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Pedro Emanuel Mendes R(r)elações I(i)nternacionais, Realismo e Análise da Políca Externa (APE): contextualizando a invenção da APE
bom exemplo da inuência do realismo clássico na teoria e prática da
política externa dos EUA e na forma como as relações internacionais
eram percecionadas pelos diplomatas e líderes internacionais. Como
Morgenthau, e ao contrário de Wilson, Kennan acreditava que a condu-
ção da política externa deveria estar relativamente isolada das questões
internas e da opinião pública, pois essa politização poderia contaminar
os objetivos racionais dos líderes na denição da política externa (MOR-
GENTHAU, 1950; KENNAN, 1984).
O fato é que o Realismo se transformou na mais conhecida e in-
uente abordagem das RI
15
. Mas também este fato pode e deve se expli-
cado tendo em conta os seus contextos. Após o descrédito da abordagem
liberal-legalista do período entre guerras e, sobretudo, com o surgimento
da guerra fria, o contexto histórico do sistema internacional interliga-se
com as teorias de luta e busca de poder por Estados rivais. Isto signica
que a teoria Realista estava no lugar certo no momento exato para criar
uma empatia e necessidade teórica na disciplina das Relações Internacio-
nais. O Realismo tudo fez para aparecer como a abordagem mais realisti-
camente cientíca e, portanto, politicamente mais útil e ecaz.
Neste quadro, podemos dizer que existem quatro momentos fun-
damentais que marcam a acensão do Realismo:
- primeiro, a demonstração do irrealismo da visão Wilsoniana das
relações internacionais entre guerras por parte de Edward Carr
16
assente no contexto histórico do falhanço da SDN (CARR, 1939);
- segundo, o impacto da doutrina de contenção de George Kennan
(1945; 1947)
17
, assente no contexto histórico da expansão do impé-
rio soviético;
- terceiro, a sistematização neo-cientista sobre a indispensabilidade da
power politics de Hans Morgenthau (MORGENTHAU, 1946; 1948);
- quarto, o papel da Fundação Rockefeller e das suas conferências,
especialmente a realizada em 1954 sobre a Teoria das RI (GUI-
LHOT, 2008; 2011)
18
.
Com a sua ênfase na busca pelo poder num mundo anárquico, pe-
rigoso e imprevisível, o Realismo foi, em termos gerais, a abordagem tra-
dicionalmente adotada pelos praticantes da política externa. Esta empatia
histórico-social e prática fez com que o Realismo se tornasse a abordagem
dominante nos anos formativos da disciplina, o que inuenciou a prática
e a teoria da política externa.
O nascimento, evolução e domínio do Realismo deve ser com-
preendido à luz da sua capacidade de captar a lógica competitiva dos
processos políticos e da sua aplicabilidade e reprodução histórica na po-
lítica internacional, designadamente com o fracasso do projeto da socie-
dade das nações e a ascensão da guerra-fria. Numa metáfora, o realismo
foi o traje que assentou aos fatos. E os alfaiates - leia-se académicos e prati-
cantes das RI - começaram a produzir vestimentas que serviam à moda
da época, leia-se mundo bipolar e agressivo da guerra-fria Assim, o
Realismo produziu um discurso que foi empaticamente poderoso para
a moldura analítica da disciplina das RI e para o consequente enqua-
dramento do contexto histórico da guerra-fria (KAHLER, 1997; OREN,
2003; SCHMITH, 2013).
15. A mais conhecida e também a mais
criticada (LEGRO; MORAVCSIK, 1999;
GUZZINI, 2004).
16. Carr é outro exemplo da necessida-
de de uma leitura plural dos debates e
das teorias em RI. Carr era um historia-
dor realista, que criticou o idealismo-
-liberal progressista de entre guerras,
designando-o de “utópico”, mas não era
um realista conservador (KUBÁLKOVÁ,
1998). Aliás o Realismo como teoria-
-guia para a política externa pode ser
transversal a liberais, conservadores e
marxistas (WIVEL, 2017).
17. O que não significa que a posterior
política externa americana de contenção
ao comunismo fosse coincidente com as
suas ideias. Todavia, o impacto da sua
doutrina foi importante. Veja-se o inicial
“longo telegrama”, Telegram, George
Kennan to George Marshall February 22,
1946. Harry S. Truman Administration
File, Elsey Papers, e subsequente artigo
“anónimo” X – “The Sources of Soviet
Conduct”, de 1947. Este impacto in-
fluenciou a doutrina Truman, sistemati-
zado no famoso documento secreto NSC
68 (KENNAN, 1945, 1947).
18. Esta conferência reuniu os principais
académicos e praticantes de RI com
ligações ao Realismo e ao mundo políti-
co: Hans Morgenthau, Reinhold Niebuhr,
Walter Lippmann, Paul Nitze, Arnold
Wolfers, William T. R. Fox, Kenneth W.
Thompson e Kenneth Waltz que, como
mais jovem, foi o relator da conferên-
cia (GUILHOT, 2011). O presidente da
Fundação Rockefeller, Dean Rusk, futuro
secretário de estado (1961-1969) pre-
sidiu ao encontro. Embora não estando
presente, George Kennan enviou uma
comunicação. Aqui se discutiu como
construir teorias em RI e qual a sua
importância para o mundo político. Mais
do que as suas conclusões escritas, esta
conferência teve um impacto importante
na forma como o estudo das RI e a sua
prática - a definição da Política Externa
norte-americana - se foram estruturando
nestes anos fundacionais da disciplina
das RI.