
calização de um novo inimigo de proporções
globais auxilia os EUA a demarcar seu propósi-
to e sua capacidade de garantir bens públicos.
Para realizar tal tarefa, Biden enfatiza que “a
América não pode enfrentar os seus inimigos
sozinha” (Biden, 2020, tradução nossa), ne-
cessitando, cada vez mais, de seus aliados eu-
ropeus. Por identicar a relação com a Europa
8 A mudança de foco da atuação norte-americana pode ser
percebida desde o governo Obama, em que os Estados Uni-
dos começam a redirecionar suas atenções das intervenções
pós-11/09 para a Ásia. Além do processo de retirada das
tropas do Afeganistão, inicialmente prometida por Obama,
decidida por Trump, mas apenas implementada por Biden,
desde 2011, com a estratégia Pivot to Asia, que os Estados
Unidos reorientaram seu foco, sobretudo, para a contenção
da China (Poty, 2022).
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como fundamental para a OLI, na Conferência
de Segurança de Munique, que ocorreu a 19
de fevereiro de 2021, Biden não apenas rea-
rmou a importância do artigo V da OTAN,
como reiterou que “a parceria entre a Europa e
os Estados Unidos [...] é e deve continuar a ser
a pedra angular de tudo o que esperamos reali-
zar no século XXI, tal como zemos no século
XX”9 (Biden, 2021a, tradução nossa).
Nesse contexto, por mais que a adminis-
tração Biden tenha continuado os esforços de
contenção da China, o reforço do antagonismo
Rússia-Estados Unidos, herdado do período da
Guerra Fria, veio ao encontro da iniciativa Bi-
den de reforçar a hegemonia norte-americana.
Resgatar o imaginário de um inimigo historica-
mente reconhecido tanto pelos EUA como por
seus aliados no eixo atlântico vem contribuindo
para que Biden rearme a importância dos EUA
como patrocinadores da ordem, da estabilidade
e da segurança internacional. Desde a eclosão
da guerra, o governo norte-americano já dispo-
nibilizou mais de 43 mil milhões de dólares em
assistência de segurança, além de ter submetido
ao Congresso, em 10 de agosto de 2023, um
pedido de quase US$ 24 bilhões em nancia-
mento suplementar no ano scal de 2024 para
continuar o esforço de auxílio à Ucrânia e aos
países do entorno (US CONGRESS, 2023).
Grande parte deste auxílio se destinou ao
fornecimento de material bélico, treinamento
e compartilhamento de informações, via inte-
ligência, para que os comandantes ucranianos
possam sobrepor o exército russo e, potencial-
mente, vencer a guerra. Conforme o conito se
9
No original: “e partnership between Europe and
the United States, in my view, is and must remain
the cornerstone of all that we hope to accomplish in
the 21st century, just as we did in the 20th century”.
Tradução nossa.
prolonga, a avaliação de que o governo ucra-
niano necessita de ativos militares ainda mais
sosticados ou de difícil circulação fomenta
uma maior concertação atlântica. Desde en-
tão, os EUA não só concordaram em fornecer
tanques de batalha Abrams (Bertrand; Lieber-
mann, 2023) e o sistema de lançamento de fo-
guetes HIMARS (Whittaker, 2022), entre ou-
tros exemplos, como também permitiram que
seus aliados europeus enviassem jatos F-16, de
fabricação norte-americana (EUA..., 2023). O
esforço do Ocidente frente a uma ameaça ime-
diata foi ao encontro da proposta do governo
Biden de re-estreitar os laços entre os países
que compõem a OTAN. Ainda que aliança não
tenha se engajado diretamente na guerra, so-
bretudo por receio de que esta escalasse para
um conito nuclear, a mobilização de auxílio à
Ucrânia contra uma agressão russa vem sendo
fundamental para apaziguar as reticências pos-
tas por Trump em relação ao papel desempe-
nhado pelos EUA na Organização.
Ainda, do ponto de vista da hegemonia
norte-americana, a oposição à Rússia, princi-
palmente via um front ocidental único, é um
importante movimento de sinalização para que
outros países, mormente a China, não se aven-
turem em agressões semelhantes, sob a pena de
sofrerem sanções. Apresentar esses dois países
como, ambos, desaantes da OLI tem ainda
mais condições de aproximar as democracias
e apaziguar as desconanças fomentadas pela
administração Trump. De modo preliminar,
podemos considerar que o conito na Ucrânia
contribui, então, para a dimensão cooperativa
da política externa de Biden ao oferecer um
ambiente fértil no qual a necessidade de refor-
çar as relações transatlânticas contra governos
considerados iliberais e disruptivos ganha reno-
vado estímulo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A despeito de todas as diferenças, Trump
e Biden compartilham um ponto em comum:
a percepção de que a posição hegemônica dos
EUA vem se alterando a passos largos nos úl-
timos anos. No entanto, enquanto Trump en-
tendia a liderança norte-americana como pro-
blemática pelos custos que ela impõe, Biden
resgata a percepção de que os EUA “estão pre-
parados para liderar novamente” e que “nenhu-
ma outra nação tem essa capacidade” (Biden,
2020, tradução nossa), sendo fundamental que
os EUA “defend[am] a liberdade e a democra-
cia” (Biden, 2020, tradução) e que consigam
manter fortes os três principais pilares da or-
dem liberal internacional, para que esta possa
perdurar como um bem em si mesmo e que
sirva de escudo frente a um possível movimen-
to de transição hegemônica. Com isso, inicia-
tivas como as apresentadas acima, em conjun-
to com o retorno à Organização Mundial da
Saúde, a promoção de um Fórum das Grandes
Economias para discutir questões sobre energia
e clima, antes da COP26, e a proposição da
suspensão temporária de patentes das vacinas
de COVID-19, buscam reapresentar os EUA
como paymaster da ordem liberal internacional.
A invasão da Rússia à Ucrânia, apesar de
suas consequências negativas e prejudiciais aos
direitos humanos, vem contribuindo para o
objetivo da administração Biden de assumir
com renovado ânimo a agenda liberal, tanto
no âmbito doméstico quanto internacional. Se
mesmo com o reposicionamento, no início da
administração Biden, das relações transatlân-
ticas como primordiais, a Europa Ocidental
ainda via os Estados Unidos com reticências
e percebia com cautela o desejo estadunidense
de que a Europa se afastasse economicamente
da China, a guerra na Ucrânia contribuiu para
alterar esse panorama. Por um lado, o conito
forneceu aos EUA novos elementos para, mi-
nimizada a força discursiva da Guerra Global
ao Terror, renovar o discurso de um inimigo
comum que unique a aliança ocidental. Por
outro, criou um ambiente em que a Europa,
em situação de instabilidade, precisa do supor-
te de aliados, sobremaneira os EUA, para lidar
com os problemas de fornecimento de petró-
leo e gás causados pela guerra da Ucrânia, além
de mobilizar medidas punitivas para garantir a
segurança no continente europeu. Novamente,
os EUA retomam os fundamentos da ordem
apresentada no pós-Segunda Guerra Mundial,
em que o insuciente nanciamento da OTAN
pelos aliados europeus não é um defeito a ser
corrigido, mas sim uma das forças aglutinado-
ras do bloco ocidental, reforçando, inclusive, a
preponderância norte-americana no continen-
te europeu.
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