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Lógica da (In)apropriação? Os problemas
do construtivismo na análise do
alargamento da União Européia
Logic of (In)appropriateness? The problems of
constructivism in the analysis of European Union
enlargement
Fabiano Mielniczuk
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DOI: 10.5752/P.2317-773X.2019v7.n2.p7
Recebido em: 12 de junho de 2018
Aprovado em: 20 de agosto de 2018
R:
Muitos construtivistas na área de Integração Européia oferecem explicações
sobre o processo de alargamento da UE a partir da lógica da apropriação,
opondo-a a explicações baseadas na lógica da conseqüência. A primeira seria
fundada em uma ontologia construtivista, indicando a prevalência das normas
na determinação do comportamento dos atores. Já a segunda é associada a
uma ontologia racionalista, com atores que interagem a partir de identida-
des pré-denidas, não constituídas pelas normas dos contextos de interação.
Na medida em que os candidatos do leste da Europa foram incorporados ao
processo de adesão, esperava-se a adequação de suas condutas às normas que
conferiam identidade à União Européia. O problema é que a lógica da apropria-
ção pressupõe a existência de normas institucionalizadas, de modo que as ações
dos não-membros pudessem ser comparadas a elas e consideradas “apropriadas”
ou não. Isso implica, também, que os membros da UE deveriam reproduzir em
suas ações o que prescrevem para que novos candidatos fossem aceitos. Todavia,
uma breve análise do trato conferido às minorias indica que essas duas condi-
ções não foram satisfeitas durante o processo de alargamento. O artigo elabora
os motivos teóricos e políticos para essa inconsistência, e propõe que o modelo
construtivista é inapropriado.
Palavras-Chave: Alargamento da União Européia; Construtivismo Social; Inte-
gração Européia; Condicionalidades; Lógica da Apropriação.
A:
Many constructivists in the eld of European Integration treat the process
of EU enlargement employing the logic of appropriateness as a theoretical
framework, in opposition to the logic of consequences. The former is based
on a constructivist ontology which asserts that norms play an important role
in determining actors` behavior. By its turn, the latter is associated to a ratio-
nalist ontology, in which actors have pre-determined identities that are by no
means constituted by the context in which they interact. When states from East
Europe started the process of accession, they were expected to adequate their
1. Doutor em Relações Internacionais
pelo IRI/PUC-Rio, é mestre em Relações
Internacionais pelo mesmo Instituto
e graduado em Ciências Sociais pela
UFRGS. Professor do Departamento de
Ciência Política da UFRGS e Colaborador
dos Programas de Pós-graduação em
Ciência Política e Estudos Estratégicos
Internacionais. Porto Alegre/Brasil.
ORCID: 0000-0002-0060-1039
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 2, (ago. 2019), p.7 - 20
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behavior to the norms that confer identity to the EU. The problem is that the
logic of appropriateness presupposes the existence of an institutionalized set
of norms that can be contrasted to non-members actions so that they can be
evaluated as appropriate or inappropriate to join the EU. It also implies that old
members must follow what they prescribe as conditions to the acceptance of
future members. A brief analysis of the policies toward minority rights demons-
trates that these two conditions were not satised during the enlargement pro-
cess. The paper presents theoretical and political motives for this inconsistency,
and argues that the constructivist model is inappropriate.
Key-words: European Union Enlargement; Social Constructivism; European
Integration; Conditionalities; Logic of Appropriateness.
Introdução
Nos estudos construtivistas sobre o alargamento europeu é bastan-
te comum se armar que os atores são regidos pela lógica da apropriação
em oposição à lógica da conseqüência (OLSEN; MARCH, 2004). A pri-
meira signica aceitar que os atores agem conforme aquilo que é apro-
priado ao contexto de interação. Portanto, há um efeito constitutivo que
parte da estrutura para a agência. Já a lógica de conseqüência pressupõe
que atores com interesses pré-estabelecidos interagem com a estrutura
apenas em busca da otimização dos resultados, sem que ela afete suas
propriedades constitutivas. Um exemplo ilustra esse emprego.
Schimmelfennig (2002) formula a hipótese da comunidade libe-
ral para explicar o processo de alargamento: sua probabilidade depen-
de do grau em que os candidatos aderem aos valores e normas liberais
que constituem a identidade da União. Assim é possível entender porque
o processo de alargamento também é tratado como resultado de uma
armadilha comunitária.” Mesmo incertos a respeito das conseqüências
provenientes do alargamento, os Estados membros da UE são obrigados
a aceitar o processo de expansão na medida em que alguns candidatos
da Europa do Leste e Central incorporaram os valores liberais (SCHIM-
MELFENNIG, 2001).
Há pelo menos três problemas nessa abordagem. Em primeiro
lugar, há o pressuposto de que existe uma identidade comum entre os
membros da União que, em termos gerais, pode ser tratada de forma ho-
mogênea e xa quando vista de fora. Portanto, priorizar esse enfoque im-
plica negligenciar as tensões a respeito da própria identidade da União e a
indenição contida nos documentos ociais que a denem. Um segundo
problema, que de certo modo está associado ao anterior, se relaciona ao
pressuposto de que os valores liberais aceitos como os que fundamentam
a identidade coletiva da União Européia são praticados. Essa presunção
desconsidera os problemas relacionados à aplicação dos critérios de con-
dicionalidade aos candidatos a partir de um padrão duplo, visto que eles
não são exigidos dos membros que já fazem parte da Organização. Por
último, aceitar a lógica da apropriação implica desconsiderar os impactos
dos não-membros na constituição da identidade da UE. Isso é problemá-
tico na medida em que a adoção de uma identidade pré-estabelecida para
a UE limita a aplicação da teoria construtivista.
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Fabiano Mielniczuk Lógica da (In)apropriação?
O que proponho é problematizar o emprego desse modelo para
explicar o alargamento europeu. O texto está dividido em quatro partes.
Na seção 2, apresento a formulação original da lógica da apropriação e a
utilização do conceito nos estudos sobre o alargamento da UE. Na seção
3, a contradição entre o discurso e a prática em relação às exigências feitas
aos candidatos é tratada. Na seção 4 apresento o argumento defendendo
a inapropriação da lógica da apropriação, e sugiro alguns motivos para
tanto. Algumas considerações encerram o artigo.
A lógica da apropriação e o alargamento da UE
Tradicionalmente, os estudos de ciência política sobre as institui-
ções assumem que os agentes são racionais, tomam suas decisões calcu-
lando custos e benefícios, e planejam o modo de agir de acordo com as
conseqüências esperadas. A esse tipo de comportamento Olsen e March
(2004) dão o nome de lógica da conseqüência. Porém, em muitos casos, a
ação política não pode ser entendida nos marcos desse modelo, visto que
algumas decisões se mostram contrias aos interesses dos agentes. Isso
ocorre quando o agente faz suas escolhas de acordo com o que seria mais
adequado em determinado contexto institucional, e não de acordo com
o cálculo instrumental. Para Olsen e March (2004), quando os indivíduos
seguem esses princípios, eles agem de acordo com a lógica da apropriação.
Olsen e March (2004) formulam esses conceitos para explicar o
comportamento dos indivíduos em instituições democráticas. Nesse sen-
tido, os autores denem instituões como coleções estáveis de regras e
práticas inseridas em estruturas de recursos que tornam a ação possível e
estruturas de signicados que explicam e justicam o comportamento dos
agentes. Ao que tudo indica, a lógica da conseqüência enfatiza a dimen-
são institucional relacionada à estrutura de recursos, ao passo que a ló-
gica da apropriação privilegia o trato das instituições como estrutura de
signicado. Isso permite reconhecer a existência das duas lógicas na ação
dos agentes, mas o que dene o tipo de comportamento em diferentes
comunidades políticas é o grau de institucionalização das normas. Nesse
sentido, a lógica da apropriação só é possível quando os agentes agem
(...) de acordo com as práticas institucionalizadas de uma coletividade,
baseados na compreensão mútua e, freqüentemente, tácita, do que é ver-
dadeiro, razoável, natural, direito e bom” (OLSEN; MARCH, 2004, p. 4).
Há, portanto, a pressuposição da existência de uma identidade que vin-
cula os indivíduos uns aos outros. Quanto mais intensa for identidade,
maior a institucionalização das normas. Por conseguinte, mais os agentes
seguirão as prescrições feitas por elas. Esse é o ambiente perfeito para
o funcionamento da lógica da apropriação: “uma relação direta e quase
automática entre normas e ação é mais provável em uma comunidade
política com instituições legítimas, estáveis, bem denidas e integradas”
(OLSEN; MARCH, 2004, p.7).
Aceitando-se a denição tradicional de Estado como junção entre
território, governo e nação, as condições de uso da lógica da apropriação
parecem restritas à aplicação dentro de suas fronteiras. Todavia, ao tratar
das diferentes acepções do termo europeização, Olsen (2002) indica que
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uma das possibilidades é deni-lo em relação ao nível de desenvolvimen-
to das instituições européias de governo. A europeização, nesse contexto,
dependeria da institucionalização das normas européias. Esse movimen-
to permite utilizar a lógica da apropriação para a alise em nível regio-
nal. Tanto é assim que a intensidade da institucionalização é medida a
partir das mesmas variáveis utilizadas em nível estatal: o funcionamento
de instituições de regulação, de socialização, de participação e de inclusão
(OLSEN, 2002, p. 931). Embora Olsen (2002) seja cauteloso e não defenda
essa denição como a mais pertinente, aceitar a relação entre europeização
e institucionalização é necessário para aplicar a lógica da apropriação ao
estudo da integração européia, e isso implica pressupor que a União Eu-
ropéia tem uma identidade ‘legítima, estável e bem denida.
Portanto, é coerente que Schimmelfennig e Sedelmeier (2002) de-
nam o alargamento como um processo formal e gradual de instituciona-
lização horizontal das regras e normas de uma determinada Organização.
De acordo com essa denição, a institucionalização acontece na medida em
que os atores passam a respeitar um padrão normativo em suas interações.
Quando esse padrão é estendido a atores que originalmente não pertenciam
a elas, há horizontalização. A adesão às normas e entrada na Organização
é formal e decorre da adaptação dos não-membros ao padrão normativo
vigente. Na prática, isso ocorre gradualmente, pela adoção dos critérios que
condicionam o acesso à Organização. Segundo eles, o fator mais importan-
te desse processo é o chamado de cultural match: o grau em que agentes de
fora e de dentro da Organização compartilham a mesma identidade e as
mesmas crenças. Traduzindo em termos cientícos, os autores sustentam
que a hipótese construtivista sobre o alargamento seria a seguinte:
The more an external state identies with the international community that the
organization represents and the more it shares the values and norms that dene
the purpose and the policies of the organization, the stronger the institutional
ties it seeks with this organization and the more the member states are willing
to pursue horizontal institutionalization with this state. (SCHIMMELFENNIG;
SEDELMEIER, 2002, p. 513)
Os autores sugerem o que uma abordagem construtivista deve es-
perar quando se comparam a postura dos candidatos ao ingresso na UE
com a dos Estados que já são membros. De acordo com eles, há dois mo-
tivos para se esperar que os conitos a respeito do ingresso na UE surjam
com mais intensidade na política interna dos candidatos. Em primeiro
lugar, a decisão de ingressar em uma Organização signica uma mudan-
ça de rumo, ao passo que para os membros as discussões acerca do alarga-
mento podem ser entendidas como continuidade, visto que eles já fariam
parte da Organização. Em segundo lugar, não haveria conito entre os
Estados membros porque se assume que eles compartilham “(...) os valo-
res e normas constitutivos da Organização por terem sido expostos, por
um período de tempo, à socialização dentro da Organização.” (SCHIM-
MELFENNIG ;SEDELMEIER, 2002, p. 514). Há o reconhecimento de
que, ao se relaxar o pressuposto de valores e normas compartilhadas, três
resultados são esperados: 1) se há tensão sobre normas e valores dentro
da comunidade, não haverá uma posição única sobre o alargamento; 2)
a identicação com a Organização e internalização de seus valores tam-
bém seriam variáveis entre os membros e, por último; 3) poderia haver
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Fabiano Mielniczuk Lógica da (In)apropriação?
variação das normas particulares da Organização para grupos diferentes
(SCHIMMELFENNIG; SEDELMEIER, 2002). Todavia, a própria elabo-
ração dessas alternativas a partir da exibilização do pressuposto reforça
sua existência como ponto de partida teórico para o entendimento do
processo de alargamento.
Por sua vez, a preocupação com questões relacionadas à sociali-
zação é levada adiante por Checkel (1999). O autor argumenta que so-
cialização e aprendizado são mecanismos que explicam como os agen-
tes mudam suas propriedades de acordo com o ambiente institucional.
Isso é importante, pois permite elucidar como ocorreu a europeização dos
membros, e vislumbrar caminhos para o processo de institucionalização
horizontal direcionada aos candidatos. O autor divide os três institucio-
nalismos empregados no estudo da integração européia em dois grupos:
o racional e o histórico estariam em conformidade com a lógica da conse-
qüência e o sociogico com lógica da apropriação. É no institucionalismo
sociológico (construtivismo) que a socialização desempenha, junto com o
aprendizado, um papel fundamental.
Aprendizado social e socialização são denidos como processos pe-
los quais os agentes adquirem novos interesses e preferências por inter-
médio da interação com contextos institucionais mais amplos. Em nível
individual, e restrito ao grupo dos tomadores de decisão, quatro variáveis
aumentam as chances da ocorrência de aprendizado: os indivíduos pos-
suem o mesmo background prossional; os representantes do grupo pre-
cisam lidar com uma crise, o que abre novas possibilidades de aprender;
há alta densidade de interação entre eles; os tomadores de decisão encon-
tram-se insulados de pressão política. Deve-se considerar, também, a im-
portância da persuasão nos processos de aprendizado. Als, ela consiste
em mudar a percepção dos outros a respeito de relações de causa e efeito
sem uso da coerção. Por sua vez, a persuasão é facilitada quando os agen-
tes interagem em um ambiente novo, quando quem persuade pertence ao
grupo que quem é persuadido pretende ingressar e quando o agente tem
poucas crenças inconsistentes com as de quem o persuade (CHECKEL,
1999, p. 549-550).
A socialização também é entendida por intermédio dos processos
de constituição da norma e de difusão entre os agentes, de modo que
ela de fato passe a servir de referência para a ação. Ts características
são fundamentais para a constituição da norma: 1º) Alguns indivíduos
conseguem fazer com que os outros aceitem determinados valores como
válidos para todo grupo. Esses são chamados de empreendedores morais;
2º) Tais indivíduos aproveitam as janelas de oportunidade política que sur-
gem em algumas situaçõese oferecem a solução quando o grupo enfrenta
problemas; 3º) o aprofundamento da constituição das normas iniciadas
pelos empreendedores morais ocorre de acordo com as práticas de apren-
dizado social e persuasão e são difundidas por meio da mobilização so-
cial, quando atores não-estatais e redes se unem em defesa de sua aplica-
ção em seus Estados (CHECKEL, 1999, p. 551-553).
Os próprios construtivistas reconhecem que os resultados desses
dois processos não são homogêneos para todos os países membros da União
Européia, como ilustra o caso da Inglaterra (MARCUSSEN et al., 1999).
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Todavia, o modo como o problema da socialização é formulado já indica
a existência do pressuposto de europeização entre esses países. Para esses
autores, as identidades sociais são denidas tanto a partir de uma iden-
ticação dentro do grupo, quanto em oposição a outras identidades que
estão fora. Nesse sentido, armam que a identidade da Inglaterra se cons-
titui como se a Europa fosse o “outro externo.” Todavia, esse processo
ocorre pela armação de uma identidade inglesa fundada nos valores li-
berais e democráticos, exatamente os valores que passam a ser aceitos por
alemães e franceses em seu caminho rumo à identicação com a Europa
(MARCUSSEN et al., 1999). Por isso é plausível aceitar a existência de
comunhão de valores entre a Inglaterra e os outros membros da União,
mesmo que em graus de europeização distintos.
Risse (2004) explora esse ponto e sugere que, por ser construída por
anidade, de dentro para fora, e pela diferença, de fora para dentro, de-
ve-se exibilizar a idéia de uma identidade européia. Assim, haveria ts
maneiras de concebê-la. A primeira é aceitar que as identidades se cons-
tituem a partir de círculos concêntricos, nos quais as identidades gerais
subsumem as identidades mais especícas. A esse tipo de identicação,
o autor dá o nome de “nested identities. Ela é ilustrada a partir de uma
analogia com as bonecas russas: existe um “core” identitário e outras iden-
tidades que se afastam desse centro. Como se a boneca que estivesse no
centro representasse a identidade mais forte, e as demais representassem
outras identidades, não tão fortes quanto à primeira, mas igualmente im-
portantes. Dessa forma, identidades diferentes não são excludentes, mas
complementares. Esse é o caso de pessoas que alegam maior identicação
com suas nações e depois com a Europa. A segunda forma é chamada de
cross-cutting identities,” que implica que os indivíduos podem se identi-
car com grupos diferentes, sem que haja a sobreposição do caso anterior.
Um terceiro modo de tratar as identidades é a partir da armação de que
é impossível separar identidades coletivas de identidades individuais e
que se deve levar em consideração que todos se constituem mutuamente.
Esse seria o modelo do “marble cake (RISSE, 2004, p.168-169).
Parece contraditório, mas a idéia de que os membros da União Eu-
ropéia comungam de uma mesma identidade só pode ser sustentada a
partir da armação de que existem múltiplas identidades, pois apenas dessa
maneira é possível reconhecer as diferenças entre eles. É como se existisse
uma identidade que servisse como ponto de referência a todas as outras.
A partir dessa constatação, faz sentido armar que a UE é denida a partir
de uma identidade coletiva liberal, fundada na crença à adesão aos direi-
tos humanos. No âmbito doméstico, essa identidade se traduz no respeito
à propriedade privada e às regras de mercado, na prática da democracia
política representativa, na aceitação do pluralismo e na vigência do Esta-
do de direito. No âmbito internacional, a identidade liberal indica que os
Estados não farão guerras uns com os outros e que o multilateralismo
será favorecido. Os Estados candidatos cujas práticas políticas permitem
a identicação a essas normas têm mais probabilidade de ingressar na UE
do que os outros (SCHIMMELFENNIG, 2001).
Com base nessa avaliação é formulada a hipótese da comunidade
liberal para explicar o alargamento. De acordo com ela,
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Fabiano Mielniczuk Lógica da (In)apropriação?
(…) the more a state adheres to these norms, the more likely it is that it enters
into institutionalized relations with, applies for membership in, and is admitted
to these organizations. Conversely, associated or member states that violate these
liberal norms will systematically be excluded or withdraw from the organiza-
tions. (SCHIMMELFENNIG, 2002, p. 598-599)
A referida hipótese é testada com o emprego da análise histórica de
eventos. Isso é feito pela análise de quatro eventos relacionados ao proces-
so de alargamento: a institucionalização das relações entre um Estado
candidato e a Organização, o início formal da candidatura, o acesso à
Organização e, por último, seu possível desligamento. As principais va-
riáveis utilizadas pelo autor são: POLITY, que mede a grau de adesão a
normas democráticas; MIDS, a qual indica o respeito às normas de ad-
ministração pacíca de disputas entre Estados e; NEUTR, uma variável
que indica se os Estados são neutros ou não, como forma de inferir o
grau de participação política nas esferas multilaterais. Considerando-se
as variáveis de controle e os demais indicadores utilizados na alise, po-
de-se supor que se o valor de POLITY for alto, o de MIDS for baixo e o
de NEUTR não for signicativo, é mais provável que o Estado comece
negociações de acesso que sejam bem sucedidas, sem que haja o risco de
desligamento. Após a alise dos dados, conclui-se que apenas a POLITY
é fortemente correlacionada ao processo. Esse resultado permite armar
que, mesmo sendo corroborada parcialmente pela alise, a hipótese da
comunidade liberal é adequada para explicar o alargamento: se os valo-
res liberais se restringirem à prática política dentro do Estado candidato
(SCHIMMELFENNIG, 2002).
Armar a correlação entre valores liberais dos candidatos e o pro-
cesso de alargamento não indica as causas que o impulsionam. Segundo
Schimmelfennig (2001), o que está por ts dessa lógica é a ação retórica de al-
guns Estados membros que são favoráveis ao processo de expansão. Alian-
do seus interesses ao padrão de legitimidade estabelecido pelas normas que
conferem identidade à Organização, esses Estados criam uma armadilha
para os membros que são contrios ao alargamento: os que são a favor acu-
sam os que são contra de, ao negar acesso aos candidatos do centro e leste da
Europa, negar a própria identidade, uma vez que muitos entre os que dese-
jam ingresso já haviam incorporado o liberalismo político e a economia de
mercado em suas práticas políticas domésticas. A obediência aos padrões de
legitimidade é garantida pela ameaça de desmoralização dos membros que
caírem em contradição defendendo seus interesses particulares em detri-
mento da identidade coletiva. Esse é o mecanismo que explica o avanço do
alargamento (SCHIMMELFENNIG, 2002, p. 62-65; RISSE, 2004, p. 172-173).
Resulta que a ação retórica é denida como o uso estratégico de
argumentos baseados nas normas que denem a identidade da Organi-
zação por Estados que buscam maximizar seus interesses. Desse modo,
a prática da ação retórica pressupõe a existência de mais liberdade dos
agentes em relação à estrutura, o que signica relaxar as condições ideais
para a existência da lógica da apropriação, conforme enunciadas por Ol-
sen e March (2004). Todavia, esse movimento está inteiramente de acordo
com a existência de níveis de europeização distintos entre os agentes, e
com a armação de que os agentes possuem ltiplas identidades que têm
como referência a identidade coletiva européia. Als, a própria prática da
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ação retórica reforça a identidade social européia, pois conduz os agen-
tes a observar os padrões de legitimidade derivados das normas que a
constituem. Desse modo, o pressuposto de uma identidade prévia entre
os membros da União Européia, necessário para a aplicação da lógica da
apropriação ao alargamento, permanece válido.
Alargamento na prática: dois pesos, duas medidas
Na prática, o processo de alargamento ocorreu de acordo com a
aplicação de condicionalidades: arranjos mútuos nos quais um governo
toma, ou promete tomar, determinadas decisões em relação a políticas
públicas (CHECKEL, 2000). No caso da União Européia, ela é o conjunto
de políticas públicas que devem ser implementadas pelos candidatos como
pré-condição necessária ao ingresso na Organização (Idem). Os primeiros
critérios de acesso foram elaborados durante a Cúpula de Copenhague,
em 1993. Eles reetem a tentativa de reduzir os riscos de instabilidade
política e de gastos excessivos que a entrada de novos membros poderia
acarretar, bem como de garantir o cumprimento das leis européias, a m
de assegurar aos membros contrários ao alargamento que os problemas
decorrentes do processo seriam mínimos (GRABBE, 2002, p.251). Poste-
riormente, em 1998, é lançado o programa de “Parcerias de Acesso,” o
qual detalha com precisão, por intermédio de listas especícas feitas para
cada candidato, quais melhorias são necessárias em suas instituições para
se alcançar os critérios de Copenhague. Em 2000, entram em vigor as
decisões tomadas em 1999, na Cúpula de Helsinque, que admitem dife-
rentes velocidades para os processos de ingresso: os candidatos que mais
se adequassem à condicionalidade chegariam primeiro à UE (CHECKEL,
2000; GRABBE, 2002).
Como era de se esperar, as ts condições estabelecidas em Cope-
nhague estão em conformidade com a descrição da identidade coletiva da
União Européia feita pelos adeptos da lógica da apropriação para explicar
o alargamento (RISSE, 2004; SCHIMMELFENNIG, 2001; SCHIMMEL-
FENNIG E SEDELMEIER, 2002). A primeira delas versa sobre os valores
do liberalismo político, ao prescrever que os candidatos devam possuir
instituições estáveis que garantam a democracia, o Estado de direito, os
direitos humanos e o respeito e proteção às minorias. A segunda trata dos
princípios do liberalismo econômico, na medida em que impõe a exis-
tência de economia de mercado e capacidade competitiva em relação aos
outros membros. A terceira condição exige a adesão aos objetivos de uni-
cação política, econômica e monetária do bloco, que implica o respeito
ao acquis comunnautaire (GRABBE, 2002). Com o avanço nas negociações
especícas de acesso, as condicionalidades passaram a incluir o fortaleci-
mento da capacidade estatal, a independência do judicrio, o combate à
corrupção, igualdade de gênero, combate ao tráco de mulheres e crian-
ças, entre outras (PRIDHAM, 2006, p.380). Essas medidas apenas comple-
mentam a identidade da União Européia, visto que elas são necessárias
para garantir a vigência de uma ordem política liberal.
Embora sejam aplicadas aos candidatos, tais especicações podem
ser entendidas como tentativas de renar a denição da identidade da
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Fabiano Mielniczuk Lógica da (In)apropriação?
União Européia, uma vez que derivam dos valores compartilhados pelos
membros. Mesmo assim, a falta de clareza na política de condicionalidade
é bastante criticada, e reete própria ambigüidade da identidade da União.
Para uns, elas “(...) têm sido administradas pragmaticamente e desenvol-
vidas sem o envolvimento de qualquer visão sobre a democracia liberal
(PRIDHAM, 2006, p.381). Para outros, “a União Européia não apresenta
um modelo uniforme de democracia ou capitalismo, e nem sequer tentou
denir um” (GRABBE, 2002, p.250). Essa ponderação é relevante na medi-
da em que ameaça a efetividade da política de condicionalidade, uma vez
que existem opções diferentes para os candidatos no momento de pôr em
prática as políticas públicas voltadas para o atendimento aos critérios de
Copenhague. O problema que surge, então, é saber quais são os padrões
mínimos aceitos pela União. Nas palavras do mesmo crítico citado acima:
Os novos membros precisam de uma economia alemã, um serviço civil
britânico, um estado de bem-estar sueco e um sistema eleitoral francês?
Ou uma economia grega, um serviço civil belga, relações industriais aus-
tríacas e um sistema eleitoral italiano?”(GRABBE, 2002, p.250).
Outro problema é que a União Européia exige dos candidatos mui-
to mais do que cobra de seus membros. Existe um ressentimento por par-
te dos candidatos devido à constatação de que alguns membros antigos
da União Européia não seriam aprovados para o ingresso na Organização
caso tentassem suas candidaturas no nal dos anos 1990. Essa polêmica se
relaciona, principalmente, à gura de Sílvio Berlusconi, o qual possui um
vasto histórico de acusações sobre corrupção e, enquanto no poder como
primeiro-ministro italiano, mostra-se um político decidido a aprovar leis
que favoreçam seus interesses privados. Além disso, o simples fato de um
líder político ser dono de importantes veículos de comunicação em um
país democrático já é o suciente para colocar em questão o quão demo-
cráticas são suas instituição políticas. Segundo Pridham, “(..) a questão é
que os registros atuais e o comportamento de alguns membros estão em
conito com os valores das políticas da UE como elas vêm sendo desen-
volvidas desde meados dos anos 1990” (2006, p.392).
A incoerência também é evidenciada pela adoção dos critérios de
Copenhague (1993) no Tratado de Amsterdã (1997) sem referência à pro-
teção do direito das minorias (SASSE, 2005; KEATING, 2004). A ausência
de fundamento jurídico comum entre os membros sobre o assunto, a falta
de prioridade dada aos problemas dessa natureza até que eles começassem
a surgir no pós-guerra fria, ou até mesmo a complexidade de denir o que
é uma minoria no âmbito do direito internacional são algumas razões
para o “esquecimento.” Nesse sentido, não causa estranheza o fato de os
parâmetros para compreensão dos “direitos das minorias” serem procu-
rados pelos funcionários encarregados de acompanhar a implementação
dos critérios de Copenhague em resoluções das Nações Unidas, em docu-
mentos da OCSE e na Convenção Quadro para Proteção de Minorias Na-
cionais do Conselho da Europa (CQPMN), de 1995. Ironicamente, mesmo
que França, Bélgica, Holanda, e outros membros não tivessem raticado
a CQPMN, os funcionários recomendavam que os candidatos sob escru-
tínio o zessem (SASSE, 2005, p. 3-5). A contradição ilustra a existência de
uma lógica de “dois pesos, duas medidas”, que consistia na prescrição de
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receitas de como os candidatos deveriam tratar as minorias, mesmo que
a prescrição não fosse seguida pelos membros. O reconhecimento de que
os relatórios eram formulados em comparação a um “membro perfeito,
ou a consciência de que o pior caso de desrespeito às minorias entre os
atuais membros da UE seria o suciente para desqualicar a candidatura
de um não-membro, são indícios de que os funcionários reconheciam a
inconsistência (SASSE, 2005, p.10-12).
Johns (2003) reforça o argumento sobre a existência de dois padrões
para as minorias ao comparar o modo como a Letônia trata os russos e a
Eslováquia os húngaros e ciganos (roma), com a maneira como a Itália trata
os ciganos e a Alemanha os turcos. Depois da II Guerra Mundial, os russos
foram se estabelecendo no Báltico como resultado da política de sovietiza-
ção implementada por Slin. Logo após o m da URSS, havia uma grande
minoria russa no país. Imediatamente, o governo da Letônia aprova uma sé-
rie de leis que restringem os direitos dos russos à propriedade, a se candida-
tarem em eleições, a ocuparem cargos públicos, etc., seguindo o princípio de
que apenas a nacionalidade dominante teria direito à cidadania. Essa política
foi duramente criticada pelo Alto Comissariado sobre Minorias Nacionais
(ACMN) da OCSE e pelos relatórios anuais da UE sobre o cumprimento dos
Acordos Europeus, como eram chamados os acordos rmados no âmbito
do programa Parceria para Acesso. O mesmo ocorre com a Eslováquia, que
discrimina húngaros e ciganos em sua legislação sobre o ensino da língua
nacional. No caso especíco dos ciganos, há problemas com a educação das
crianças, discriminação em relação ao mercado de trabalho e, freqüente-
mente, o grupo é vítima da violência policial e de ataques de skinheads.
Johns (2003) argumenta que a situação das minorias em alguns paí-
ses da União Europeia não diferia muito da situação na Letônia e na Eslo-
váquia, mas que mesmo assim nenhuma recomendação e/ou admoestação
foi apresentada pelo ACMN. O caso da Alemanha pode ser comparado ao
da Letônia. Na Alemanha, os turcos se estabeleceram na década de 1950
para realizar trabalhos menos valorizados para os quais não havia mão-de-
-obra disponível. Hoje, muitos turcos que nasceram na Alemanha, falam
alemão, e já perderam os laços com a Turquia, continuam sendo tratados
como estrangeiros, e não têm acesso à cidadania alemã, também baseada
na nacionalidade dominante. Os turcos sofrem restrições para votar, para
arranjar emprego e podem ser expulsos do país por viverem em situação
clandestina. Na Itália, os ciganos são vítimas de violência policial, às vezes
relacionada à violência sexual contra as mulheres. Também há diculdade
em conseguir emprego e até a liberdade de movimento é restrita, havendo
locais especícos (campos) onde eles podem viver. Uma análise estatística
sobre a situação das minorias na Europa indica que o grau de discrimina-
ção sofrido nos países ocidentais é superior aos níveis praticados nos países
da Europa Central e do Leste (JOHNS, 2003, p.690-696).
O que há de inapropriado nisso?
Sending (2002) argumenta que a lógica da apropriação não aten-
de às demandas ontogicas de uma versão moderada de construtivis-
mo. Para o autor, o construtivismo via media está assentado sobre três
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pressupostos, a saber: de que as normas constituem os agentes, de que
agente e estrutura são co-constituídos e de que as mudanças nas estru-
turas ideacionais levam a mudanças nas práticas políticas dos agentes.
Desses ts pressupostos, apenas o primeiro seria atendido integralmente
pela lógica da apropriação, devido ao caráter comunitarista subjacente a
sua formulação. Tal comunitarismo é o reexo da compreensão de que
as relações sociais estão baseadas em uma idéia de bem comum, e no tra-
to das normas como constitutivas da realidade social. A instituição seria
a sedimentação dessas normas em padrões estáveis de comportamento.
Desse modo, as instituões denem as perspectivas normativas e cog-
nitivas pelas quais os agentes de uma dada comunidade política tomam
suas decisões. É correto, portanto, armar que as normas constituem os
agentes. Esse é o argumento teórico que sustenta as instituições como
variáveis causais, e não intervenientes (SENDING, 2002, p. 446-447- 452).
Sobra, então, pouca margem de manobra para a ação individual,
pois a própria interpretação das situações sociais que os agentes enfren-
tam é limitada pelo caráter constitutivo das normas, entendidas sob a
ótica comunitarista. Esse aspecto limita a abordagem da lógica da apro-
priação no que diz respeito à co-constituição entre agente e estrutura,
uma vez que a motivação para agência parte da própria estrutura, como
se ela exercesse uma autoridade objetiva sobre o agente, algo chamado
de posição motivacional internalista (SENDING, 2002, p.453-459). Tendo
isso em vista, as mudanças nas normas seriam impossíveis se os atores
continuassem reiteradamente se comportando de modo apropriado e re-
produzindo-as por intermédio dessas práticas sociais. Portanto, os teóri-
cos que adotam a lógica da apropriação explicam as transformações na
estrutura social pela agência inapropriada, ou seja, fora dos padrões esta-
belecidos pelas normas vigentes (SENDING, 2002, p. 459-460). Os agentes
que agem dessa forma são os empreendedores morais discutidos na seção
2. A necessidade de recorrer a essa explicação invalida a relação dessa
abordagem com o terceiro pressuposto construtivista.
Se essas observações estão corretas, a lógica da apropriação é ina-
propriada para explicar o processo do alargamento por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque não há uma denição clara da identidade da
União Européia (PRIDHAM, 2006; GRABBE, 2002). Isso ocorre porque
suas normas ainda não se europeizaram a ponto de exercerem autoridade
objetiva sobre os agentes, o que resultaria no comportamento uniforme
dos mesmos. Todavia, os construtivistas acreditam que as normas consti-
tuem a identidade européia. Por mais que Schimmelfennig (2001) conra
mais “liberdade instrumental” aos agentes, a ação retórica utilizada por
eles para alcançar seus interesses é praticada no âmbito das normas e, ao
m do processo, acaba por reforçá-las. Por mais que Risse (2004) tente
exibilizá-las, a armação de que existem múltiplas identidades é inócua
nesse sentido, pois a identidade européia ainda permanece como ponto de
referência para a mensuração da distância entre as outras identidades (a
escala parte das identidades subnacionais para as nacionais, passando pe-
las sub-regionais e, nalmente, chegando à identidade européia). O argu-
mento que sustento é simples: se as normas a constituíssem, haveria cla-
reza a respeito da denição da identidade européia. Como esse fenômeno
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não se comprova empiricamente, o emprego é inapropriado. Isso não sig-
nica negar a possibilidade teórica do uso da lógica da apropriação pelos
construtivistas em relação ao pressuposto das normas que constituem os
agentes, conforme aceito por Sending (2002). Armo apenas que ela não
se mantém empiricamente para explicar a identidade da União Européia.
Na ausência de uma identidade européia real, os construtivistas em-
pregam uma identidade européia desejada como ponto de partida para
explicar o alargamento. A política de dois pesos, duas medidas utilizada na
aplicação das condicionalidades é o reexo dessa situação, e essa contradi-
ção invalida completamente o emprego da lógica da apropriação. Anal,
como é possível armar que as normas constituem os agentes se os agen-
tes não fazem na prática o que elas prescrevem? De fato, a contradição é
negligenciada, e o esquecimento desse problema é mantido por inter-
dio da subvalorização dos impactos dos não-membros na constituição da
identidade da UE e da conseqüente valorização dos impactos da UE nos
não-membros. Als, essa é preocupação primordial dos estudos sobre con-
dicionalidade (CHECKEL, 2000; SCHIMMELFENNIG; SEDELMEIER,
2004). Os construtivistas só não deixam claro o porquê dessa preferên-
cia. Todavia, acredito que não reconhecer o caminho inverso é necessário
para manter o fundamento da lógica da apropriação: os impactos para a
UE são mínimos, uma vez que se houvesse mudança, não seria possível
estabelecer a identidade de normas necessária para explicar o processo
de alargamento. Há dois problemas nisso. O primeiro é que pressupõe
uma identidade que não existe (ou que é desejada), visto que os agentes
não agem em conformidade com ela; o segundo é que tenta esconder a
inexistência dessa identidade negando as evidências empíricas de que, seja
lá o que constitua a idéia de União Européia, essa idéia está sendo afetada
pelos não-membros. Aceitar essa uidez implica aceitar a inexistência da-
quilo que, de fato, não existe: um fundamento para explicar o processo de
alargamento a partir da lógica da apropriação. Assim, a pergunta implícita
nos estudos de alargamento (para onde vai à União Européia?) deixaria de
fazer sentido, uma vez que não haveria ponto de partida. Esse é o segundo
motivo pelo essa abordagem pode ser considerada inapropriada.
Considerações Finais
As críticas formuladas ao emprego da lógica da apropriação foram fei-
tas a partir de uma perspectiva pós-estruturalista. Nesse sentido, o principal
objetivo é denunciar a inexistência de um fundamento como referência para
a aplicação dessa abordagem, desnudando o caráter contingente e uido de
uma suposta identidade européia que, reproduzida pelos países da Europa
Central e do Leste, lhes garantiria o ingresso na Organização. Nessa perspec-
tiva, a identidade européia é vista como fruto da imposição de um discurso
que pretende subsumir a diferença, e que é reproduzido tanto pelas práticas
políticas, como demonstra o “desejo de identidade” utilizado como referência
para as políticas de condicionalidade, quanto pelas práticas acadêmicas, cujo
exemplo é a aceitação da hipótese da comunidade liberal para compreender o
processo de alargamento. Note-se que a aceitação da formulação acadêmica
implica a negligência do problema político. Adotando uma postura de não se-
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Fabiano Mielniczuk Lógica da (In)apropriação?
parar a prática política da prática acadêmica, é possível perceber as conseqüên-
cias normativas que decorrem do modo como se estuda a União Européia.
Nesse sentido, o próprio nome conferido a esse campo de estudos, Inte-
gração Européia, estaria sujeito à análise. A idéia de integração indica um pro-
cesso. Algo que se move em alguma direção. Como Walker (2000, p.14) res-
salta, o termo indica tanto um processo de crescimento em tamanho quanto
de evolução em termos de progresso. Inicialmente, os discursos políticos e os
acadêmicos comungavam de um mesmo ponto de partida: a Europa depois
da II Guerra. Hoje em dia, as discussões estão mais voltadas para um suposto
ponto de chegada. Esse ponto de chegada pode ser medido tanto em relação
ao tamanho, quanto em termos dos valores que servirão de amálgama aos
seus membros. Tratar de Integração Européia em debates acadêmicos e não
compactuar com esse pressuposto é impossível, pois abandoná-lo signica
abandonar a área de integração. A força normativa por trás dos estudos de
integração é evidenciada quando se questiona a inexistência, na academia, de
uma disciplina chamada Desintegração Européia. O desconforto que acomete
quem pensa nesses termos é um indicador seguro de como a política de inte-
gração atua nos discursos acadêmicos sobre o tema. Pensar diferente é impen-
sável; mesmo para quem acredita que a realidade é socialmente construída.
Os acontecimentos da última década na Europa parecem demonstrar
que a inexorabilidade presente nas narrativas construtivistas sobre o proces-
so de integração não se sustenta. Após a rodada de alargamento de 2004, a
aceitação condicional da Romênia e da Bulgária, em 2007, e o ingresso da
Croácia, em 2013, o processo de alargamento alcançou seu limite. A crise
dos refugiados enfrentada pelo continente nos anos de 2014-2015 reforçou
narrativas nacionalistas e xenófobas, as quais contribuíram para a aprova-
ção do plebiscito do BREXIT, em 2016. Ao que tudo indica, o wishful thinking
dos construtivistas cujas contribuições foram criticadas nesse artigo passa
por um choque de realidade. Como resultado, a falta de ajustamento entre
seus postulados teóricos e a realidade empírica força-os a uma revisão. É sin-
tomático, nesse sentido, que os últimos estudos construtivistas sobre o alar-
gamento europeu tenham abandonado o tratamento mais assertivo sobre
a identidade europeia e adotado o conceito de “capacidade de integração”,
ou seja, a habilidade de preparar os futuros membros para o alargamento
de modo que o funcionamento e a coesão interna da UE sejam preservados
após o ingresso (BÖRZEL; DIMITROVA; SCHIMMELFENNIG, 2017).
Essas mudanças teóricas e empíricas tornam oportunos vários
questionamentos. Até que ponto o modo como a Europa é pensada é con-
dicionado por fatores políticos que limitam a percepção sobre a realidade?
Por que não olhar para a Europa e enxergar agrupamentos humanos que
interagem sem uma direção, sem identidades xas, mas com identidades
que se constroem e se reconstroem diariamente em um esforço contínuo
para praticar o respeito à diferença? Dessa perspectiva crítica, é mais cô-
modo precisar o que foi pretendido nesse artigo: questionar a necessidade
de um fundamento, reforçado pelos construtivistas a partir da lógica da
apropriação, para que o processo de integração continue seu curso. Por
isso a crítica ao construtivismo que se apropria de uma identidade euro-
péia, inexistente de acordo com as necessidades ontológicas da lógica da
apropriação, para transformá-la no motor do processo de integração.
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