estudos internacionais
REVISTA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Grão-Chanceler: Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Reitor: Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Vice-Reitora: Patrícia Bernardes
Assessor Especial da Reitoria: José Tarcísio Amorim
Chefe de Gabinete do Reitor: Paulo Roberto de Sousa
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Sérgio Gontijo do Carmo; Graduação - Maria Inês Martins;
Logística e Infraestrutura - Rômulo Albertini Rigueira; Pesquisa e
de Pós-graduação – Sérgio de Morais Hanriot; Recursos Humanos
- Sérgio Silveira Martins; Arcos - Jorge Sundermann; Barreiro -
Renato Moreira Hadad; Betim - Eugênio Batista Leite; Contagem
- Robson dos Santos Marques; Poços de Caldas - Iran Calixto Abrão;
São Gabriel - Miguel Alonso de Gouvêa Valle; Serro e Guanhães -
Ronaldo Rajão Santiago
EDITORA PUC MINAS
Diretor: Patrus Ananias de Sousa
Coordenação editorial: Cláudia Teles de Menezes Teixeira
Assistente editorial: Maria Cristina Araújo Rabelo
Revisão: Virgínia Mata Machado
Comissão editorial: João Francisco de Abreu (PUC Minas); Maria Zilda Cury (UFMG);
Mário Neto (Fapemig); Milton do Nascimento (PUC Minas); Os-
waldo Bueno Amorim Filho (PUC Minas); Regina Helena de Freitas
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Conselho editorial: Antônio Cota Marçal (PUC Minas); Benjamin Abdalla (USP); Carlos
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- Chile); Evando Mirra de Paula e Silva (UFMG); Gonçalo Byrne
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(Unicamp); Rita Chaves (USP); Sylvio Bandeira de Mello (UFBA)
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estudos internacionais
REVISTA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Poncia Universidade
Católica de Minas Gerais
Programa de Pós-Graduação
em Relações Internacionais
Belo Horizonte
ISSN: 2317-773X
v.7 n.1
Abril 2019
estudos internacionais
REVISTA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Conselho Executivo
Prof. Javier Alberto Vadell
Prof. Leonardo César Ramos
Estagiários
Ana Rachel Simões Fortes
Fabiana Freitas Sander
Marina D’Lara Siqueira Santos
Matheus de Abreu Costa Souza
Pedro Diniz Rocha
Rafael Bittencourt Rodrigues Lopes
Victor de Matos Nascimento
Vinícius Tavares de Oliveira
Conselho Editorial
Adam David Morton (University of Sidney)
Andrés Malamud (Instituto de Ciências Sociais– Universidade de Lisboa)
Antonio Carlos Lessa (Universidade de Brasília UNB)
Atílio Borón (Universidade de Buenos Aires - Consejo Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas)
Carlos Escudé (Centro de Estudios Macroeconómicos de Argentina - Consejo Nacional de Investigaciones
Cientícas y Técnicas)
Carlos Milani (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Carlos S. Arturi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Gladys Lechini (Universidade Nacional de Rosário - Consejo Nacional de Investigaciones Cientícas y Técnicas)
Henrique Altemani (Universidade Estadual da Paraíba)
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Jens Bartelson (Lund University)
João Pontes Nogueira (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
José Fvio Sombra Saraiva (Universidade de Brasília)
José Luis León-Manríquez (Universidade Autónoma Metropolitana Xochimilco)
Letícia Pinheiro (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
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Marco Aurélio Chaves Cepik (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Marcos Costa Lima (Universidade Federal de Pernambuco)
Maria Regina Soares de Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Matt Ferchen (Tsinghua University)
Miriam Gomes Saraiva (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Monica Hirst (Universidad Di Tella–Universidad de Quilmes)
Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
Paulo Fagundes Vizentini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Rafael Villa (Universidade de São Paulo)
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Renato Boschi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Sean Burges (Australian National University)
Shiguenoli Myamoto (Universidade Estadual de Campinas – San Tiago Dantas)
Tullo Vigevani (Universidade Estadual Paulista)
Apoio
Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)
Chefe do Departamento: Chyara Salles Pereira
Sumário
Crisis de deuda soberanas: Aproximaciones
en torno al debate contemporáneo de los
mecanismos de reestructuración .................................................................7
Crise da dívida soberana: Abordagens ao debate
contemporâneo dos mecanismos de reestruturação
José Marcelino Fernández Alonso
A política externa “ativa” e “altiva” do
Brasil frente aos conflitos na Líbia e na Síria:
desafiando o “cerco hegemônico” ...............................................................25
“Haughty” and “active” brazilian foreign policy
to conflicts in Libya and Syria: challenging the
“hegemonic siegue”
Matías Ferreyra
Economia política da integração regional: uma
comparação entre Índia e Brasil ...................................................................41
The political economy of regional integration: a
comparison between Brazil and India
Fabio Luis Barbosa dos Santos
Representação política de mulheres: um estudo
sobre a incorporação da agenda de gênero no
âmbito legislativo do Equador (2009-2017) .................................................. 63
Women’s political representation: a study on the
incorporation of the gender agenda in Ecuador’s
legislative power (2009-2017)
Bárbara Lopes Campos
Política Externa Cabo-verdiana: evolução,
perspetivas e linhas de força ......................................................................... 87
Cape Verdean Foreign Policy: evolution,
perspectives and lines of force
João Paulo Madeira
O Ministério dos Negócios Estrangeiros
Português e a Integração Europeia (1951-1986) ....................................110
The Portuguese Foreign Affairs Office and European
Integration (1951-1986)
Alice Cunha e Isabel Maria Freitas Valente
Resenha do livro: China and Africa: building
peace and cooperation on the continent .................................................... 129
Marcos Valle Machado da Silva
7
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
Crisis de deuda soberanas: Aproximaciones
en torno al debate contemporáneo de los
mecanismos de reestructuración
Crise da dívida soberana: Abordagens ao debate
contemporâneo dos mecanismos de reestruturação
Recebido em: 02 de abril de 2018
Aprovado em: 04 de julho de 2018
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2019v7.n1.p7
José Marcelino Fernández Alonso
1
R
Como consecuencia de las modicaciones político-estructurales acarreadas por
la globalización, las crisis de deuda soberana se repitieron con mayor frecuencia.
En este contexto, se entretejió un prolíco debate respecto al modo más eciente
para sortear las externalidades derivados de la contrariedad de un Estado para
afrontar sus compromisos nancieros externos. No obstante la pluralidad de pers-
pectivas y proyectos, las deliberaciones sobre la temática se restringieron a la con-
frontación de dos formulaciones: por una parte, la propuesta “estatutaria”; por la
otra, la “contractual”. La reticencia de Estados Unidos y de los principales agentes
del sistema nanciero internacional a la visión estatutaria -impulsada original-
mente por funcionarios del Fondo Monetario Internacional-, hicieron que en
2003 las discusiones parecieran clausurarse a favor del proyecto contractualista.
Sin embargo, la sucesión de crisis de deuda soberana que dieron desde entonces y
los reveses de la Argentina en las demandas entabladas por tenedores de instru-
mentos de títulos públicos en default renuentes a participar en el proceso de rees-
tructuración hizo resurgir el debate, propiciando reformulaciones institucionales.
El propósito del presente artículo es analizar el estado del debate contemporáneo
sobre los mecanismos de reestructuración de deuda soberana. Dicho análisis es
realizado a partir de los aportes del institucionalismo liberal. Se entiende que el
abordaje de estas discusiones resulta de vital importancia en consideración del
crecimiento exponencial del nivel de endeudamiento de los Estados –de los deno-
minados “emergentes”, en particular- durante los años recientes.
Palabras clave: Crisis de deuda soberana – Mecanismos de reestructuración –
Nueva arquitectura nanciera internacional
R
Como resultado das mudanças político-estruturais provocadas pela globalização,
as crises da dívida soberana eram repetidas com maior freqüência, afetando
cada vez mais um número maior de atores e tornando-se cada vez mais difícil de
administrar. Neste contexto, um prolífero debate foi interligado com respeito à
maneira mais eciente de superar as externalidades derivadas da contrariedade
de um Estado em enfrentar seus compromissos nanceiros externos. Apesar da
1. Doctor en Relaciones Internacionales.
Investigador asistente del Consejo
Nacional de Investigaciones Científicas
y Tecnológicas (CONICET). Docente
de Economía Internacional y Finanzas
Internacionales, Facultad de Ciencia
Política y Relaciones Internacionales,
Universidad Nacional de Rosario.
Rosario/Argentina. ORCID: 0000-0002-
0260-6802
8
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
pluralidade de perspectivas e projetos, as deliberações sobre o assunto restringi-
ram-se na prática ao confronto de duas formulações apresentadas em uma chave
dicotômica: de um lado, a proposta "estatutária"; por outro, o "contratual". A
relutância dos Estados Unidos e atores-chave do sistema nanceiro internacional
para a visão legal originalmente -driven por funcionários do Fundo Monetário
Internacional, feita em 2003 parecem próximas das discussões para o projeto con-
tratualista. No entanto, a sucessão de crises de dívida soberana que ocorreu desde
então e reveses da Argentina nos processos movidos por detentores de títulos
públicos padrão relutantes em participar no processo de reestruturação ressusci-
tou o debate, incentivando reformulações institucionais. O objetivo deste artigo
é analisar o estado do debate contemporâneo sobre os mecanismos de reestrutu-
ração da dívida soberana. Esta análise é realizada com base nas contribuições do
institucionalismo liberal. Entende-se que a abordagem dessas discussões é de vital
importância, tendo em vista o crescimento exponencial do nível de endividamen-
to dos Estados - em especial dos chamados "emergentes" - nos últimos anos.
Palavras-chave: Crise da dívida soberana - Mecanismos de reestruturação -
Nova arquitetura nanceira internacional
Introducción
A semejanza de los fenómenos que los motorizaron históricamen-
te, los debates en torno a la gestión de las crisis de deuda soberana –los de-
faults, como expresión más recurrente de ellas- resultaron una constante
en el discurrir del sistema westfaliano, asumiendo intensidad incremental
en los últimos decenios en concomitanciaala expansión e intensicación
del fenómeno de la globalización
2
. Conforme ilustran Das, Papaioannou
y Trebesch (2012), entre 1950 y 2010 las reestructuraciones de deuda sobe-
rana -a la postre el mecanismo dominante en la resolución de crisis de en-
deudamiento público-, totalizaron más de 600 casos abarcando 95 países.
Dentro de ese universo de casos registrados, 186 fueron con acreedores
privados (bancos extranjeros y tenedores de bonos) y 447 fueron acuerdos
de reestructuración en el marco del Club de París
3
.
Tal como Skylar Brooks; Domenico Lombardi (2014) alertan, los
desarrollos y desenlaces de cada uno de los debates en torno a la gestión
de trances de endeudamientosoberano reejaron –y reforzaron- los prin-
cipales caracteres del contexto internacional circundante, al acarrear la
(re)articulación de una multiplicidad de procedimientos institucionales
para hacerles frente
4
. En efecto, de pasarse de soluciones basadas en el uso
o amenaza de uso de la fuerza en las etapas primarias del sistema west-
faliano, las respuestas a la problemática de marras pasaron a canalizarse
crecientemente mediante arreglos institucionales ajustados al Derecho
5
.
Esta identidad entre los debates respecto a la gestión de la crisis de deu-
das soberanas y las particularidades del contexto internacional no resul-
ta nadaantojadiza si se considera que las crisis de deuda soberana ponen
endiscusión uno de los principiosestructurante de todo orden social: la
delimitación y defensa de la propiedad privada.
Sin perjuicio de lo antedicho, debe reconocerse que la naturaleza
arquica propia de la arena internacional –entendida en simples térmi-
nos como la ausencia de una autoridad supranacional- impone ciertas
peculiaridades a las crisis de deuda soberana y a los debates en torno al
2. Con propósito de clarificar los
conceptos recién referidos, se pone
de manifiesto en primer término que
el trabajo se asiste de la definición de
Kevin Gallagher en lo concerniente a
la noción de crisis de deuda soberana.
De acuerdo con el autor, una crisis de
deuda soberana da cuenta de “aquellas
situaciones en las que un Estado no
puede –o no quiere- simplemente hacer
frente a sus compromisos financieros
externos” (GALLAGHER, 2011, p. 1). En
tanto, por cesación de pagos o default,
el trabajo se vale de las consideraciones
de Chukwu (2011, p. 51), quien la define
como una alteración en el cumpli-
miento de las obligaciones financieras
asumidas por un Estado en uno o varios
instrumentos de deuda, el cual puede
manifestarse como una suspensión de
pagos de interés o de intereses y el
capital, la modificación de las fechas
de pago, y/o la declaración de una
moratoria sobre el total de la deuda o
sobre una porción de la misma. En con-
sideración de lo antedicho, la cesación
de pagos no es sino una de las posibles
derivaciones que puede de tener una
crisis de deuda soberana.
3. Conforme se anuncia en su sitio
web (http://www.clubdeparis.org), el
“Club de París” es un grupo informal de
acreedores estatales –la gran mayoría,
miembros fundadores de la Organización
para la Cooperación y el Desarrollo
Económicos (OCDE)- surgido a mediados
de los años 50 con el propósito de
renegociar deudas en situación irregular
que la República Argentina mantenía por
entonces con ciertos países desarrolla-
dos. Desde su institucionalización, ha
devenido un espacio de reestructuración
de deudas interestatales en decenas de
oportunidades. En la actualidad, cuenta
con 19 miembros permanentes y una Se-
cretaría administrativa en París la cual
coordina las actividades del colectivo. En
términos generales, el “Club de París”
acuerda “minutas” o patrones de nego-
ciación que deben ser observadas en las
negociaciones bilaterales particulares el
Estado deudor y sus pares acreedores.
Para un análisis en profundidad sobre el
mismo, se sugiere Cosio-Pascal (2008).
4. En este punto, se remarca que
diversos son los estudios históricos que
dan cuenta de estas discusiones res-
pecto a los instrumentos institucionales
orientados a enfrentar crisis de deuda
soberana. Además de los trabajos ya ci-
tados de Winkler (1933); Sturzenegger y
Zettelmeyer (2007) y Brooks y Lombardi
(2014), se destacan los de Kindleberger
(1978), Lipson (1985); Tomz (2007);
Waibel (2011) y Wright (2012).
5. Habida cuenta de su abigarrado his-
torial en crisis de deuda soberana, los
Estados latinoamericanos –la República
Argentina, en particular- asumieron
un rol protagónico dentro de estas
discusiones, siendo la formulación de
la denominada Doctrina Drago a inicios
del siglo XX con su cuestionamiento a
la pretensión de cobro de acreencias
de potencias europeas a Venezuela vía
coerción una de las manifestaciones
más palmarias de ello.
9
José Marcelino Fernández Alonso Crisis de deuda soberanas
pluralidade de perspectivas e projetos, as deliberações sobre o assunto restringi-
ram-se na prática ao confronto de duas formulações apresentadas em uma chave
dicotômica: de um lado, a proposta "estatutária"; por outro, o "contratual". A
relutância dos Estados Unidos e atores-chave do sistema nanceiro internacional
para a visão legal originalmente -driven por funcionários do Fundo Monetário
Internacional, feita em 2003 parecem próximas das discussões para o projeto con-
tratualista. No entanto, a sucessão de crises de dívida soberana que ocorreu desde
então e reveses da Argentina nos processos movidos por detentores de títulos
públicos padrão relutantes em participar no processo de reestruturação ressusci-
tou o debate, incentivando reformulações institucionais. O objetivo deste artigo
é analisar o estado do debate contemporâneo sobre os mecanismos de reestrutu-
ração da dívida soberana. Esta análise é realizada com base nas contribuições do
institucionalismo liberal. Entende-se que a abordagem dessas discussões é de vital
importância, tendo em vista o crescimento exponencial do nível de endividamen-
to dos Estados - em especial dos chamados "emergentes" - nos últimos anos.
Palavras-chave: Crise da dívida soberana - Mecanismos de reestruturação -
Nova arquitetura nanceira internacional
Introducción
A semejanza de los fenómenos que los motorizaron históricamen-
te, los debates en torno a la gestión de las crisis de deuda soberana –los de-
faults, como expresión más recurrente de ellas- resultaron una constante
en el discurrir del sistema westfaliano, asumiendo intensidad incremental
en los últimos decenios en concomitanciaala expansión e intensicación
del fenómeno de la globalización
2
. Conforme ilustran Das, Papaioannou
y Trebesch (2012), entre 1950 y 2010 las reestructuraciones de deuda sobe-
rana -a la postre el mecanismo dominante en la resolución de crisis de en-
deudamiento público-, totalizaron más de 600 casos abarcando 95 países.
Dentro de ese universo de casos registrados, 186 fueron con acreedores
privados (bancos extranjeros y tenedores de bonos) y 447 fueron acuerdos
de reestructuración en el marco del Club de París
3
.
Tal como Skylar Brooks; Domenico Lombardi (2014) alertan, los
desarrollos y desenlaces de cada uno de los debates en torno a la gestión
de trances de endeudamientosoberano reejaron –y reforzaron- los prin-
cipales caracteres del contexto internacional circundante, al acarrear la
(re)articulación de una multiplicidad de procedimientos institucionales
para hacerles frente
4
. En efecto, de pasarse de soluciones basadas en el uso
o amenaza de uso de la fuerza en las etapas primarias del sistema west-
faliano, las respuestas a la problemática de marras pasaron a canalizarse
crecientemente mediante arreglos institucionales ajustados al Derecho
5
.
Esta identidad entre los debates respecto a la gestión de la crisis de deu-
das soberanas y las particularidades del contexto internacional no resul-
ta nadaantojadiza si se considera que las crisis de deuda soberana ponen
endiscusión uno de los principiosestructurante de todo orden social: la
delimitación y defensa de la propiedad privada.
Sin perjuicio de lo antedicho, debe reconocerse que la naturaleza
arquica propia de la arena internacional –entendida en simples térmi-
nos como la ausencia de una autoridad supranacional- impone ciertas
peculiaridades a las crisis de deuda soberana y a los debates en torno al
2. Con propósito de clarificar los
conceptos recién referidos, se pone
de manifiesto en primer término que
el trabajo se asiste de la definición de
Kevin Gallagher en lo concerniente a
la noción de crisis de deuda soberana.
De acuerdo con el autor, una crisis de
deuda soberana da cuenta de “aquellas
situaciones en las que un Estado no
puede –o no quiere- simplemente hacer
frente a sus compromisos financieros
externos” (GALLAGHER, 2011, p. 1). En
tanto, por cesación de pagos o default,
el trabajo se vale de las consideraciones
de Chukwu (2011, p. 51), quien la define
como una alteración en el cumpli-
miento de las obligaciones financieras
asumidas por un Estado en uno o varios
instrumentos de deuda, el cual puede
manifestarse como una suspensión de
pagos de interés o de intereses y el
capital, la modificación de las fechas
de pago, y/o la declaración de una
moratoria sobre el total de la deuda o
sobre una porción de la misma. En con-
sideración de lo antedicho, la cesación
de pagos no es sino una de las posibles
derivaciones que puede de tener una
crisis de deuda soberana.
3. Conforme se anuncia en su sitio
web (http://www.clubdeparis.org), el
“Club de París” es un grupo informal de
acreedores estatales –la gran mayoría,
miembros fundadores de la Organización
para la Cooperación y el Desarrollo
Económicos (OCDE)- surgido a mediados
de los años 50 con el propósito de
renegociar deudas en situación irregular
que la República Argentina mantenía por
entonces con ciertos países desarrolla-
dos. Desde su institucionalización, ha
devenido un espacio de reestructuración
de deudas interestatales en decenas de
oportunidades. En la actualidad, cuenta
con 19 miembros permanentes y una Se-
cretaría administrativa en París la cual
coordina las actividades del colectivo. En
términos generales, el “Club de París”
acuerda “minutas” o patrones de nego-
ciación que deben ser observadas en las
negociaciones bilaterales particulares el
Estado deudor y sus pares acreedores.
Para un análisis en profundidad sobre el
mismo, se sugiere Cosio-Pascal (2008).
4. En este punto, se remarca que
diversos son los estudios históricos que
dan cuenta de estas discusiones res-
pecto a los instrumentos institucionales
orientados a enfrentar crisis de deuda
soberana. Además de los trabajos ya ci-
tados de Winkler (1933); Sturzenegger y
Zettelmeyer (2007) y Brooks y Lombardi
(2014), se destacan los de Kindleberger
(1978), Lipson (1985); Tomz (2007);
Waibel (2011) y Wright (2012).
5. Habida cuenta de su abigarrado his-
torial en crisis de deuda soberana, los
Estados latinoamericanos –la República
Argentina, en particular- asumieron
un rol protagónico dentro de estas
discusiones, siendo la formulación de
la denominada Doctrina Drago a inicios
del siglo XX con su cuestionamiento a
la pretensión de cobro de acreencias
de potencias europeas a Venezuela vía
coerción una de las manifestaciones
más palmarias de ello.
modo de encararlas, por extensión. En este sentido, se apunta en primer
término que a diferencia de lo que sucede en el ámbito nacional/domés-
tico en el que las dicultades de una rma o agente económico pueden
canalizarse mediante procedimientos de quiebras o bancarrota, el ámbi-
to internacional adolece de un mecanismo de enforcement efectivo ante
un episodio de cesación de pagos de un Estado soberano. Por otra parte,
aunque los contratos de deuda soberana sean difíciles de cumplir, lo cier-
to es que también duran para siempre. Sin un procedimiento de quiebra,
la deuda pública no puede ser liquidada y darle al Estado en crisis “un
nuevo comienzo”
6
(BUCHEIT et. al., 2013, p. 15, traducción propia).
En los últimos decenios, el debate sobre los dispositivos institucio-
nales para la gestión de episodios de cesación de pagos y crisis de deuda
soberana, en general, se inscribieron –e inscriben aún, dado su carácter
irresoluto- dentro un debate de orden sistémico, el cual fue gestado en
concomitancia con el estallido de la sucesión de colapsos económico--
nancieros de mediados de los años ´90. Dicho debate, denominado gené-
ricamente como el de la “Nueva Arquitectura Financiera Internacional
(NAFI), se erigió sobre un amplio -e inaudito- consenso entre actores de
diversa índole y posicionamientos político-ideológicos respecto a la ne-
cesidad de ajustar las estructuras normativo-institucionales del sistema
nanciero internacional a las dinámicas globales de hogaño. Dado su ca-
rácter sistémico, las discusiones de la NAFI comprehendieron problemá-
ticas tan diversas como complejas, tales como el rol de las instituciones
nancieras internacionales (IFI), la sustentabilidad de los regímenes cam-
biarios, el control de los movimientos de capitales, las regulaciones a las
agencias calicadoras de riesgo, entre otras
7
.
En lo que respecta a las deliberaciones especícas sobre los mecanis-
mos y/o dispositivos para la resolución de episodios de cesación de pagos
soberanos, se advierte que las mismas giraron en torno a la idea de que
los cambios experimentados durante las últimas décadas en los mercados
internacionales de deuda pública imponían –imponen- desafíos muy dife-
rentes a los conocidos en otrora, cuando el nanciamiento de los Estados
dependía excluyentemente de los recursos provistos por otras entidades
soberanas, organizaciones multilaterales o la banca internacional (LI, 2013,
p.1). Así pues, los protagonistas o interlocutores del mentado debate asu-
mieron cual premisa de partida que el crecimiento y la complejización de
los mercados de deuda soberana reportados a raíz de la incorporación de
un sinnúmero de agentes heterogéneos, atomizados y dispersos en todo el
mundo obligaba a ensayar canales o mecanismos institucionales alterna-
tivos a los instaurados décadas ats: el denominado “Club de París” (para
la renegociación de deudas interestatales) y el “Club de Londres” (para
aquellas otras asumidas con la banca privada internacional), por ejemplo
8
.
Numerosas fueron las propuestas que se alumbraron en el marco
del debate por la NAFI en su capítulo dedicado a los mecanismos de rees-
tructuración de deuda soberana. No obstante esta pluralidadproyectos-los
cuales incluyeron la adopción de códigos de conducta entre los Estados
y acreedores
9
o la constitución de una corte internacional para quiebras
de deudas soberanas
10
-, lo cierto es que en la práctica las deliberaciones
sobre la temática se restringieron a la confrontación de dos formulaciones
6. En el texto original, “although sove-
reign debt contracts are hard to enforce,
they also last forever. Without bankrupt-
cy, sovereign debt cannot be discharged
to give the country a fresh start”.
7. Para la profundización analítica sobre
el debate de la NAFI se recomienda los
siguientes textos: Bustelo (2000); Akyuz
(2002); Villanueva (2003); Underhill y
Zhang (2003) y Ocampo (2014).
8. El “Club de Londres” refiere a un
grupo informal de entidades bancarias
internacionales que albergó negocia-
ciones de deuda entre éstas y Estados
soberanos. A diferencia del mencionado
en primer término, el “Club de Londres”
no cuenta con miembros permanentes
ni secretaría. En este punto, se remite a
Reiffel (2003).
9. Al respecto, pueden verse los
trabajos consignados a continuación:
Institutefor International Finance (IIF)
(2004), y Couillault y Weber (2003).
10. En este punto, se sugiere consultar
los trabajos de Stiglitz (2003); Reinisch
(2003) y Ugarteche y Acosta (2005).
10
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
presentadas en clave dicotómica: por una parte, la propuesta “estatuta-
ria” diseñada y fomentada originalmente por el sta del Fondo Monetario
Internacional (FMI) entre 2002 y 2003; por la otra, la “contractualista,
impulsada por entonces el Subsecretario del Tesoro norteamericano para
Asuntos Internacionales, John B. Taylor. Sin ánimo ni posibilidades de
detallar en este espacio introductorio las directrices de ambos abordajes,
se limitan estas líneas a apuntar que la propuesta estatutaria propugna
que las operaciones de reestructuración de deuda soberana sean adminis-
tradas por un organismo internacional especíco –el FMI, por ejemplo-
conforme la letra de una convención o tratado internacional especíco
(HOFFMAN, 2014; GIANVITI et Al., 2010). La posición contractualista,
por contraste, entiende que los procesos de reestructuración deben de
conducirse conforme lineamientos –cláusulas, concretamente- estableci-
dos en los propios contratos de deuda soberana.
Si bien en el promediar de la primera década del siglo XXI, la última
solución pareció imponerse sin más, el estallido de crisis de deuda sobera-
na en la periferia de la Eurozona, primero y Estados de menor gravitación
en el escenario nanciero global (Ucrania y Puerto Rico), como asimismo
la continuidad -y agravamiento aún- de la denominada “saga” de la Repú-
blica Argentina con sus acreedores internacionales en la justica nortea-
mericana hicieron reotar el mentado debate en los años recientes. Las
advertencias del FMI y de las agencias calicadoras de riesgo a propósito
del exponencial crecimiento experimentado por los mercados de deuda
soberana durante los últimos años avivan de seguro la vigencia del debate
(FMI, 2018; DOBBS et. al., 2015).
En recurso de las teorizaciones de Judith Goldstein, Miles Kahler,
Robert Keohane y Anne-Marie Slaughter respecto a los diferentes esque-
mas de institucionalización en la arena internacional, es dable señalar que
todas las propuestas de gestión de crisis de deuda soberana involucradas
en el debate de la NAFI pueden ser ubicadas dentro de un continuum con-
forme el nivel de delegación propugnado en cada una de ellas
11
. Al pro-
pugnar esquemas de delegación contrapuestos, las propuestas estatutaria
y contractualista recién consignadas pueden identicarse efectivamente
cual extremos: por un lado, un modelo plenamente delegativo, por el
otro, un modelo liberal, renuente a resignar soberanía por parte de los
Estados. Siguiendo las contribuciones de los mencionados referentes del
institucionalismo liberal, puede señalarse pues que el enfrentamiento de
posiciones respecto al nivel de delegación en los mecanismos de gestión
de crisis de deuda soberana supone una manifestación de un debate mu-
cho más profundo y abarcativo respecto al diseño y ecacia de las insti-
tuciones en la esfera internacional. En este sentido, se sostiene que detrás
de cada una de las propuestas inherentes a la gestión de crisis de deuda
soberana pueden vislumbrarse lógicas racionales orientadas a la búsque-
da racional de agenciar (o preservar) recursos simbólicos y/o materiales.
El propósito del presente artículo es analizar el estado del debate
contemporáneo sobre los mecanismos de reestructuración de deudas so-
beranas. En consideración de ello, el artículocomienza por desentrañar
las principales directrices sostenidas por las propuestas que mayor impac-
to político-económico tuvieron en marco del debate desde principios de
11. De acuerdo con la premisa de
los referidos internacionalistas, “las
instituciones internacionales (...) varían
en diversas dimensiones. La OMC y el
régimen internacional de protección de
los osos polares son ambas institu-
ciones, pero difieren en lo que refiere
al alcance de sus reglas, los recursos
disponibles para la organización formal
y el grado de diferenciación burocrática
(...)” (GOLDSTEIN et al., 2001,p.3).Para
los autores, son tres las dimensiones a
ponderar: la obligatoriedad, la precisión
y la delegación. En lo que respecta
a las propuestas de reestructuración
de deuda en particular, el acento está
puesto en la última dimensión, entendi-
da como la resultante de la decisión de
conferir a una tercera parte la autoridad
para “implementar, interpretar y aplicar
aquellas reglas; resolver disputas y
realizar (posiblemente) nuevas reglas”
(ABBOT et al., 2001, p.17).
11
José Marcelino Fernández Alonso Crisis de deuda soberanas
siglo XXI. Con tal n, identica los promotores de cada de ellas y los ar-
gumentos que esgrimieron en torno a los tres problemas que condicionan
a todos los procesos de reestructuración de deuda soberana, conforme
explica Schwarcz (2004, p.1992, traducción propia): “el problema de los
holdouts
12
o el de la acción colectiva, el problema del riesgo moral y el pro-
blema de los ciudadanos/pagadores de impuestos llamados a sustentar los
procesos de “salvataje” y/o reestructuración”
13
. Una vez contextualizado
los lineamientos y actores que impulsaron cada una de las posiciones del
debate en torno a los mecanismos de reestructuración en el debate a prin-
cipios de siglo XXI, el artículo avanza en las derivaciones que cada una de
ellas tuvieron en los años recientes y en los días actuales. Por último, la
presente producción culmina con unas reexiones conclusivas.
El debate entre las propuestas “estatutarias” y “contractualistas” en los
primeros años del siglo xxi: a propósito de sus orígenes y su cierre precipitado
Tal como se adelantó líneas arriba, la sucesión de crisis experimen-
tada durante el último lustro del siglo XX incitó la articulación de un
inusitado y comprensivo debate en torno a las estructuras y dimicas
del sistema nanciero internacional, asumiendo a la problemática de la
gestión de las crisis de deuda soberana como uno de sus capítulos tronca-
les. Estas discusiones sobre el particular reportaron su punto más álgido
en los meses inmediatos posteriores a la declaración de cesación de pagos
anunciada por la República Argentina el 23 de diciembre de 2001. A resu-
midas cuentas, el defaults importante en volumen en la historia del sis-
tema nanciero global, todo lo cual le valió que fuera calicado como “la
madre de todas las crisis de deuda soberana” (ROUBINI y SESTER, 2004).
De acuerdo con lo explicado por Carlos Alfaro (2003), laspropues-
tas estatutariasde reestructuración de deudas soberanas descansan sobre
dos presupuestos centrales: por una parte, la existencia de un tratado o
convención internacional que delimite el protocolo a seguir ante un epi-
sodio de crisis de deuda soberana y, por otra parte, la instauración y/o
denición de un organismo internacional encargado de administrar los
procedimientos allí consignados. Sobre la base de estos presupuestos, se
postularon en el transcurrir de los años en los que discurrió el mentado
debate de la NAFI una variedad de propuestas.
Sin dudas, la iniciativa que mayor repercusión dentro de este esque-
ma tuvo fue la propulsada por el propio FMI entre noviembre de 2001 y
abril de 2003 a través de Anne Krueger, Subdirectora gerente y Economis-
ta principal del organismo por entonces. Denominado primigeniamente
como “Mecanismo de Reestructuración de Deuda Soberana” (MRDS), el
proyecto preveía la instauración de un esquema estatutario que posicio-
naba al propio Fondo en el rol capital de la gestión y/o administración de
los episodios de reestructuración. En este sentido, la iniciativa estipulaba
que los Estados en dicultades acudiesen al organismo a los nes de so-
licitar asistencia ante la inminencia de una crisis de deuda soberana. En
dicho contexto, el país recibiría pues nanciamiento extraordinario por
parte del FMI y de eventuales agentes privados a condición de que imple-
mentase un programa económico que le permitiese sortear las contrarie-
12. Este término, proveniente del idioma
inglés, remite a la agregación de dos
palabras, a saber: el verbo to hold
(mantener) y el adjetivo out (afuera). En
breve, la alocución refiere a “los que se
mantienen afuera” (del canje de deuda,
por caso). Dicho esto, se indica que la
identificación de los holdouts en los
procesos de reestructuración como de-
rivación prototípica de un problema de
acción colectiva cuenta con numerosas
referencias entre la literatura especia-
lizada. Al entender de este autor, una
de las explicaciones más acabadas
sobre el particular se encuentra en un
trabajo de Kentaro Tamura. Según el
precitado cientista, “el fenómeno de los
holdouts es una de las expresiones más
significativas del problema de la acción
colectiva, manifestada muy particular-
mente en el denominado “dilema del
prisionero” de la teoría de los juegos.
13. En el texto original: “Sovereing debt
restructuring gives rise to three distinct
problems: the holdout, or the collective
action, problem; the moral harazd
problem; and the taxpayer-funding
problem”.
12
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
dades que habían conducido a la crisis e iniciase prontamente el proceso
de negociación con sus acreedores.
Del mismo modo, y en ánimo de sortear uno de los argumentos
más recurrentes de los detractores de los rescates nancieros durante los
años precedentes, el proyecto bajo análisis señalaba que el gobierno del
país asistido debía comprometerse a implementar medidas que refrenaran
la salida de capitales (KRUEGER, 2002, p. 27). Dicho en otros términos, el
proyecto buscaba sortear los cuestionamientos de políticos y académicos
posicionados en diversos sectores del espectro ideológico–esto es, desde
la izquierda y el progresismo hasta la derecha (neo)liberal- respecto al he-
cho de que los capitales habilitados por el organismo a un país devenido
en crisis fueran prontamente dilapidados en procesosde fuga, sumiendo
a todos los actores intervinientes enel rescate en una situación peor a la
conocida previo el inicio de la crisis. En esta línea argumental, se inscri-
bían las críticas de funcionarios de la administración Bush respecto a que
cada rescate implicaba un derroche los recursos de los ciudadanos de los
principales socios del Fondo, de Estados Unidos, en particular.
Si bien en todos sus escritos y exposiciones públicas, la Subdirec-
tora del FMI insistía que la institución se abstendría de intervenir en las
negociaciones entre el Estado en crisis y sus acreedores, el organismo
habría de supervisar las variables macroeconómicas del primero, garanti-
zando consiguientemente la buena fe del mismo. En consideración del ya
mencionado problema de los holdouts y sus posturas obstruccionistas, el
MRDS planteaba que durante el período en que se prolongara la vigencia
del mecanismo, quedaba limitada la posibilidad de activar demandas ju-
diciales (EICHENGREEN, 2003).
Por otra parte, una vez alcanzado un acuerdo con la aprobación de
una mayoría calicada de acreedores, tal decisión devendría obligatoria
para todos los acreedores (BUSTELO, 2005). En caso de que el proceso
de negociación no redundase en un acuerdo aprobado por una mayoría
calicada, los acreedores tendrían la oportunidad de ventilar sus contro-
versias en un órgano a instaurar dentro del FMI para tal n. En busca de
resguardar la imparcialidad entre los actores en pugna, el proyecto de
marras marcaba que la nueva instancia de resolución de controversias
debía gozar de independencia frente a los referentes de la Dirección, el
Directorio Ejecutivo, el sta técnico-burocrático y de los propios Estados
miembros del Fondo. De este modo, pues, el proyecto presentado por
Krueger procuraba refrenar las críticas formuladas por sus detractores
respecto al eventual cruce de intereses del propio FMI.
Llegado este punto, se impone oportunosubrayar que la implemen-
tación del proyecto requería la enmienda de diversos artículos del Con-
venio Constitutivo del organismo al implicar ajustes tanto en términos
funcionales comoburocrático-estructurales. A propósito de ello, resulta
pertinente rememorar que conforme la letra del mencionado instrumen-
to, toda modicación de tal clase debe de contar con al menos el 85%
de los votos del organismo, lo que en términos fáctico imponía la venia
de Estados Unidos, circunstancia no habilitada por entoncesen conside-
ración del rechazo de los funcionarios de la administración presidida por
George W. Bush a la propuesta.
13
José Marcelino Fernández Alonso Crisis de deuda soberanas
Recipiendario de críticas de vastos referentes políticos y académicos
de John B. Taylor, entonces Subsecretario del Tesoro para Asuntos Inter-
nacionales y principal defensor del enfoque contractual-, el proyecto fue
progresivamente perdiendo respaldos hasta ser completamente desistido-
por el FMI en abril de 2003. En este marco, y tal cual lo adelantado líneas
arriba, el debate pareció saldarse a favor de la perspectiva contractualista.
Diversas fueron las interpretaciones realizadas por los estudiosos
del problema bajo alisis para dar cuenta de rechazo de Estados Unidos
a la iniciativa del FMI y el impulso consiguiente de la salida contractual
o “de mercado”. Según el análisis de Anna Gelpern; Ben Hellery; Brad
Setser (2016), el debate en torno a los mecanismos institucionales de ad-
ministración de crisis de deuda soberana no pudo escapar de una lectura
estado-céntrica propia de un país con gravitación decisional en el orde-
namiento político-económico global, y de las nanzas internacionales,
en particular. En sus palabras, “para la mayoría de los funcionarios de
EEUU, la idea de que un tratado pudiera prevalecer sobre los contratos
nancieros suscriptos bajo la ley de Nueva York o de que un organismo
internacional podría prevalecer sobre los tribunales norteamericanos era
simplemente inaceptable” (Gelpern, et. al., 2016, p. 116).
Por otra parte, Skylar Brooks; Eric Helleiner (2017), acentúan que el
proyecto estatutario recibió rechazos generalizados debido a que limitaría
la inuencia “de facto” de EEUU y de otras potencias occidentales en el
manejo de las crisis de deuda al delegar a una nueva autoridad interna-
cional la decisión de si un país afectado por una crisis debería someterse
a una reestructuración de la deuda. Adicionalmente, el rechazo de EEUU
al proyecto estatutario no podría desprenderse del ánimo de preservar el
poder para diseñar y velar por el cumplimiento de los contratos de deuda
soberana suscriptos y emitidos bajo sus leyes. Por cierto, poder comparti-
mentado con el Reino Unido, habida cuenta de la primacía de las plazas de
Nueva York y Londres dentro de la estructura y dimica de los mercados
de deuda soberana. Por último, y siguiendo con el alisis de los autores
recién mencionados, no puede disociarse la resistencia norteamericana al
proyecto del MRDS de los lineamientos político-ideológicos de los deciso-
res de mayor peso de la administración Bush Jr. (HELLEINER, 2005). Por
cierto, lineamientos que en su capítulo externo abrevaba en las conclusio-
nes críticas de la denominada “Comisión Meltzer” al rol de “prestamista
de última instancia” asumido por el FMI desde la década del ochenta y sus
externalidades negativas sobre el “riesgo moral
14
. En correspondencia
con lo expuesto por Schwarcz(2004), la cuestión del riesgo moral no resul-
ta menor en la problemática de las crisis de deuda ya que insta a los agen-
tes económicos a asumir comportamientos temerarios al descontar de la
existencia de una salvaguarda, un rescate del FMI, por caso, nanciado –
de acuerdo con el imaginario y discurso de los funcionarios y académicos
promotores de los resultados de la mencionada Comisión- por los ciudada-
nos de los principales socios del organismo, de Estados Unidos, en particu-
lar. Por último, y conforme marca Ugo Panizza (2013), la identicación de
los rescates del FMI como mecanismos generadores de riesgo moral y de
comportamientos disruptivos en el sistema nanciero internacional podía
bien gracarse en la ocurrencia de Robert Barro de reemplazar el nombre
14. La Comisión Meltzer fue conocida
así en alusión el economista que la
presidiera, Allan Meltzer. Formalmente,
se denominó Comisión Asesora de Ins-
tituciones Financieras Internacionales.
Fue instaurada por el Comité Económico
Conjunto del Congreso de Estados
Unidos en 1998 y emitió su informe en
1999 (www.house.gov/jec/imf/meltzer.
htm). La continuidad de las conclusiones
y líneas discursivas de los funcionarios
de la administración de Bush quedan
ilustradas en las declaraciones del
Secretario del Tesoro Paul O’Neill en el
Foro Económico Mundial, el 1 de febrero
de 2002, disponible en: www.treas.gov/
press/releases/po974.htm.
14
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
del organismo –y su sigla en voz inglesa, por lógica extensión- por el de
“Instituto de Riesgo Moral” (IMH) (PANIZZA, 2013, p. 7).
Tal como señala Homan (2014, p. 13), comparado con el estatu-
tario, la concreción del modelo contractual resultaba menos ambiciosa,
y por tanto, menos gravosa en términos de costos político-instituciona-
les para los actores más gravitantes del sistema nanciero internacional.
Tal cual lo anunciado en la introducción, el ensayo contractual postula la
mera incorporación de determinadas cláusulas en los contratos de deuda
soberana sometiendo la administración de los procesos de reestructura-
ción a la observancia de los términos pactados originalmente en el mer-
cado entre los Estados y sus acreedores internacionales.
En consideración del andamiaje teórico-conceptual sobre el que se
estructura el presente trabajo, es de apuntar que el modelo contractual
reniega de la posibilidad de delegar la administración de las crisis de deuda
soberana a una institución internacional en particular,patrocinando por
defecto la incorporación de cláusulas en los instrumentos de deuda que
establezcan los procedimientos a seguirse ante la eventualidad de incum-
plimiento –la irregularidad en el pago de los compromisos derivados de
los mismos, por ejemplo-. Si bien son varias las disposiciones que pueden
incorporarse en los instrumentos de deuda a modo de “cláusula de acción
colectiva” (CAC), las de mayor signicación reeren a la de una “superma-
yoría” exigible de acreedores para que un Estado pueda modicar los tér-
minos originales de un título público. Por lo general, el piso de dicha “su-
permayoría” oscila entre el 75% y el 80%. Es ésta, la respuesta primaria del
ensayo bajo análisis al mencionado problema de los holdouts. Pero si bien
esta respuesta procuraba sortear el rechazo de algunos tenedores de deuda
de participar de toda propuesta de reestructuración, la incorporación de la
CAC de supermayoría, alertan sus detractores, no ultima decididamente
la eventualidad de una minoría con capacidad de bloqueo. Más aún, los
críticos de las salidas contractualistas o liberales ponen énfasis que los te-
nedores reacios a avanzar en un proceso de reestructuración podrían de
hacerse en el mercado secundario de instrumentos adicionales hasta alcan-
zar el porcentaje mínimo para obstruir todo ensayo de reestructuración.
Por otra parte, y tal como lo advierte Haley (2014), pese a que las
CACs pueden facilitar la reestructuración de una serie particular de bo-
nos, no habilitan una salida concreta para la totalidad de la deuda de un
Estado en crisis ya que los incentivos para avanzar en una reestructura-
ción no pueden ser necesariamente compartido por las mayorías de los
demás instrumentos de deuda.
En este contexto, resulta importante destacar que además de la referida
a la “supermayoría”, destaca entre las CACs, la cláusula de “aceleración”, la cual
“determina que, en el caso de no–pago de cualquier parte de una determinada
serie de títulos de deuda externa re–estructurada, los acreedores podrán declarar
inmediatamente vencidos el principal, los intereses y todos los demás valores
adeudados sobre los títulos de deuda de aquella serie, es decir, se declararía toda la
deuda de plazo vencido, aún cuando no esté “vencida” (BUCHIERI, 2014, p. 68).
En sintonía con lo alertado por Gelpern (2013), en tanto provisiones
contractuales guiadas exclusivamente por el interés privado, las CACs ca-
recen de lógica para comprehender y abarcar externalidades negativas de
15
José Marcelino Fernández Alonso Crisis de deuda soberanas
toda reestructuración como pueden ser los problemas distribucionales en
la sociedad del Estado devenido en crisis o la equidad en las respuestas
para con todos los afectados por la crisis. En este sentido, no se hace po-
sible imponer consideraciones de mayor alcance –políticas, económicas,
geoestratégicas, entre otras- a inversores regidos por el interés privado
y amparado precisamente por las mentadas cláusulas. Ahora bien, estas
evaluaciones esgrimidas por los detractores de las CACs resultaban con-
trapesadas por los argumentos centrales de las CACs: el evitar delegar
a un tercero la administración de la reestructuración y, sobre todo, la
implementación de mecanismos de nanciamiento. Esto último coloca-
ba a la salida de mercado inherente a las CACs como la menos gravosa
en términos materiales. Conforme repetía Taylor en sus alocuciones, la
adopción de CACs alejaba todo procedimiento de salvataje que debía ser
sufragado por los ciudadanos de los principales países miembros del FMI.
En concordancia con Leonardo Stanley (2009), se recuerda que el
uso de las CACs distaba de ser novedoso. Dichas cláusulas han sido utiliza-
das bajo bonos emitidos por legislación inglesa desde 1879. De hecho, y tal
como explica Juan José Cruces (2016), existieron en bonos de ley estadou-
nidense con tales cláusulas hasta que fueron prohibidas por el marco re-
gulatorio de los bonos corporativos (Trust Indenture Act) en 1939. Las CACs
volvieron a implementarse en el mercado de deuda bajo legislación nortea-
mericana tras el año 2003, merced el impulso del modelo por el menciona-
do Taylor y una serie de recomendaciones de foros multilaterales -Grupo
de los Diez- y del propio FMI una vez aceptada las limitaciones políticas
para avanzar en el proyecto promovido por su vice directora gerente.
Siguiendo a lo señalado por Cruces (2016), es de advertir que “aun-
que se considera que México en 2003 fue la primera emisión moderna con
CAC en Nueva York, en realidad hubo tres emisiones previas: el Líbano
en 2000, Qatar en 2000 y Egipto en 2001” (CRUCES, 2016, p. 93). Desde
entonces, los instrumentos de deuda emitidos en tal plaza contienen pro-
visiones legales de este tipo.
Esta innovación institucional -la cual, en los hechos, sólo implica-
ba el abandono del criterio de unanimidad exigido por la legislación en
Nueva York para modicar los términos originales de los instrumentos
nancieros- fue identicada como la piedra angular de un nuevo régimen
internacional de abordaje de crisis de deuda soberana basado en criterios
liberales o de mercado. Poco tiempo debió de transcurrir, no obstante,
para que se explicitaran las deciencias del mismo.
La reapertura del debate en la segunda década del siglo xxi: la
reconsideración de las propuestas “estatutarias” y contractualistas tras
las crisis de deuda de la eurozona y la república argentina
La renuncia del FMI a proseguir impulsando el MRDS y la emisión
generalizada de títulos con CACs a partir de los primeros meses de 2003
supuso un cierre de facto del debate en torno a los mecanismos de admi-
nistración de las crisis de deuda soberana. Conforme expresan Richard
Gitlin; Brett House (2015), la relativa estabilidad del sistema nanciero
reportada en los años que siguieron a la clausura del mentado debate pa-
16
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
reció justipreciar a los promotores del enfoque contractualista imperante.
Empero, el estallido de las crisis de deuda de la Eurozona y otras econo-
mías de la periferia global, como derivación inexcusable de la gran crisis
hipotecaria-nanciera desatada años antes, más la acumulación de reve-
ses de la República Argentina en las demandas incoadas por sus acree-
dores en situación irregular expusieron las externalidades del régimen
de mercado articulado por defecto –o “no régimen”, tal como sostiene
Panizza (2013)- y la persistencia del décit institucional internacional en
el particular. De este modo, el inicio de la segunda década del siglo XXI
marcó el resurgimiento del debate entre “estatutarios” y “contractualis-
tas”, todo lo cual dio cuenta de lo precipitado que había sido la clausura
del debate en su etapa anterior.
De acuerdo con lo expresado Brooks; Helleiner (2017), la prevalen-
cia de la fórmula de mercado en 2003 procuró ser apuntalada mediante
una serie de innovaciones institucionales parciales y/o identicadas en
los márgenes del régimen internacional para la gestión de las crisis de
deuda soberana. Uno de los ajustes más signicativos en la materia se dio
en el marco del propio Fondo: en las directrices para el otorgamiento de
préstamos y en los criterios para la evaluación de la sustentabilidad de las
deudas soberanas, concretamente. Lejos en propósito de relevar cada uno
de los aspectos involucrados en las reformas referidas
15
, se limitan estas
líneas a comentar que en febrero de 2003, esto es, el mismo mes en el que
México emitió títulos públicos con CACs, el Comité Ejecutivo del FMI
aprobó nuevas directrices para la concesión de préstamos del organismo,
las cuales prohibían el otorgamiento de créditos de gran escala a países
miembros cuya deuda soberana no se reportase altamente sustentable en
el mediano plazo. Dicha decisión, impulsada por Estados Unidos y respal-
dada por los países Europeos, procuraba atender precisamente el interés
de los mencionados actores en torno al ya renombrado problema del ries-
go moral. Pero estos criterios, conviene señalar, fueron “relajados” y/o
desatendidos en el contexto de la crisis griega a causa de la presión de los
países europeos –Alemania y Francia, concretamente- en el directorio del
organismo, todo lo cual puso en duda la rmeza de esta reforma.
Por otra parte, el modelo contractualista continuó siendo impul-
sado por numerosos actores durante la segunda década del siglo XXI al
identicarla como la respuesta más inocua en términos de costos políticos
y económicos. En este punto, es de acentuar que el abordaje contractua-
lista abrevó en la salida concertada por las autoridades de la Eurozona
al resolver incorporar cláusulas de acción colectiva (CAC) en todas las
emisiones realizadas por sus Estados miembros con un plazo de madurez
mayor a un año y cuyo primer tramo se emitiese después del 1 de enero
de 2013
16
. Acordada en la cumbre de Ministros de Economía y Finanzas
de noviembre de 2010
17
y consagrada en el Tratado del Establecimiento
del Mecanismo de Estabilidad Europeo de febrero de 2012
18
, esta última
decisión se constituyó como una respuesta regional a aquellas decien-
cias institucionales internacionales en materia de previsión y gestión de
crisis de deuda soberana. A tales efectos, se indica que no obstante haber
emitido durante años instrumentos de deuda pública nominados en una
moneda común, fue recién a partir de la entrada en vigencia de la men-
15. Para esta cuestión en particular se
recomienda los abordajes de Gelpern
(2016) y Brooks; Helleiner (2017).
16. Originalmente, la medida comen-
zaría a regir a partir de junio de 2013.
Empero, y conforme se avanzará luego,
las urgencias del contexto condujeron
a que los decisores del Eurogrupo
adelantaran la vigencia de la misma
seis meses antes.
17. En el comunicado de prensa emitido
tras la mencionada reunión se expresó:
“In the unexpected event that a country
would appear to be insolvent, the
Member State has to negotiate a com-
prehensive restructuring plan with its
private sector creditors, in line with IMF
practices with aview to restoring debt
sustainability. If debt sustainability can
be reached throughthese measures, the
ESM may provide liquidity assistance.
In order to facilitate this process, stan-
dardized and identical collective action
clauses(CACs) will be included, in such
a way as to preserve market liquidity, in
the terms and conditions of all new euro
area government bonds starting in June
2013.” EU (2010) EUROPEAN UNION,
«Statement by the Eurogroup», Dispo-
nible en: http://www.consilium.europa.
eu/press/press-releases/2010/11/pdf/
Statement-by-the-Eurogroup/.
18. Concretamente, el artículo 12.3 del
mencionadotratadoreza: “Collective
action clauses shall be included, as of
1 January 2013, in all new euro area
government securities, with maturity
above one year, in a way which ensures
that their legal impact is identical.”
17
José Marcelino Fernández Alonso Crisis de deuda soberanas
cionada disposición que los Estados de la Eurozona se comprometieron
a incluir compulsivamente provisiones legales uniformes dentro de los
contratos rectores de su endeudamiento soberano, con el objeto de es-
pecicar los derechos y limitaciones de los acreedores –y de sí mismos,
por contrapartida- en episodios de crisis de deuda soberana, y muy espe-
cialmente en los escenarios eventuales de reestructuración (BROOKS y
LOMBARDI, 2014).
Conforme los promotores de la iniciativa –Alemania y Francia, en
lo principal-, la incorporación de estas cláusulas abriría un horizonte de
previsibilidad al enrevesado panorama político-económico europeo pues-
to que habría de raticar la determinación de los Estados de la Eurozona
de reforzar sus compromisos institucionales en la materia. Por otro lado,
estipulaban que la implementación obligatoria de las CACs redundaría
en una reducción de los tiempos y costos políticos-judiciales de las rees-
tructuraciones potenciales en la región, al habilitar la modicación de
los términos incorporados en los instrumentos de deuda mediante una
aprobación de una mayoría calicada de acreedores y limitar, en para-
lelo a ello, el poder de litigio –y bloqueo, por extensión- de potenciales
holdouts, es decir, de aquellos tenedores de títulos públicos renuentes a
participar en toda operación de canje. En este marco, y replicando los
argumentos centrales de Taylor en la década anterior, los promotores de
la iniciativa argumentaron que la incorporación de cláusulas comunes
limitaría la necesidad de arbitrar mecanismos de rescate para Estados con
problemas de endeudamiento soberano, ya que la superación de la crisis
eventual descansaría primariamente en las capacidades de las autoridades
estatales para negociar una reestructuración eventual sin comprometer
recursos habilitados por ciudadanos de otros Estados. Del mismo modo,
y en continuidad con las líneas argumentales de la administración Bush
Jr., los promotores del abordaje contractualista en la Eurozona insistieron
que la adopción común de las CACs anularía la raíz del “riesgo moral, al
constreñirse toda eventualidad de rescate.
Por otra parte, el abordaje contractualista procuró ser reforzado
mediante la revisión de la redacción de los contratos de deuda soberana
a n de evitar la repetición de interpretaciones polémicas de las cláusulas
en sedes judiciales una vez consumada una crisis, tal cual lo sucedido con
la lectura hecha por el juez Thomas Griesa de la cláusula “pari passu” en
ciertas demandas contra la República Argentina. En este marco, cobró
relevancia la iniciativa del Tesoro norteamericano de organizar un grupo
de trabajo de alto nivel. En recurso de la exposición de Brooks y Hellei-
ner, ha de agregarse que “el grupo de trabajo hizo converger a represen-
tantes de países en desarrollo y economías emergentes (incluidos Brasil,
México, Turquía y Uruguay), Estados del G7 (incluidos Francia, Alema-
nia, el Reino Unido y Estados Unidos), el FMI, la comunidad nanciera
internacional y una numerosa red de académicos y abogados expertos en
deuda. El más signicativo de los actores privados que participaron en el
proceso fue la Asociación Internacional de Mercado de Capital (ICMA,
por sus siglas en español), la cual asumió la responsabilidad de redactar
un borrador con los nuevos términos de mercado”
19
(BROOKS ; HELLEI-
NER, 2017, p. 1096, traducción propia). El resultado de este trabajo fue
19. En el texto original: “The working
group consisted of representatives from
developing and emerging market cou-
ntries (including Brazil, Mexico, Turkey
and Uruguay), G7 countries (including
France, Germany, the UK and the US),
the IMF and the private global financial
community, as well as a handful of
academics and lawyers with sovereign
debt expertise. The most significant
private-sector actor in this process was
the London-based International Capital
Market Associa- tion (ICMA)—a leading
financial industry body—which ultima-
tely took respon- sibility for drafting and
marketing the new contract terms”.
18
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
nalmente publicado en agosto de 2014, recomendándose la implementa-
ción de unas “super CACs”, las cuales permitan a los Estados avanzar en
una renegociación de los términos de los contratos de deuda en términos
más favorables que los contenidos en las cláusulas de agregación.
En su intento por escapar del acoso judicial de sus holdouts en juris-
dicciones extranjeras –de la norteamericana, en particular-, la República
Argentina comenzó a reconsiderar las ventajas del esquema estatutario,
el cual había sido oportunamente resistido habida cuenta de la asocia-
ción del mismo con el Fondo, un actor con el cual las administraciones
nacionales asumidas tras el colapso de principios de siglo habían trabado
una relación harto conictiva. Aunque con un perl harto diferenciado
de aquel auspiciado por Krueger y el FMI a inicios de la década pasada, la
iniciativa -de naturaleza preeminentemente reactiva- tomó impulso muy
particularmente tras el revés experimentado por la decisión de la Corte
Suprema de Estados Unidos de no hacer lugar a un recurso de apelación
del país en el que solicitaba la revisión de fallos de primera y segunda ins-
tancia que resguardaba la igualdad de trato -bajo la cláusula “pari passu”-
entre los acreedores que habían aceptado las ofertas de reestructuración
de 2005 y 2010 y aquellos que no (Fernández Alonso, 2017).
Llegado a este punto, conviene recordar que las colocaciones reali-
zadas por la República Argentina en sus dos tramos de la reestructuración
habían incorporado CACs. Pero ello, deviene imperioso subrayar, no ter-
minó de resolver sus problemas legales con los tenedores de títulos públi-
cos en situación irregular. Más aún, los intensicaron tras la eventualidad
expresada por ciertos holdins de activar la arriba mencionada cláusula de
aceleración tras las limitaciones de la República Argentina para honrar sus
compromisos de pago en Estados Unidos y otras jurisdicciones en instan-
cias del embargo resuelto y raticado por las instancias judiciales de dicho
país en los reclamos de los holdouts respecto al trato equitativo. En este
sentido, se expuso cómo tenedores de títulos públicos históricos –esto es,
sin CACs- podían afectar la situación de tenedores de títulos públicos nue-
vos -con CACs- y tras ello, todo un proceso de reestructuración que para
entonces ya sumaba el 93% de aceptación. Al entender de los funcionarios
argentinos, esta situación marcaba uno de los aspectos más ventajosos del
modelo estatutario frente al contractualista, ya que las CACs no pueden ser
impuestas en forma retrospectiva, a menos que se traten de instrumentos
regidos por la ley del propio Estado, tal cual lo ocurrido en Grecia en 2012.
Así pues, la República Argentina trabó gestiones con otros Estados
en desarrollo en aras de mocionar una resolución en la Asamblea General
de Naciones Unidas (AGNU o UNGA, por sus siglas en inglés) conducente
a establecer “un marco jurídico multilateral para los procesos de reestruc-
turación de la deuda soberana con miras a, entre otras cosas, aumentar
la eciencia, la estabilidad y la previsibilidad del sistema nanciero inter-
nacional, y lograr un crecimiento económico sostenido, inclusivo y equi-
tativo y el desarrollo sostenible, de conformidad con las circunstancias y
prioridades nacionales” (AGNU, 2014).
Como bien detalla Alejandro Manzo (2018), la propuesta de la Re-
pública Argentina se inscribió como el resultado de un trabajo de larga
data en el marco de la Conferencia de Naciones Unidas para el Comercio
19
José Marcelino Fernández Alonso Crisis de deuda soberanas
y el Desarrollo (UNCTAD). Detractora de las capacidades autorregulado-
ras de los mercados, la propuesta de la República Argentina sustentaba
una perspectiva propia de la relación Estado-mercado, en la que debía pri-
mar el primer elemento. Así pues, a diferencia de la propuesta estatutaria
del FMI de principios de siglo que procuraba reubicar el rol del organis-
mo en la escena económica internacional, la formulada por la República
Argentina tuvo una vocación más universalista y democrática, ya que las
reglas que conducirían los procesos de reestructuración de deuda sobera-
na serían canalizados conforme los principios aprobados por la Asamblea
General, y no por una instancia cuyas decisiones son fruto de un proceso
poco transparente y con voto ponderado.
De la misma manera, la iniciativa argentina procuraba la partici-
pación activa de la comunidad internacional mediante la conformación
de una Comisión Observadora –conformada ad hoc por tres Estados (..).
Entre otras facultades, la iniciativa le otorga a la Comisión la capacidad
para estudiar la información presentada por el Estado al tiempo de acti-
var el proceso, resolver disputas y redactar un informe nal mostrando
si el deudor soberano ha cumplido o no con los preceptos del mecanismo
regulatorio propuesto” (MANZO, 2018, p. 28).
Por otra parte, la propuesta de la República Argentina en Naciones
Unidas (NU) procuró armar el principio de la autonomía de los Estados
para diseñar y ejecutar los procesos de reestructuración sin condiciona-
mientos de terceros, sean organismos multilaterales de crédito, gobiernos
nacionales o agentes privados. Dicho esto, puede indicarse que el proyec-
to de la República Argentina no se preocupaba del problema del riesgo
moral al concebir, en última instancia, que los mercados no operan nece-
sariamente de modo eciente y que los efectos a considerar tras la provi-
sión de un paquete de rescate son más bien sobre los ciudadanos del país
en crisis que sobre el sistema nanciero en general.
En relación con lo antedicho, y siguiendo a Manzo (2018), es dable
apuntar que el proyecto de la República Argentina entendía el principio
de sostenibilidad no sólo en términos de sustentabilidad de la deuda so-
berna; sino que también (o más bien) en función del desarrollo. Al respec-
to, y tal cual marcó la resolución aprobada, las reestructuraciones “deben
promover el crecimiento económico sostenido e inclusivo y al desarrollo
sostenible, minimizando los costos económicos y sociales, garantizando
la estabilidad del sistema nanciero internacional y respetando los Dere-
chos Humanos” (A/RES/69/319 2015). De ahí pues, que la preocupación
por los ciudadanos que son llamados a pagar los rescates estuviera inverti-
do en relación con las propuestas precedentes. Conforme las ideas fuerza
de la propuesta, los costos de las crisis de deuda soberana son distribuidos
en la mayor parte de los casos en forma asimétrica, siendo los ciudadanos
de los Estados en crisis los más perjudicados.
Por último, en relación con el problema de los holdouts, el proyecto
marcaba la necesidad de suspender todos los litigios iniciados en aras de
resguardar otro de los principios que propugna el proyecto: la buena fe de
todos los afectados por las negociaciones de reestructuración de la deuda.
Habida cuenta de la no obligatoriedad de las resoluciones de la
AGNU, los “Principios Básicos de los Procesos de Reestructuración de la
20
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
Deuda Soberana” aprobados por la precitada resolución no imputaron un
impacto signicativo al régimen de mercado articulado por defecto en
2003 mediante la generalización de las CACs. La iniciativa, apoyada por el
G77 más la República Popular China (RPC) contó con la férrea oposición
de Estados Unidos y un número signicativo de potencias desarrolladas.
En este caso, no sólo se manifestaba un rechazo a una iniciativa delega-
tiva más, sino a una encarada cual disruptiva del (des)orden nanciero
internacional estructurado desde el colapso del orden de Bretton Woods
en los setenta y profundizado tras el expandir e intensicar del proceso
globalizador. Nada facilitó a subvertir tal situación, la determinación de
la administración de Mauricio Macri (2015, en adelante) de discontinuar
impulsando la iniciativa pergeñada por su predecesora –Cristina Fern-
dez (2007-2015)- a raíz del diagnóstico contrapuesto del mandatario en
relación con la problemática de la deuda soberana argentina.
Llegado a este punto, puede colegirse que el régimen de gestión de
crisis de deuda soberana continúa descansando en la lógica contractual,
liberal, de mercado asentada a partir de 2003. Tal como advierte el FMI
(2016), en el período 2014-2016, aproximadamente el 75% de las nuevas co-
locaciones de deuda soberana habían incorporado el nuevo modelo de las
CACs. Sin embargo, y siguiendo las formulaciones de Julian Schumacher,
Henrik Enderlein y Christoph Trebesch se subraya que todas estas inno-
vaciones asociadas a la incorporación de las CACs “tardarán en hacerse
efectivas y no protegerán completamente a los soberanos de demandas
legales. Primeramente, debido a que debe transcurrir mucho tiempo has-
ta que un nuevo tipo de contrato de bonos, tal como aquellos que tienen
CACs de agregación, se disemine alresto de la deuda ya emitida a través
de nuevas colocaciones. En segundo lugar, las CAC no son una salvaguar-
da contra los litigios, ya sea en caso de que los inversores se centren en
crear minorías bloqueadoras en series de bonos o si litigan en base a otras
deudas incumplidas, tales como préstamos”
20
(SCHUMACHER et. al.,
2018, p. 53-54, traducción propia).
Reflexiones finales
De gravitación central en la agenda de la economía y la política
internacional en los primeros años del siglo XXI, el debate en torno a
los esquemas de reestructuración de deuda soberana pasó a un estadio
aletargado tras la imposición de facto del esquema contractual en 2003.
No obstante, lo que supuso una clausura del debatetras la retirada del
proyecto estatutario propuesto por el sta del FMI y la emisión crecien-
te de instrumentos de títulos de deuda soberana con CACs no implicó
una solución denitiva. En razón de ello, el estallido de crisis de deuda
soberanas en la Eurozona y ciertas economías de la periferia global y los
reveses judiciales de la República Argentina en las demandas entabladas
en la justicia norteamericana por sus acreedores en situación irregula-
rrehabilitaron las discusiones sobre el particular. Tal como se advirt
en el transcurrir del artículo, los promotores de cada propuesta fueron
cambiando de referentes, aunque no de los basamentos sobre los que eri-
gen sus argumentaciones político-económicas. Las propuestas en pugna
20. En el texto original: “…CACs will be
slow to become effective and will not
fully shield sovereigns from legal action.
First, it takes many years until a new
type of bond contract, such as those
with aggregation CACs, disseminates
through the outstanding debt stock via
new issuances. Second, CACs are no sa-
feguard against litigation either in case
investors focus on creating blocking
minorities in individual bond series or if
they litigate based on other defaulted
debts, such as loans”.
21
José Marcelino Fernández Alonso Crisis de deuda soberanas
impulsan procedimientos contrapuestos en términos de delegación para
prevenir y gestionar crisis de deuda soberana.
A semejanza de lo ocurrido una década precedente, las distancias
entre las propuestas continúa latente, reproduciéndose consecuentemen-
te proyectos entre aquellos defensores de una lógica de reestructuración
más cercana de mercado y otra de corte más formal. La ausencia de con-
senso conocida una década ats, continúa pues en los días presentes.
Mientras tanto, la ausencia de un marco especíco para la reestruc-
turación de las deudas soberanas constriñó -y constriñe- las posibilidades
de encontrar soluciones prontas, ecientes y sustentables en episodios de
crisis de deuda soberana y de defaults, en particular. Este décit institucio-
nal del sistema nanciero internacional contemponeo no impid, por
cierto, que se desplegaran las operaciones en el mismo. Empero, sí afec
a aquellos Estados caídos en crisis, que vieron restringido su acceso al -
nanciamiento internacional y reconocerse crecientemente condicionados
a diseñar y ejecutar políticas de ajuste las cuales terminan por atentar
contra derechos políticos, económicos y sociales de sus propios ciudada-
nos. En este contexto, los Estados afectados por una crisis de deuda sobe-
rana “pierden crecientemente capacidad para garantizar las necesidades
básicas de sus ciudadanos y de salvaguardar sus derechos humanos”
21
(GELPERN, 2016, p. 46, traducción propia).
Como oportunamente plantean Martin Guzmán y Joseph Stiglitz,
la ausencia de un régimen para administrar crisis de deuda soberanas
conduce a ineciencias ex-ante y ex-post del estallido de la crisis, y a in-
equidades tanto entre acreedores como así también entre el deudor y sus
acreedores. Adicionalmente, a diferencia de las bancarrotas domésticas,
las negociaciones de reestructuración de deudas soberana tienen lugar en
un escenario legal ambiguo. Varias jurisdicciones diferentes, todas con
diferentes perspectivas, intervienen en el proceso. Diferentes órdenes le-
gales a menudo llegan a conclusiones diferentes para el mismo problema.
Puede no estar claro cuál prevalecerá (y posiblemente ninguno de ellos
prevalecerá), y cómo se resolverá la negociación implícita entre los pode-
res judiciales de los diferentes países” (GUZMÁN; STIGLITZ, 2016, p. 4).
El crecimiento de los niveles de deuda a nivel mundial alimentado
por la gran liquidez internacional durantelos últimos años invita a pensar
que los episodios de crisis de deuda soberana se repetirán con más fre-
cuencia en el futuro, poniendo en evidencia las externalidades negativas
del mencionado décit institucional internacional.
Haciendo propias las palabras de Michael Dooley (2000), se sostiene
que un régimen internacionalde reestructuración de la deuda soberana
debería no sóloreinsertar a un país devenido en crisis en los mercados
nancieros, sino que también debería abordar el problema de la deuda
soberana de manera temprana y proactiva. En este respecto, y en con-
tinuidad con lo formulado por Gitlin y House, dicho régimen de rees-
tructuración de deuda soberana debería “evaluar la solvencia de un país
de manera abierta, creíble y directa; alcanzar una visión equilibrada y
ampliamente compartida sobre la capacidad del país para pagar su deuda
existente; crear las bases para un consenso sobre una distribución razo-
nable de las pérdidas entre un deudor, sus ciudadanos y sus acreedores; y
21. En el texto original: “Governments
lose their capacity to meet the basic
human needs of their citizens and to
safeguard their human rights”.
22
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.7 - 24
volver a colocar a un país en el camino hacia el crecimiento y la liquidez
con las menores pérdidas de eciencia posibles para las partes interesa-
das”
22
(GITLIN ; HOUSE, 2015, p. 11, traducción propia).
Por todo lo antedicho, resulta más pertinente que los responsables
de saldar las deciencias institucionales ensayen respuestas alternativas
a una problemática tan compleja como la resolución de crisis de deuda
soberana. El desafío, desde luego, no es nimio. A la luz de la experiencia
de los primeros años del siglo, el arreglo institucional que aspire saldar
el mentado décit normativo en la materia debeidenticar el equilibrio
entre los benecios derivados de un régimen internacional de gestión de
deuda soberana claro y previsible y los costos eventuales identicados por
aquellos actores renuentes a una empresa delegativa, Estados Unidos y los
principales actores del sistema nanciero internacional, en breve.
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22. En el texto original: “It should
address sovereign debt distress early
and proactively. It should assess a cou-
ntry’s solvency in an open, credible and
straightforward fashion; it should reach
a balanced, broadly shared view on the
country’s capacity to pay its existing
debt; it should create the foundations
for a consensus on a reasonable dis-
tribution of losses among a debtor, its
citizens and its creditors; and it should
set a country back on a path to growth
and liquidity with the smallest possible
ef ciency losses to stakeholders”.
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José Marcelino Fernández Alonso Crisis de deuda soberanas
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A política externa “ativa” e “altiva” do
Brasil frente aos conflitos na Líbia e na
Síria: desafiando o “cerco hegemônico”
“Haughty” and “active” brazilian foreign policy to conflicts
in Libya and Syria: challenging the “hegemonic siegue”
Recebido em: 26 de janeiro de 2018
Aprovado em: 04 de julho de 2018
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2019v7.n1.p25
Matías Ferreyra
1
R
Uma das pretensões na política externa “ativa” e “altiva” dos governos de Luís
Ignácio ‘Lula’ Da Silva e de Dilma Rousse foi o envolvimento do Brasil nas
“estruturas hegemônicas” das grandes potências, o que levou à procura por
uma maior participação na agenda da segurança internacional. O objetivo
deste artigo é analisar essa pretensão no acionar da diplomacia brasileira frente
aos conitos armados na Líbia e na Síria, no marco das crises humanitárias
aquecidas com as revoltas árabes, em 2011. O artigo aborda, nesse contexto,
as propostas e resistências normativas do Brasil, junto com outros países
emergentes, para concluir que o Brasil desaou, mas não alterou o “cerco
hegemônico” sobre o gerenciamento de crises e conitos no Oriente Médio.
Palavras chave: Brasil; Estruturas Hegemônicas; Conitos Armados; Países
Emergentes.
A
One of the pretensions in the "haughty" and "active" foreign policy of the
governments of Luís Ignácio 'Lula' Da Silva and Dilma Rousse was Brazil's
involvement in the 'hegemonic structures' of the great powers, which led to
the search for greater participation on the agenda of international security. The
objective of this article is to analyze this pretension in Brazilian diplomacy in
the face of armed conicts in Libya and Syria, in the context of humanitarian
crises heated with the Arab revolts, in 2011. The article discusses in this context,
the proposals and normative resistances of Brazil, together with other emerging
countries, in order to conclude that Brazil has challenged but not altered the
“hegemonic siege” on crisis and conict management in the Middle East.
Keywords: Brazil; Hegemonic Structures, Armed Conicts; Emerging Countries.
1. Professor de Relações Internacionais
na Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Doutorando. no Programa de
Pós-graduação em Relações Internacio-
nais “San Tiago Dantas”. Pesquisador
do Grupo de Estudos de Defesa e
Segurança Internacional (GEDES) e do
Instituto Rosario de Estudios del Mundo
Árabe e islâmico (IREMAI). Franca/
Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-5239-4588
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.25 - 40
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.25 - 40
Introdução
As guerras civis que levaram à derrocada de Muammar Gada, na
bia, e ao considerável deterioramento do governo de Bashar al-Assad,
na Síria, a partir de 2011, constituíram os mais drásticos cenários dentro
dos processos das denominadas revoltas árabes. As crises humanitárias,
corridas armamentistas e intervenções de forças estrangeiras, vinculadas
a esses conitos, iniciaram-se quando o Brasil ocupava uma vaga como
membro não permanente no Conselho de Segurança da Organização das
Nações Unidas (ONU). Frente a tais acontecimentos, a diplomacia brasi-
leira conseguiria se destacar promovendo leituras e propostas alternati-
vas às políticas das grandes potências para o Oriente Médio
2
, buscando
consensos e ações conjuntas com países emergentes, como através do
grupo de países BRICS - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - e os
países que compõem o fórum trilateral IBAS – Índia, Brasil e África do
Sul (VIOTTI, DUNLOP, FERNANDES, 2014).
Além de reetir uma ampliação de interesses e ambições no cená-
rio mundial, projetados a partir de Brasília, aqueles eventos foram esti-
mulados pelas transformações na economia política global e pela difusão
de poder na direção dos países emergentes, que beneciaram ao Brasil,
na primeira década do novo milênio. Com efeito, como assinalam Hirst,
Lima e Pinheiro (2010, p.22), essa combinação propiciou o desenho de
políticas assertivas, que vinculam posturas unilaterais do Brasil com po-
sições coordenadas com outros países em desenvolvimento em temas de
comércio, reforma nanceira, mudança climática, cooperação internacio-
nal, paz e segurança.
Cervo (2010) argumenta que uma das pretensões na denominada
política externa “ativa” e “altiva”, formulada durante o governo de Luís
Inácio ‘Lula’ Da Silva, foi o envolvimento do Brasil nas “estruturas he-
gemônicas” das grandes potências, como forma de fazer parte do jogo
das reciprocidades internacionais, bem como do comando e os benefícios
que dela se derivam. A teoria das “estruturas hegemônicas de poder” foi
desenvolvida em publicações do ex-secretário geral do Itamaraty, embai-
xador Samuel Pinheiro Guimarães (2005), quem teve inuência direta na
elaboração da “grande estratégia” internacional do governo de Lula.
Pode-se compreender a partir dessa “grande estratégia” a procura
brasileira por uma maior participação na agenda da segurança, prin-
cipalmente no âmbito da resolução de conitos e crises dentro do Sul
global (STUENKEL, 2013). O Brasil não cou alheio das questões de
segurança em regiões como o Oriente Médio, entendido como locus re-
levante de expressão do hard power das grandes potências internacio-
nais, as quais têm conservado uma índole de “cerco hegemônico” sobre
a governança dos principais conitos e ameaças dessa região, com capa-
cidade para exercer seus “bons ofícios” nos processos de paz, resoluções
e mediações dos conitos, com ou sem uso da força. Nesse contexto, a
diplomacia presidencialista” de Lula também ofereceu seus “bons ofí-
cios” para uma mediação no conito palestino-israelense, no ano 2010; e
propôs um projeto junto com a Turquia, para buscar um acordo interna-
cional em torno do programa nuclear da República Islâmica do Irã, in-
2. Não existe consenso universal da deli-
mitação geográfica da região do Oriente
Médio. Para fins práticos e conceituais
do presente trabalho, emprega-se uma
noção ampla do Oriente Médio que cos-
tuma ser utilizada pela ONU. A mesma
reconhece como partes da região os se-
guintes países: Arábia Saudita, Bahrein,
Emirados Árabes Unidos, Iraque, Israel,
Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Omã,
Catar, Síria, Sudão, Iêmen, Palestina,
Turquia, Chipre, Egito e Irã.
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Maas Ferreyra A políca externa “ava” e “alva” do Brasil frente aos conitos na Líbia e na Síria
clusive frente à desaprovação dos Estados Unidos (VIOTTI, DUNLOP,
FERNANDES, 2014). O fato de o Brasil ocupar, a partir de 2011, uma
vaga como membro não permanente no Conselho de Segurança deu
mais suportes a essa estratégia.
Nessa direção, o objetivo deste artigo é analisar a pretensão do
Brasil de envolvimento nas “estruturas hegemónicas” no contexto do
seu acionar frente aos conitos na Líbia e na Síria, em 2011. Procura-se
avaliar, propostas e resistências normativas do Brasil, sua capacidade de
ação e inuência nesses conitos, junto com outros países emergentes, no
marco das crises humanitárias aquecidas com as revoltas árabes.
O trabalho está organizado em três partes. Na primeira, abordamos
o conceito de “estruturas hegemônicas” e o lugar do Oriente Médio na es-
tratégia de inserção internacional do Brasil, durante os governos de ‘Lula
da Silva e de Dilma Rousse. Descreve-se como o Brasil tem desaado o
cerco” estabelecido pelas potências tradicionais sobre o gerenciamento
dos conitos e crises dessa região. Na segunda parte, analisa-se o acionar
do Brasil frente ao conito na Líbia, destacando as propostas vinculadas
ao conceito da “Responsabilidade ao Proteger” (RwP). Na terceira parte,
analisa-se o acionar do Brasil diante da guerra civil na Síria, com ênfase
nas iniciativas de mediação do grupo IBAS. Finalmente, apresentam-se
algumas considerações nais sobre os alcances e limitações da política
externa brasileira, no período estudado.
As “estruturas hegemônicas” e o oriente médio na estratégia do Brasil.
Uma das características distintivas da política externa brasileira, a
partir da chegada de Lula à presidência da República, era uma concep-
ção diferente do multilateralismo e da ação multilateral em relação ao
seu predecessor, Fernando Henrique Cardoso. Segundo Fonseca Junior
(2008), no governo de Cardoso armou-se uma política externa susten-
tada na lógica da “autonomia pela integração”, pela qual o Brasil buscou
no contexto internacional uma maior integração nanceira e comercial
e “completa adesão aos regimes internacionais, possibilitando a conver-
gência da política externa brasileira com tendências mundiais, evitando,
assim, o seu isolamento diante do mainstream internacional" (VIGEVA-
NI, OLIVEIRA, CINTRA, 2003, p.36). No governo de Lula, a “autonomia
pela integração” evoluiu para uma política externa baseada na lógica da
autonomia pela diversicação”. Essa política teve reexos na participação
crescente do Brasil em diversas organizações internacionais, assumindo a
liderança de operações de paz da ONU (Haiti), a articulação de coalizões
multilaterais como o G-20 comercial e grupos de países emergentes como
IBAS e BRICS, caraterizados por oferecer certas resistências normativas
aos regimes instituídos pelas potências tradicionais (KOTYASHKO, FER-
REIRA-PEREIRA, VYSOTSKAYA, 2018).
Para Hirst, Lima e Pinheiro (2010) essa mudança brasileira era re-
sultado do uso de um revisionismo soft nos fóruns em que a capacidade
de inuência está predicada em posturas demandantes nas diversas ques-
tões globais. Dessa forma, no regime comercial, ao contrário do passado,
quando o país só tinha interesses defensivos, os interesses ofensivos pela
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liberalização agrícola levaram à coordenação com Índia, China e África
do Sul, entre outros, na criação do G-20 no âmbito da rodada de Doha da
Organização Mundial do Comércio (OMC) (HIRST, LIMA, PINHEIRO,
2010). O aumento de interesses ofensivos, em coordenação com países
emergentes, também se expressariam em outros âmbitos como a segu-
rança coletiva internacional.
Na perspectiva de Cervo (2010), o governo de Lula transitou de uma
política de adesão aos regimes internacionais, vinculada ao paradigma do
“Estado normal” nas estratégias externas do Brasil, fundamentado nos
ideários neoliberais do Consenso de Washington, para outra vinculada
ao paradigma do “Estado logístico, que visou incrementar o protagonis-
mo brasileiro na produção de normas daqueles regimes, atuando como
parte do grupo de Estados mais importantes que conformam a agenda
internacional. O propósito maior desses interesses era penetrar no que
Guimaraes (2005) denominou como as “estruturas hegemônicas de poder
global, de modo de ser parte do jogo das reciprocidades internacionais,
bem como o comando e os benefícios que dela se derivam (CERVO, 2010).
De acordo com Guimarães (2005), o sistema mundial estaria organiza-
do em “estruturas hegemônicas”, por um lado, e por “grandes Estados
periféricos” e “países periféricos”, por outro. O conceito de “estruturas
hegemônicas” evita discutir a existência ou não, na era Pós-Guerra Fria,
de uma potência hegemônica, os Estados Unidos, determinar se o mundo
é unipolar ou multipolar, se existe um condomínio ou não. Tal conceito
seria mais exível e inclui vínculos de interesse e de direito, organizações
internacionais, múltiplos atores públicos e privados, a possibilidade de
incorporação de novos participantes e a elaboração permanente de nor-
mas de conduta; mas no centro dessas estruturas estão sempre os Estados
nacionais (GUIMARÃES, 2005). Essas estruturas têm sua origem na ex-
pansão econômica e política da Europa, que se inicia com a formação dos
grandes Estados nacionais. Em seu devir sempre favorece aos países que
as integram e tem por objetivo principal sua própria perpetuação.
Os grandes Estados periféricos seriam aqueles que por suas di-
mensões geográcas, sua população e sua gravitação na região em que
se encontram, contam com um potencial singular e superior aos demais
países da periferia, podendo atingir uma inuência signicativa no âm-
bito regional e global. Nessa conguração, países como Brasil e Índia
têm o status dos grandes Estados periféricos, com funções-chave nas
relações com Estados Unidos: o principal Estado das “estruturas hege-
mônicas” (GUIMARÃES, 1998). O Brasil ocupa um lugar fundamental
no processo de integração da América Latina e no contexto do avanço
do projeto “integrador” norte-americano materializado em exemplos
como a Área de Livre Comercio das Américas (ALCA), entre outros.
Guimarães argumenta que as “estruturas hegemônicas” possuem me-
canismos de reprodução sistêmica que se materializam na inter-relação
de várias dimensões: a ideologia, a política, a militar e a economia. Esse
tipo de alise permite vincular decisões e ações das “estruturas hege-
mônicas” com os países periféricos em sua complexidade, abordando os
diversos processos e áreas de questões como um conjunto inter-relacio-
nado (GUIMARÃES, 1998).
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Maas Ferreyra A políca externa “ava” e “alva” do Brasil frente aos conitos na Líbia e na Síria
Pode-se perguntar, então, qual a relevância do Oriente Médio para a
estratégia brasileira de envolvimento em aquelas “estruturas hegemônicas”
do mundo, no período do governo de Lula e Dilma Rousse? Em princí-
pio, a relevância dessa região encontra fundamentos na variada provisão de
assuntos à agenda de segurança internacional, e, também, como um lócus
de expressão do hard power das potências estabelecidas do sistema interna-
cional. Contemporaneamente, o conito palestino-israelense, o drama do
programa nuclear iraniano, ou o problema do terrorismo jihadista, entre
outros problemas da região, constituem assuntos de alto impacto para a se-
gurança global, mas que são gerenciados tradicionalmente por um pequeno
número de potências, tais como os Estados Unidos, Grã-Bretanha, França,
Rússia, entre outros atores com importantes capacidades estratégico-milita-
res e inuência geopolítica. Tais países tem sabido estabelecer e conservar
uma índole de “cerco hegemônico” sobre a governança desses conitos re-
gionais, sendo desse modo atores extra-regionais privilegiados, com capaci-
dade ou “jurisdição” para exercer seus “bons ofícios” nos processos de paz,
negociações e mediações dos problemas e conitos do Oriente Médio.
Durante a primeira década do milênio, a diplomacia brasileira ali-
cerçou em suas relações com os países do Oriente Médio o interesse em
desaar e saltar aquele “cerco”. Foi assim que a diplomacia comercial e
a diplomacia política se estimulariam mutuamente, pois foram os fato-
res econômicos e comerciais os quais se conceberam, em um primeiro
momento, para dar um novo impulso às relações do Brasil com os países
dessa região (MAIHOLD, 2010). O grande incremento dos intercâmbios
comerciais com países do Oriente Médio se registra em princípios da
primeira década do século XXI, coincidindo com a chegada ao poder de
Lula. Não obstante, a subida foi signicativa durante os seus dois manda-
tos: entre 2003 e 2010, as exportações cresceram 275% e as importações
188%. Nesse sentido, foram os avanços na “diplomacia comercial” o que
motivaram a visita do ex-presidente Lula à região, no primeiro ano do
seu mandato, e que logo também motivou o Brasil a sediar o primeiro en-
contro de América do Sul e Países Árabes (ASPA), em 2005 (DEUTSCH,
FERREYRA, TINNIRELLO, 2014).
O Brasil utilizaria diversas manobras diplomáticas, procurando se
envolver em discussões sobre os processos de paz no Oriente Médio. Cabe
destacar a iniciativa promovida junto com a Turquia, na procura de um
acordo nuclear rmado com a República Islâmica do Irã, pelo qual esse
país se comprometeria a enviar parte do seu urânio para ser enriquecido
no exterior. O acordo, rmado no dia 17 de maio de 2010, querendo revi-
ver um moribundo acordo que contemplava que Teerã forneça a maioria
do seu urânio escassamente enriquecido, em troca do fornecimento de
combustível nuclear por parte das grandes potências. O que jogava a fa-
vor do Brasil, segundo Botta (2010, p.8) “é que trata-se de um país que tem
bons relacionamentos tanto com os Estados Unidos quanto como o Irã,
situação que aproveita para se tornar um interlocutor forte”.
Por outra parte, a diplomacia brasileira tem procurado se envolver
nas negociações de paz entre palestinos e israelenses. O Brasil foi um dos
países convidados a se credenciar para participar do diálogo israelo-pa-
lestino na Conferência de Annapolis, em 2007, organizado pelos Estados
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Unidos. O então chefe da diplomacia brasileira, Celso Amorim, salientou
a importância da presença do seu país e do México como representantes
da América Latina e dos países em desenvolvimento na conferência, e dis-
se acreditar que o Brasil “pode contribuir para o processo de paz” (DCI,
2007). Este crença também incentivava a ideia da adesão brasileira às “es-
truturas hegemônicas” determinadas por grandes potências.
Mais tarde, em 2010, se conheceria a intenção de Lula de se postular
como mediador no conito palestino-israelense. Foi com essa intenção
em parte que o ex-presidente viajou para o Oriente Médio e procurou re-
forçar as relações bilaterais com Israel e a Autoridade Nacional Palestina
(ANP). Para Lula e seu chanceler Celso Amorim, o Brasil tinha sucien-
tes credenciais para conar em suas iniciativas, pois se trata de um país
relativamente autossuciente em petróleo e que não tem maiores preo-
cupações geopolíticas e de segurança na região, nem possui um passado
de práticas coloniais no Oriente Médio, fatores que dariam ao Brasil a
condição de “potência neutra” (MAIHOLD, 2010). Nesse sentido, o Orien-
te Médio resultava funcional para a dupla estratégia da política externa
brasileira: por uma parte, a diversicação das relações internacionais, e
por outro, o aumento da participação do país em assuntos considerados
da “alta política” no cenário internacional.
Tais motivações se acrescentaram quando o Brasil assume como
membro não permanente no Conselho de Segurança, no período 2011-
2012. A partir desse momento, o Brasil defenderia posicionamentos e
compromissos mais substantivos em matéria de segurança, observando
princípios tradicionais da sua diplomacia: a defesa do multilateralismo,
respeito da soberania, promoção do desenvolvimento e dos direitos hu-
manos (FERREIRA, LEITE, 2015). Nessa etapa, o Brasil procuraria ar-
ticular princípios normativos novos. Um caso emblemático tem sido a
contribuição para um avanço positivo de direito internacional, no que diz
respeito ao principio da Responsabilidade de Proteger (RtoP ou R2P, no
seu acrônimo em inglês). Como se verá nas seguintes secções, aquele con-
ceito orientaria seus posicionamentos e propostas frente às guerras civis
na Líbia e na Síria, dentro da estratégia mais ampla assinalada de adesão
nasestruturas hegenicas.
O Conflito líbio e as resistências normativas do Brasil
Os processos das revoltas árabes tiveram consequências devastado-
ras para Líbia. As primeiras grandes manifestações sociais contra o go-
verno de Muammar Gada, em fevereiro de 2011, cederam lugar em pou-
cas semanas à insurreição armada e à intensa ofensiva das forças armadas
estatais, o que redundou em crimes e uma severa crise humanitária. A
Liga Árabe e a União Africana não demoraram a condenar ao governo
líbio por violações de direitos humanos. A situação dava argumentos
para que as potências ocidentais com cadeiras permanentes no Conselho
de Segurança – Estados Unidos, Reino Unido e a França – obtivessem a
aprovação de uma resolução que permitia intervir na Líbia, com o uso da
força, a m de proteger a integridade da população civil (VIOTTI, DUN-
LOP, FERNANDES, 2014).
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Maas Ferreyra A políca externa “ava” e “alva” do Brasil frente aos conitos na Líbia e na Síria
Por aqueles tempos, a carteira da política externa do Brasil expe-
rimentava algumas mudanças, com a chegada de Dilma Rousse à pre-
sidência da República. A nomeação do embaixador Antônio Patriota no
Ministério das Relações Exteriores, com um perl mais discreto e menos
polêmico que seu antecessor, Celso Amorim, viria a completar o quadro
político em que o Itamaraty voltaria a assumir o comando das relações
externas, depois de oito anos concorrendo com a forte diplomacia presi-
dencial (CASAES, 2012). Embora a mandatária representasse nuances
de continuidade em relação ao governo anterior, a política externa expe-
rimentava algumas inovações em relação à ampla temática dos direitos
humanos, convertida em uma prioridade. Poucos meses depois de ter as-
sumido o novo governo, o Brasil votou de forma inédita, no Conselho de
Direitos Humanos, alinhando-se com os Estados Unidos na proposta de
designar um relator especial para monitorar a situação humanitária no
Irã (O POPULAR, 2011). Segundo Casarões (2012), esse acontecimento
simbolizava o inicio da “era Dilma” na política externa.
No caso da Líbia, esperava-se que o Brasil aprovasse as propostas
de Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, para impor sanções ao gover-
no líbio, no dia 27 de fevereiro de 2011, em uma conjuntura de abusos
massivos contra a população civil. Certamente, o Conselho de Seguran-
ça adotou por unanimidade a Resolução 1970, que incluiu congelamento
de ativos, proibição de viagens e embargo de armas do líder Muammar
Gada. O Conselho decidiu ainda levar o tema ao promotor do Tribunal
Penal Internacional, com sede em Haia. Dessa forma, o Brasil contrariava
diretriz histórica da sua política externa de não apoiar a imposição de san-
ções econômicas. Porém, a delegação brasileira se absteve na votação do
projeto da Resolução 1973, no dia 17 de março, sobre a qual o Conselho de
Segurança autorizava o estabelecimento de uma “zona de exclusão aérea”
e “todas as medidas necessárias” para “proteger civis e áreas povoadas por
civis sob ameaça de ataque” pelas forças leais a Gada. A intervenção
internacional foi dirigida por uma coalizão de países da Organização do
Tratado do Atntico Norte (OTAN) e da Liga Árabe (MINISTÉRIO DE
RELAÇÕES EXTERIORES, 2011).
A Resolução 1973 se sustentava em alguns princípios da Carta da
ONU e do Direito Internacional Humanitário. Também, alguns países
procuraram fundamentar a intervenção no contemporâneo conceito
da Responsabilidade de Proteger (R2P), consagrado durante a Cúpula
Mundial da ONU de 2005. Embora o mandato da ONU para intervir na
bia não mencionasse diretamente a R2P, a percepção comum era que
esse princípio orientava a intervenção internacional (STUENKEL, 2013).
Para a Comissão Internacional sobre a Intervenção e a Soberania Estatal
(ICISS, suas siglas em inglês) aquele novo princípio de Direito Internacio-
nal, refere-se a uma norma internacional que determina que os Estados
têm a responsabilidade primordial de proteger suas populações do geno-
cídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e limpeza étnica,
mas quando o Estado falha na proteção dos seus cidadãos, a responsabili-
dade recai sobre a comunidade internacional (FOLEY, 2013). Tal princípio
era considerado uma das medidas mais promissoras que permitiria obter
um consenso internacional frente às violações dos direitos humanos.
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.25 - 40
No entanto, no caso da Líbia, a perspectiva da aplicação da R2P
acabou se tornando uma questão polêmica. Desde o começo da inter-
venção militar ocidental, muitos países do Sul global consideraram que a
aplicação da R2P acabaria sendo manipulada pelos interesses geopolíticos
dos Estados Unidos e seus aliados da OTAN, secundando os imperativos
humanitários de proteger civis. Tampouco estava claro se os objetivos
de proteção de civis seriam alcançados, ou se a situação humanitária não
caria ainda pior depois da intervenção (VIANNA, 2013). A comunidade
internacional estava claramente dividida frente ao caso líbio, e o Con-
selho de Segurança mostrava-se paralisado. No que tange às potências
emergentes, no momento em que o Conselho de Segurança tratava a
questão da Líbia contava com uma composição histórica que incluía to-
dos os países do grupo BRICS - Brasil, Índia, África do Sul como membros
não permanentes, China e Rússia como membros permanentes. Deve-se
notar que nenhum dos BRICS votou contra à Resolução 1973, mas pela
abstenção (STUENKEL, 2013). No entanto, aquele posicionamento foi se
transformando em rejeição à medida que se estendeu a percepção de que
a OTAN utilizava seu mandato com interesses que não eram precisamen-
te humanitários, mas políticos e estratégico.
Em relação à Resolução 1973, a diplomacia brasileira apontava que
a denominada no-y zone poderia abrir espaço para uma intervenção mi-
litar indesejada e desproporcional. Segundo o ministro Antônio Patriota,
a resolução dava margem para que a intervenção:
(...) fosse usada de forma desvirtuada, como pretexto para a tomada de posição
numa guerra civil (...) É problemático associar a promoção de democracia, de
direitos humanos, a iniciativas militares. Vimos quantas mortes isso provocou
no Iraque, no Afeganistão, quantos inocentes pereceram (FELLET, 2011. não
paginado).
Patriota também justicou a abstenção do Brasil declarando que
uma intervenção armada estrangeira pode “mudar o sentimento popular
e a dimica populacional, reduzindo o poder local das manifestações
(HENNEMANN, 2011). O país se absteve porque se preocupa com a “mu-
dança da narrativa nessas movimentações espontâneas que vêm ocorren-
do no mundo árabe”. O chanceler também alegou que uma interferência
pode ser lida como “uma conspiração ocidental ou como interferência
por parte de Israel” (HENNEMANN, 2011). Desde o começo da guerra
na Líbia, e de outros conitos no contexto das revoltas árabes, o governo
brasileiro defendeu a tese de “não ingerência” nos assuntos internos dos
países e a solução pacíca dos conitos, ao mesmo tempo em que disse
apoiar os anseios por democracia e liberdade na região (MINISTÉRIO
DE RELAÇÕES EXTERIORES, 2011). O Brasil parecia se posicionar fren-
te a um dilema entre preceitos jurídicos, dando prioridade aos princípios
de “soberania” e de “autodeterminação dos povos”, frente aos imperati-
vos da proteção dos direitos humanos que justicavam uma “intervenção
humanitária” ou “todas as medidas necessárias”.
Porém, em certos momentos o Brasil também apoiou a saída de
Gada. O manifestou, pela primeira vez, no dia 22 de março de 2011, após
nota ocial em que o Itamaraty pediu o m dos bombardeios da aliança
liderada pelos Estados Unidos em território líbio. Durante aula inaugural
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Maas Ferreyra A políca externa “ava” e “alva” do Brasil frente aos conitos na Líbia e na Síria
na Faculdade de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
(USP), Patriota declarou: “esperamos que haja o mínimo de violência, o
mínimo de derramamento de sangue e que se estabeleça processo políti-
co que leve a uma transição benigna” (HENNEMANN, 2011). O ministro
não citou Gada nominalmente, mas se referiu ao Egito como exemplo
de uma “transição benigna”, onde o ditador Hosni Mubarak renunciou
após pressão popular e militar em fevereiro de 2011, depois de 30 anos no
poder, abrindo um processo de transição política (HENNEMANN, 2011).
A declaração de voto do Brasil no Conselho de Segurança já tinha
reconhecido e condenado as ações das autoridades líbias em relação às
violações aos direitos humanos no país, mas a conclusão foi que ainda
era necessário apostar no dlogo e que existia a possibilidade de que as
medidas adotadas pelo Conselho de Segurança ocasionaram mais danos
que benefícios (FERREIRA, LEITE, 2015).
Em relação aos bombardeios aéreos da OTAN na Líbia, as ações
foram interrompidas apenas quando grupos opositores tomaram o con-
trole de Trípoli e afastaram a Gada. Os membros da OTAN realizaram
incontáveis surtidas contra as tropas líbias - tudo em nome da “proteção
de civis”, um termo frequentemente invocado pelo secretário-geral da
OTAN, Anders Fogh Rasmussen. O líder líbio foi destituído em agosto
de 2011 e assassinado dois messes mais tarde por forças do Conselho
Nacional da Transição (CNT), órgão que tomou o controle do governo
na capital dos pais. Aos olhos de críticos como o Brasil, agindo como a
força aérea rebelde” a OTAN reinterpretou o propósito da Resolução
1973 e transformou-a de uma missão para proteger os civis em uma mis-
são de mudança de regime na Líbia. Nesse momento, o Brasil mudou de
retórica e adotou um tom muito mais crítico, em consonância com as
declarações da Rússia e outros países de que aquelas intervenções repre-
sentavam um capítulo mais do imperialismo ocidental. O ex-ministro
de Relações Exteriores, Celso Amorim, descrevia a R2P como outro pre-
texto a ser usado pelas potências para conquistar interesses econômicos
com a força militar.
3
No contexto de uma profunda divisão que surgiu com relação à
interpretação e implementação da R2P, a diplomacia brasileira formulou
o que logo acabaria sendo denominado como Responsabilidade “ao” Pro-
teger (RwP). Em 21 de setembro de 2011, a presidente do Brasil, Dilma
Rousse declarou em discurso na Assembleia General da ONU: “Muito
se fala sobre a responsabilidade de proteger; ainda ouvimos pouco sobre
responsabilidade ao proteger. Estes são conceitos que devemos desenvol-
ver juntos” (ONU, 2011). Nos meses seguintes, o governo brasileiro de-
senvolveu o conceito em suas próprias mãos. Em 9 de novembro de 2011,
num contexto em que também se acentuava o conito na Síria, a embai-
xadora brasileira da ONU, Maria Luiza Ribeiro Viotti apresentou o con-
ceito no Conselho de Segurança, não como rejeição mas como um “com-
plemento” ao conceito de R2P, com a nalidade de garantir supervisão e
transparência durante a “implementação” das intervenções executadas
em virtude do conceito de R2P.
4
A RwP alude, justamente, ao perigo de
situações em que uma intervenção militar com ns humanitários acabe
por agravar os conitos e a violência entre as partes litigantes, e que os
3. Enquanto os Estados Unidos e uma
grande parte das nações europeias
já tinham reconhecido o governo dos
rebeldes, em julho de 2011, o governo
brasileiro quitou o reconhecimento ofi-
cial aos partidários de Gadafi somente
em setembro (CASARÕES, 2012). Dentro
e fora do Brasil, a diplomacia brasileira
foi duramente criticada pela demora em
aceitar o CNT como interlocutor legíti-
mo, e julgada por supostamente apoiar
regimes antidemocráticos e ditatoriais.
O ministro Antônio Patriota justificava
que o Brasil “reconhece Estados, não
governos” (VEJA, 2011).
4. Viotti apresentou o artigo no contexto
do debate aberto sobre “proteção de
civis em conflitos armados”, UN Doc.
A/66/551-S/2011/701 v. 11 novembro
2011, denominado “artigo conceitual”.
34
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.25 - 40
civis resultem ainda mais prejudicados (MINISTÉRIO DE RELAÇÕES
EXTERIORES, 2012).
5
O Brasil sugeriu complementar a R2P através de uma série de prin-
cípios de ação: primeiro, que todos os preceitos e ações sob a R2P “devem
seguir uma linha estrita de subordinação política e sequenciamento cro-
nológico”; todos os meios pacícos devem estar esgotados; uma “alise
abrangente e judiciosa das possíveis conseqüências da ação militar” deve
preceder a consideração do uso da força; o uso da força só pode ser auto-
rizado pelo Conselho de Segurança de acordo com o Capítulo VII da Car-
ta, ou “em circunstâncias excepcionais, pela Assembléia Geral, de acordo
com sua resolução 377 (V)” (BENNER, 2013). Por último, a autorização
do uso da força deve “ser limitada em seus aspectos legais, operacionais
e elementos”, e a execução deve permanecer el à letra e ao espírito ”do
mandato explícito. Para assegurar o monitoramento e avaliação adequa-
dos da interpretação e implementação da RwP, “são necessários procedi-
mentos aprimorados do Conselho de Segurança”. O Conselho de Segu-
rança também é obrigado a “garantir a responsabilidade daqueles a quem
a autoridade é concedida para recorrer à força”.
Os argumentos que estruturam o conceito já tinham sido expostos
anteriormente em diferentes fóruns e instâncias internacionais. A novi-
dade era a decisão brasileira de articular aqueles argumentos sob a deno-
minação da “RwP” e de assumir sua defesa explícita, o que continha um
forte elemento surpresa, principalmente para aqueles países ocidentais
que não apoiavam a iniciativa (STUENKEL, 2013).
Segundo Benner (2013), quem tem esquadrinhado esta questão,
havia ts principais motivadores do ceticismo em Washington, Berlim,
Paris e Londres. O primeiro era as diferenças conceituais. O Brasil re-
cebeu críticas de representantes de países euro-atnticos na ONU, indi-
cando que a sua abordagem conceitual não tinha um conceito denido
com precisão. Além disso, criticou-se a prescrição de um seqüenciamento
cronológico estrito, o esgotamento obrigatório de todos os meios pací-
cos e a introdução de “circunstâncias excepcionais” como um gatilho de
qualicação adicional para o uso da força.
6
A segunda razão é o fato de
que muitos no Ocidente viram a iniciativa do Brasil como uma resposta
revanchista pelo acontecido na Líbia. O comportamento de voto do Brasil
no Conselho de Segurança sobre a questão da Síria ampliou essa percep-
ção. Depois que a Europa apresentou uma resolução em 4 de outubro
de 2011 que teria condenado “graves e sistemáticas violações dos direitos
humanos” na Síria, o Brasil optou por se abster em um movimento que
foi visto como estreitamente alinhado com a Rússia e a China e contrario
às intensões ocidentais (BENNER, 2013).
A terceira e última razão, assinalada por Benner (2013), para a reação
negativa dos Estados Unidos e da Europa à proposta brasileira seria mais
abrangente e tem a ver com a forma como os poderes estabelecidos veem
o processo de evolução global das normas. As elites políticas e acadêmicas
argumentam principalmente que o empreendedorismo normativo é (e,
como alguns acrescentariam, deveria ser) o domínio do Ocidente. Uma
norma é então codicada em um fórum internacional por iniciativa das
potências ocidentais. Depois disso, segue a “difusão global de normas”
5. Para ver as argumentações do minis-
tro Patriota, na ONU, sobre o principio
de RwP, ver: MINISTÉRIO DE RELAÇÕES
EXTERIORES. Pronunciamento do Mi-
nistro das Relações Exteriores, Antônio
de Aguiar Patriota, em debate sobre
Responsabilidade ao Proteger na ONU
– Nova York, 2012. Disponível em:<
http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/no-
tas-a-imprensa/8653-pronunciamento-
-do-ministro-das-relacoes-exteriores-an-
tonio-de-aguiar-patriota-em-debate-so-
bre-responsabilidade-ao-proteger-na-o-
nu-nova-york-21-de-fevereiro-de-2012>.
Acesso em: 24 jan 2018.
6. Por exemplo, aos olhos do embaixa-
dor de Alemanha da ONU, a RWP “li-
mita o escopo para soluções oportunas,
decisivas e sob medida para situações
de extrema gravidade” (BENNER, 2013).
35
Maas Ferreyra A políca externa “ava” e “alva” do Brasil frente aos conitos na Líbia e na Síria
e a “implementação da norma”. Os países do Sul global podem apenas
decidir se querem aplicar ou “resistir” à norma. Combinando com os cri-
térios de Guimarães (2005), pode-se inferir que nas “estruturas hegemôni-
cas” contemporâneas haveria pouco espaço para agenciamento de atores
periféricos na produção e ciclo de normas. No entanto, como apontam
Kotyashko, Ferreira-Pereira e Vysotskaya (2018), em uma ordem mundial
que transita gradualmente para um mundo multipolar e em contextos de
nascente agencia de atores além do Ocidente, a “resistência normativa”
continuaria sendo uma questão chave.
A guerra na Síria e a proposta de mediação pelo IBAS
A República Árabe da Síria, país situado no coração do Oriente Mé-
dio, transformou-se em cenário de grandes revoltas sociais a partir de
março de 2011, evoluindo para um cruento conito armado entre vários
grupos armados e o governo de Damasco que se estende até o tempo
presente. O cenário sírio se diferenciou em vários aspectos do caso líbio.
Desde o começo dos protestos, o presidente sírio Bashar al-Assad resistiu
a sair do poder e nunca foi abatido pelas facções opositoras. O interesse
dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais em impor sanções e
promover uma intervenção militar no país, encontrou o reiterado veto
de Moscou e Pequim no Conselho de Segurança, os quais defenderam a
necessidade da negociação política e pacíca entre os sírios para resolver
o conito (FERREYRA, 2015).
Diante desse quadro, em várias circunstâncias o Brasil se absteve nas
votações de projetos de resolução que visavam condenar o governo sírio,
no âmbito do Conselho de Segurança. Por exemplo, sabia-se que o projeto
de resolução (S/2011/612) que condenava a Síria por violações dos direi-
tos humanos abriria as portas para eventuais sanções e as possibilidades
de plantear uma intervenção militar. O argumento do Brasil era que ain-
da havia tempo para promover um “dlogo” e que resoluções desse tipo
não eram absolutamente propícias (FERREIRA, LEITE, 2015). A primeira
nota à imprensa do governo brasileiro sobre a situação na Síria acontece
no dia 25 de abril de 2011. O Ministério de Relações Exteriores manifestou
sua desaprovação ao uso da força contra manifestantes armados e expres-
sou suas expectativas por uma mediação diplomática do conito:
O governo brasileiro rearma o entendimento de que a responsabilidade pelo
tratamento dos impactos das crises, no mundo árabe, sobre a paz e a segurança
internacional recai sobre a o CSNU e ressalta a importância do papel dos organis-
mos regionais – em particular a Liga Árabe e a União Africana – nos esforços de
mediação diplomática (RIEDIGUER, 2013, p.46).
Essa posição foi logo rearmada pelo ministro de Relações Exterio-
res, Antônio Patriota, quando em uma entrevista na ONU, em junho de
2011, declarou que:
A Síria é um país central quando se leva em conta a estabilidade no Oriente Mé-
dio. A última coisa que gostaríamos é contribuir para exacerbar as tensões no que
pode ser considerada uma das regiões mais tensas de todo o mundo (VEJA, 2011).
Devido à dissidência sobre o caso sírio entre os membros com direi-
to a veto dentro do Conselho de Segurança, uma das questões destacadas
36
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.25 - 40
pelo Brasil e outras países emergentes no Conselho de Segurança era a
necessidade da sua reforma, visto que o órgão cou paralisado e incapaz
de aprovar qualquer resolução sobre a situação que se desencadeava na
Síria (OLIVEIRA, UZIEL, ROCHA, 2015). Por sua vez, o sinal de que o
Brasil não apoiaria a resolução contra o governo sírio de Bashar Assad
irritou os representantes de Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Ale-
manha no Conselho de Segurança. Diplomatas desses países disseram
estar decepcionados com a posição brasileira de não votar a favor do texto
que condena o governo sírio pela onda de repressão a opositores que já
deixou mais de mil mortos (BENNER, 2013).
Independentemente das posições assumidas pelas grandes potên-
cias, o Brasil procurou desempenhar um papel propositivo no conito
rio. Um dos principais pontos de inexão na crise síria foi a repressão
violenta à manifestações na cidade de Hama, no m de julho e início
de agosto, nas vésperas do feriado muçulmano do Ramadã. Em reação
à escalada da violência, o Conselho de Segurança adotou, em agosto de
2011, uma Declaração Presidencial – o único documento adotado pelo
Conselho, em 2011, sobre a questão síria – cuja versão inicial resultou de
negociação entre o Brasil e o Reino Unido. Os elementos propostos pelo
Brasil para uma manifestação do Conselho de Segurança basearamse
nos termos da gestão conjunta que os países do denominado grupo IBAS
ndia, Brasil e África do Sul) àquela altura planejavam realizar junto às
autoridades sírias, em favor do m da violência e das violações de direi-
tos humanos e pela busca de uma solução política liderada pelos sírios
(VIOTTI, DUNLOP, FERNANDES, 2014, P.109).
O Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul (IBAS) é um grupo
informal que se constitui em 2003, com a intensão de institucionalizar as
relações diplomáticas nos enramados da Cooperação Sul-Sul, sendo um
espaço de coordenação política entre potências regionais em desenvolvi-
mento. O IBAS também é considerado uma “coalizão”, ou seja, um grupo
que se forma com propósitos de barganha e negociações coletivas. O ter-
mo refere-se a qualquer grupo de decision-makers que participam de uma
negociação e que concordam em agir coordenadamente a m de chegar
a um common end (ASSUNÇÃO, 2013). O IBAS se posiciona em defesa de
uma ordem multipolar estruturada a partir do fomento à democracia, do
multilateralismo e da atenção ao Direito Internacional (IBAS, 2003) Em
quase dez anos de existência o IBAS permitiu uma maior articulação en-
tre os três países, aprofundando as pautas políticas e expandindo as trocas
comerciais (ASSUNÇÃO, 2013). Além disso, a cooperação Sul-Sul para o
desenvolvimento externo ao grupo, assim com as suas ações humanitá-
rias por meio do Fundo IBAS para o Alívio da Fome e da Pobreza, criado
em 2004, têm sido, em certa medida, exitosas, alcançando reconhecimen-
to internacional (VIOTTI, DUNLOP, FERNANDES, 2014). Com o Fun-
do, Índia, Brasil e África do Sul se comprometeram em apoiar projetos
de médio porte, privilegiando iniciativas em projetos autossustentáveis
e reproduzíveis, comprometidos principalmente com as necessidades de
países em desenvolvimento ou em situação de pós-conito. O Fundo tem
nanciado projetos relevantes em países como Guiné-Bissau, Haiti, Cabo
Verde, Palestina, Burundi, Laos, Vietnam, Camboja e Serra Leoa.
7
7. O reconhecimento do êxito dos
projetos do Fundo IBAS pela comuni-
dade internacional resultou em dois
prêmios conferidos à iniciativa. Em
2006, foi concedido pelo PNUD o Prêmio
“Parceria Sul-Sul para Aliança Sul-Sul”
e, em 2010, o Prêmio “Millennium
Development Goals Awards”, outorgado
pelo “Millennium Development Goals
Awards” (ASSUNÇÃO, 2013).
37
Maas Ferreyra A políca externa “ava” e “alva” do Brasil frente aos conitos na Líbia e na Síria
Em 2011, os três países do IBAS ocupavam cadeiras rotativas no
Conselho de Segurança e procuraram se aventurar em iniciativas para
encontra soluções pacícas para o conito na Síria. O então ministro Pa-
triota indicou os esforços do grupo na busca de um “denominador co-
mum” entre as partes sírias enfrentadas e o envio de representantes dos
três países para a Turquia, onde se concentravam algumas articulações
com o governo da Síria:
Estamos privilegiando neste momento a coordenação do Ibas e negociando ter-
mos de transferência para uma gestão conjunta dos três países com as autorida-
des de Damasco, instando o governo sírio a proceder as reformas dentro do mais
breve prazo e a pôr m à violência, que já resultou em mortes em uma escala
inteiramente inaceitável, que precisa ser objeto de uma reação que ponha m a
esse processo (Terra, 2011, não paginado).
Em declarações conjuntas, os países do IBAS deniram a posição
de condenar a prolongada violência na Síria, mas sem deixar de armar
a defesa da soberania do país, desaprovando qualquer forma de inter-
venção militar externa (RIEDIGUER, 2013; BENNER, 2013). O IBAS
conseguiu acordar com o governo de Bashar al-Assad o envio de uma
delegação conformada pelos três países à Damasco, para o dia 10 de
agosto, com o objetivo de debater propostas de resolução do conito. Foi
signicativo que a iniciativa teve lugar por fora das diretrizes da ONU
e do “Plano dos Seis Pontos” de Ko Annan, que por aquele momento
começava a ganhar fôlego no Conselho de Segurança.
8
Em um primeiro
momento, a resposta do governo de al-Assad foi positiva, apontando a
uma eventual suspensão das ações militares e implantação de reformas
econômicas e democráticas. Mas essas declarações não foram levadas à
prática (RIEDIGUER, 2013).
Por motivo dessas iniciativas o governo brasileiro recebeu criticas
de diversos setores. Por exemplo, Nader e Sciré (apud CASARÕES, 2012),
por exemplo, apontavam que a estratégia brasileira pelo IBAS, com medo
de ser condenatória, foi complacente com Bashar al-Assad, abrindo pre-
cedentes para que outros governos em situações de conitos armados
argumentem que estão cooperando quando na verdade continuam com-
batendo os grupos internos. Por sua parte, em editorial, o periódico The
New York Times, chamou de “vergonhosa” a cumplicidade daqueles países
com o regime de al-Assad. Dentro do Brasil, algumas vozes destacavam a
postura “tímida” do Brasil na defesa da democracia e dos direitos huma-
nos, ou seu apoio a governos ditatoriais (CASARÕES, 2012). Porém, não
se deve ignorar a tentativa de uma solução negociada por parte desses
países, a responsabilidade política que procuraram assumir, assim como
o fato de que os representantes do IBAS foram recebidos pelo próprio
Bashar al-Assad. Durante todo o período a diplomacia brasileira foi ativa
no Conselho de Segurança e, algumas vezes, condenou as violações do
governo de Bashar. Por exemplo, em novembro de 2011, o Brasil votou a
favor da resolução elaborada por França, Grã Bretanha, França e Alema-
nha que condenava ao governo sírio pela situação humanitária no país
(VIOTTI, DUNLOP, FERNANDES, 2014).
Contudo, tanto na Líbia como na Síria a diplomacia brasileira mos-
trou uma postura crítica e juridicamente desaante do intervencionismo
8. A delegação composta pelo Embaixa-
dor Ebrahim Ebrahim, Vice-ministro das
Relações Internacionais e Cooperação
da África do Sul; pelo Embaixador Paulo
Cordeiro de Andrade Pinto, Subsecretá-
rio-Geral para África e Oriente Médio do
Brasil; e pelo Embaixador Dilip Sinha,
Secretário Adjunto para Organizações
Internacionais do Ministério dos Negó-
cios Estrangeiros da Índia, foi recebida
pelo próprio presidente Bashar al-Assad
e sua comitiva (RIEDIGUER, 2013).
38
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.25 - 40
das potências ocidentais. De fato, a Síria foi o principal debate de conjun-
tura no Conselho de Segurança quando o Brasil promoveu o conceito de
Responsabilidade “ao” Proteger, na procura de uma solução que evitasse
a intervenção militar das grandes potências (BENNER, 2013), e defen-
dendo, também, princípios tradicionais da sua diplomacia, como a “au-
todeterminação dos povos” e a “não-intervenção”. No entanto, haja vista
o que se consumou no processo líbio e sírio, em que tais cenários foram
militarizados e internacionalizados pelo efeito da intervenção estrangei-
ra, as propostas e estratégias de mediação do Brasil demonstraram ser
inócuas no intuito estratégico de alterar o “cerco” estabelecido sobre o
gerenciamento desses conitos.
Considerações finais
Uma das questões vislumbradas, no presente texto, foi o interesse
das políticas externas dos governos de Lula e de Dilma Rousse em par-
ticipar de forma ativa na resolução dos conitos e crises no Sul global. A
diplomacia brasileira procurou atuar em espaços multilaterais alternati-
vos de enunciação e valoração dos conitos na Líbia e na Síria. Além dos
interesses econômicos e comerciais, o interesse brasileiro por se envolver
no gerenciamento desses conitos - o que tem sido feito, normalmente,
pelas principais potências, explicava-se pela imporncia das questões de
segurança dessa região para a inserção internacional do Brasil nas “estru-
turas hegemônicas”.
O Brasil desaou, certamente, o mencionado “cerco” no Oriente
Médio estabelecido por essas “estruturas”. O Brasil procurou contribuir
ao enquadramento normativo dos conitos na Líbia e na Síria, como o
principio de RwP, e mostrou um acionar comprometido com uma pro-
posta de mediação para Síria através do IBAS. Contudo, as evidências
apresentadas indicam que tais ações brasileiras foram inecazes para
transformar esses conitos. O Brasil tentou, mas não conseguiu geren-
ciar, ou mudar, os processos desses cenários, o que demonstra que o país
não possuía (nem possui contemporaneamente) os recursos matérias e
normativos necessários para alterar as “estruturas hegemônicas” no sen-
tido pretendido pela “grande estratégia.
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The political economy of regional integration: a
comparison between Brazil and India
Recebido em: 18 de maio de 2018
Aprovado em: 06 de julho de 2018
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2019v7.n1.p41
Fabio Luis Barbosa dos Santos
1
R
O objetivo deste artigo é comparar a política externa indiana no seu entorno re-
gional durante a administração do partido do Congresso Nacional Indiano (INC)
entre 2004 e 2014, com a política do governo do Partido dos Trabalhadores no
Brasil para a América do Sul entre 2003 e 2016. Minha hipótese é que, a despeito
do empenho das gestões petistas em modular favoravelmente a integração inter-
nacional, ou da tentativa congressista de dosar o alcance da abertura econômica,
em ambos casos aceitaram-se como inexoráveis os termos da globalização, e a
articulação estrutural entre dependência e desigualdade social não foi desaada.
Embora o enfoque da análise seja o caso indiano sob a administração do INC, o
texto é permeado por referências à situação brasileira, nos marcos de um recorte
temporal dilatado, instigando a comparação em uma perspectiva histórica
ampliada. O artigo realiza o seguinte movimento: inicialmente, reconstitui-se
as linhas gerais da inexão indiana na direção do neoliberalismo, que tem como
marco original a New Economic Policy adotada em 1991. Em seguida, analisamos a
dimensão política do processo, em que o distanciamento em relação aos valores
associados à política nehruviana cultivados pelo partido do Congresso Nacional
Indiano desde a independência, correspondeu à corrosão da sua legitimidade
política, e ao ascenso da política comunal. Na terceira seção, abordamos a orien-
tação geral da política externa indiana desde os anos 1990, focalizando o período
em que o INC voltou ao poder (2004-2014). Esta análise destaca as diversas
iniciativas no plano regional, estabelecendo paralelos e contrastes com a política
externa das gestões petistas para a América do Sul (2003-2016). A quarta seção
aborda o signicado da eleição de Narenda Modi em 2014, que trouxe de volta
ao poder o nacionalismo hindu. O texto encerra-se com reexões nais, em que
explicitam-se convergências mas também diferenças entre a política de integra-
ção regional seguida por Índia e Brasil, nos marcos da globalização.
Palavras-chave: Índia; Brasil; Integração Regional; globalização.
A
This article compares India´s foreign policy towards its regional surroundings
under Indian National Congress (INC) administrations between 2004 and 2014
with policies undertaken by Worker´s Party (PT) administrations in South America
between 2003 and 2016. My hypothesis is that despite eorts of PT administration
to negotiate international integration in its favour, or Congress party attempt
to restrain the scope of economic liberalisation, in both cases globalization was
1. Doutor em História Econômica pela
Universidade de São Paulo. Professor da
UNIFESP (Universidade Federal de São
Paulo), atuando no curso de Relações
Internacionais no campus Osasco.
Tem experiência na área de História e
Relações Internacionais com ênfase em
História da América Latina e História
Contemporânea, atuando principal-
mente nos seguintes temas: História
Contemporânea; História Econômica;
História da América Latina; Relações
Internacionais na América Latina; Pen-
samento Brasileiro e Latino-Americano.
São Paulo/Brasil ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-5493-9633
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.41 - 62
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taken as inexorable and the structural articulation between dependecy and social
inequality sas not challenged. Although the text focuses the Indian case under
INC, references to the Brazilian situation are made throughout the text, recurring
to a time frame that invites comparisons on a broader historical perspective. The
article undertakes the following path: at rst, the general lines of India´s inection
towards neoliberalism are reconstituted, which have as its hallmark the “New
Economic Policy” adopted in 1991. The political dimension of the process is
then analysed, as the dwindling of INC´s political legitimacy hs corresponded to
the rise of communalism. In the third section the general orientation of Indian
foreign policy since the 1990´s is analyses, focusing on the period when INC was
back to power (2004-2014). This analyse highlights initiatives in the regional realm,
and parallels and contrasts with PT´s South America´s policies is established.
Fourth section analyses the electoral triumph of Narenda Modi in 2014, which
has brought hindu nationalism back to power. The articles ends with concluding
remarks, where convergences but also dierences between the regional integration
policies followed by India and Brazil under globalisation are stressed.
Keywords: India; Brazil; Regional Integration; globalisation.
Introdução
O objetivo deste artigo é comparar a política externa indiana no seu
entorno regional durante a administração do partido do Congresso Na-
cional Indiano (INC) entre 2004 e 2014, com a política do governo do Par-
tido dos Trabalhadores no Brasil para a América do Sul entre 2003 e 2016.
Embora o enfoque da alise seja o caso indiano sob a administração do
INC, o texto é permeado por referências à situação brasileira, nos marcos
de um recorte temporal mais amplo, instigando a comparação em uma
perspectiva histórica ampliada. O artigo realiza o seguinte movimento:
inicialmente, reconstitui-se as linhas gerais da inexão indiana na direção
do neoliberalismo, que tem como marco original a New Economic Policy
adotada em 1991. Em seguida, analisamos a dimensão política do proces-
so, em que o distanciamento em relação aos valores associados à política
nehruviana cultivados pelo partido do Congresso Nacional Indiano desde
a independência, correspondeu à corrosão da sua legitimidade política, e
ao ascenso da política comunal. Na terceira seção, abordamos a orienta-
ção geral da política externa indiana desde os anos 1990, focalizando o
período em que o INC voltou ao poder (2004-2014). Esta alise destaca
as diversas iniciativas no plano regional, estabelecendo paralelos e con-
trastes com a política externa das gestões petistas para a América do Sul
(2003-2016). A quarta seção aborda o signicado da eleição de Narenda
Modi em 2014, que trouxe de volta ao poder o nacionalismo hindu. O
texto encerra-se com reexões nais, em que explicitam-se convergências
mas também diferenças entre a política de integração regional seguida
por Índia e Brasil, nos marcos da globalização.
Neoliberalismo
Brasil e Índia são dois países que avançaram substantivamente em
uma direção industrial durante a Guerra Fria no Terceiro Mundo. Entre-
tanto, contrastes históricos que remetem aos respectivos padrões de co-
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Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
lonização e descolonização incidiram na constituição das classes sociais,
resultando em evoluções socioeconômicas comparáveis, mas diferentes.
No caso indiano, segundo Adithia Mukherjee, constituiu-se nas
frestas da dominação inglesa uma burguesia nativa, cujos interesses
evoluíram, de maneira geral, em oposição à dominação britânica (MU-
KHERJEE, 2002). Esta burguesia apoiou a luta anticolonial liderada pelo
Congresso Nacional Indiano (INC) e também incidiu na orientação polí-
tica e no programa desta organização. Como decorrência, se a Índia in-
dependente não subverteu a propriedade privada nem revolucionou as
relações de produção, foi o país que mais longe foi na direção do planeja-
mento econômico e da intervenção do Estado no Terceiro Mundo, sem
romper com o capitalismo. Ou nos termos de Mukherjee, foi o país que
mais avançou na direção de um “desenvolvimento econômico não-colo-
nial, nos marcos do capitalismo (MUKHERJEE, 2017).
O desenvolvimento de uma indústria nacional, o compromisso
com um Estado e uma política secular, e a defesa do não-alinhamento na
Guerra Fria, foram pilares fundamentais do horizonte político que se ar-
mou no país sob a liderança de Jawaharlal Nehru (1947-1964), e prevale-
ceu na Índia desde a independência em 1947 até a inexão neoliberal nos
anos 1990. Por outro lado, um arranjo político que costurou o apoio dos
latifundrios à política congressista bloqueou a reforma agrária, e com
isso, a possibilidade de mudanças estruturais. De modo geral, o horizonte
nehruviano previa que o desenvolvimento e a modernização resolveriam
problemas diversos como a miséria, a desigualdade, a divisão de castas e
o comunalismo.
No nal dos anos 1960 a Índia, assim como o Brasil, confrontou-se
com os limites do nacional-desenvolvimentismo, genericamente identi-
cado com a constituição de uma base industrial referida ao espaço econô-
mico nacional (KEMP, 1983; BIELSCHOWSKY, 1995; FONSECA, 2004).
Entretanto, o país asiático respondeu intensicando o controle estatal so-
bre a economia: os principais bancos do país foram nacionalizados (1969),
assim como o setor de seguros (1971-72) e a indústria de carvão (1973),
enquanto restrições ao investimento estrangeiro foram reforçadas. Como
consequência, a participação do capital estrangeiro no começo dos anos
1980 era relativamente pequena, e respondia por cerca de 10% do valor
agregado nos setores manufatureiro e de mineração. A participação es-
trangeira no setor nanceiro também era marginal (CHANDRA; MU-
KHERJEE; MUKHERJEE, 2008, p. 462).
Neste contexto, o país não experimentou recessão, hiperinação,
nem uma crise da dívida aloga aos países latino-americanos. Ao con-
trio, na década de 1980 registrou-se uma taxa de crescimento indus-
trial em torno de 8%, distanciando-se da mal-afamada Hindu rate of growth
prevalente nas duas décadas anteriores, que não ultrapassava 3,5%. En-
tretanto, o principal motor da expansão foi o gasto público, que derivou
em ascendentes décits scais, cobertos com empréstimos internacionais
em condições cada vez mais onerosas. Em uma década, o superávit de
U$ 1,5 bi registrado na balança de pagamentos em 1977-78 (1,4% do PIB),
converteu-se em um décit de U$ 9,9 bi em 1990-91 (3,5% do PIB), apesar
de uma evolução favorável na balança comercial na segunda metade da
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década (1985-1990), período em que a economia cresceu em média 5,5% ao
ano. Porém, as despesas nanceiras do país aumentavam em ritmo expo-
nencial, de modo que, no nal do decênio, as despesas com juros aboca-
nhavam cerca de 1/3 do orçamento estatal. Em 1988, a Índia era o maior
devedor da Ásia (NEERAJ, 2006; CHANDRASEKHAR, GOSH, 2011).
A vulnerabilidade face a empréstimos de curto prazo era um fe-
nômeno novo na economia indiana, que se expressou com violência na
crise nanceira em 1991. Encarando décits scais e comerciais em um
momento de escassez de liquidez internacional para renanciar a dívi-
da, o Estado confrontou-se com uma crise da balança de pagamentos, e
esteve à beira da moratória. Neste momento, apesar da ambivalência de
capitalistas indianos diante da globalização, as pressões liberalizadoras
prevaleceram e a Índia ingressou em um programa de ajuste estrutural,
visando reduzir o décit da balança de pagamentos e estabilizar a eco-
nomia. Neste processo, a rúpia foi desvalorizada e o controle de capitais
foi progressivamente liberalizado, bem como as importações. Gastos pú-
blicos foram reduzidos, subsídios cortados e privatizações operadas. Em
2000, no mesmo ano em que aprovou-se a lei de responsabilidade scal no
Brasil, a versão indiana da lei foi pautada no parlamento (Fiscal Responsa-
bility Act), sendo aprovada em 2003.
Ainda que a profundidade das reformas estruturais no país fosse
menos extrema em comparação com programas alogos na América
Latina e em outras partes, a orientação neoliberal prevalece na condução
do Estado desde então, a despeito de sucessivas alterncias políticas
2
.
O neoliberalismo indiano avança de forma intermitente, mas constante.
As diferenças que marcam a evolução econômica do país em contraste
com outros experimentos nacional-desenvolvimentistas tende a se homo-
geneizar sob a égide da globalização.
No caso brasileiro, a economia política neoliberal objetivou a inser-
ção do espaço econômico nacional nos movimentos do capitalismo con-
temporâneo, como plataforma de valorização do capital nanceiro, base
para a expansão do capital multinacional e exportador de matérias-pri-
mas. No caso indiano, o sentido geral é comparável, mas concretiza-se de
modo diferente: o setor bancário ainda é dominantemente nacional e pú-
blico; a penetração multinacional ambiciona principalmente o mercado
interno; as commodities não constituem o cerne das exportações do país.
No plano nanceiro, embora o setor público seja dominante e ain-
da comandasse 75% dos ativos bancários em 2004, ano em que o partido
do Congresso retornou ao poder, as reformas foram sucientes para sujei-
tar as nanças públicas à dimica do capital especulativo internacional.
Assim como ocorreu no Brasil, a liberalização resultou em acentuados
décits comerciais, e a expectativa de que eles seriam provisórios, não
se cumpriu. Nos anos iniciais da abertura, o rombo foi mitigado pelas
remessas dos indianos não residentes, que superaram todas as demais
formas de inuxo de capital somadas. Porém, entre 2001-2 e 2011-12, o
décit comercial saltou de U$ 6 bilhões para U$ 185 bilhões em 2011-12
(BOUILLOT, 2017).
Mais além das remessas dos expatriados, a Índia depende da atra-
ção de investimento estrangeiro para compensar os décits comerciais
2. Neoliberalismo entendido como uma
mudança nas relações sociais em um
contexto de subordinação dos setores
produtivos aos setores financeiros, por
meio de políticas que minam as condi-
ções de trabalho, participação política
e segurança social dos trabalhadores
visando restituir taxas de lucro (Panitch;
Gindin, 2006). O neoliberalismo também
pode ser enfocado como uma visão de
mundo totalizadora, que estende a ra-
cionalidade mercantil a todas as esferas
da existência, afirmando a concorrência
como valor fundante das sociabilidade
(Dardot; Laval: 2010).
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Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
crescentes. Assim como no Brasil, a conjunção entre a disciplina ma-
croeconômica neoliberal e altas taxas de juros atrai, sobretudo, capital
especulativo. Os investimentos greeneld são minoritários e a expectati-
va de dinamização da exportação industrial, frustrou-se. Apenas o setor
farmacêutico e de serviços tem mostrado competitividade internacional
e a participação das multinacionais nas exportações é inferior a 10% -
enquanto na China, referência emulada entre setores burgueses no país,
respondiam por 52% (Bardhan: 2010; Mohanty: 2018). A maior parte do
investimento estrangeiro direto está voltado a aquisições e fusões, orien-
tadas ao mercado interno indiano. No conjunto, a economia indiana está
cada vez mais vulnerável à especulação nanceira, e portanto, mais sen-
sível aos critérios disciplinadores das agências que mensuram o risco-país
(CHANDRASEKHAR, 2017; MENON, 2017).
Se a participação da indústria permaneceu estancada, a economia de
serviços cresceu signicativamente desde a liberalização. Entre 1997-2008,
serviços de tecnologia da informação (TI) passaram de 1,2% do PIB a 5,8%,
dos quais 80% é para exportação. Trata-se de uma indústria segmentada
entre um setor qualicado, mas que emprega poucos, e uma larga gama
de serviços terceirizados que requerem força de trabalho barata em língua
inglesa (Business process outsourcing), como a notória indústria do call-center
(ROYCHOWDHURI, 2016). Em 2013-14, estima-se que estes últimos cor-
responderam a 90% das exportações de serviços ligados a TI, enquanto o
desenvolvimento de produtos de software respondeu por apenas 6%.
Portanto, o êxito destas exportações está diretamente ligado ao
movimento em curso de terceirização das grandes transnacionais, vi-
sando cortar custos. Neste contexto, há quem compare a exportação de
serviços realizadas por “cyber-coolies” à emigração de trabalhadores não-
-qualicados (KURUVILLA, 2007). Crescendo em média anual superior a
9% desde o início do século, a atual contribuição indiana às exportações
globais de serviços está estimada em 3,35%, dos quais 45% são serviços de
software, o que constitui o dobro da sua participação mundial na expor-
tação de mercadorias (1,65%) (BOUILLOT, 2017).
Porém, apesar de constituir-se como um setor econômico urbano
assentado na exploração de mão-de-obra barata, há uma lacuna entre o
peso da indústria de serviços na economia indiana e a geração de traba-
lho que lhe corresponde: embora movimente mais da metade do PIB do
país, o setor emprega menos de 30% dos trabalhadores, 2/3 dos quais em
pequenos empreendimentos da economia informal. Apesar da expansão
dos negócios internacionais desde as reformas estruturais, somente 6%
da força de trabalho no país está no setor corporativo e quase 90% per-
manece fora do chamado setor organizado da economia, ou seja, tem
estatuto informal (SUNDAR, 2017; BARDHAN, 2010). O ritmo lento da
criação de emprego naquele que, em breve, será o país mais populoso do
mundo, é um problema grave, para o qual a expansão do setor de serviços
não oferece solão.
Na realidade, cerca de 2/3 da população indiana ainda vive no cam-
po e metade da força de trabalho dedica-se a atividades rurais. Desde a
independência, a segurança alimentar é uma preocupação social e política
incontornável, que inibe, em alguma medida, a expansão do agronegócio
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para exportação. Embora gêneros agrícolas respondam por 10% das expor-
tações, a economia do país não é movida pela exportação agrícola, ou de
commodities. Além de serviços, o país exporta joias e pedras preciosas, de-
rivados do petróleo, produtos farmacêuticos, têxteis e carros, entre outros.
Sob o neoliberalismo, numerosas políticas de segurança alimentar
e assistência social no meio rural foram reduzidas ou cortadas. A conjun-
ção entre liberalização das importações, cortes nos subsídios e em pro-
gramas de assistência rural, redução dos serviços e empregos estatais no
campo, condenou quem vive da terra ao desamparo. Expressão extrema
desta realidade é o alto índice de suicídios registrados: 12 mil trabalhado-
res rurais suicidados por ano desde 1995, acumulando em 2018 um total
estimado em 300.000 pessoas, segundo cálculos da Universidade de Ber-
keley (Delacroix, 2018).
A política do INC
Os impactos sociais das reformas neoliberais na cidade e no campo,
em um momento em que os referenciais historicamente associados ao par-
tido do Congresso estavam em xeque, acelerou o m da dominação desta
organização na política indiana. Entretanto, se no Brasil o desgaste das
políticas neoliberais condenou eleitoralmente os tucanos, abrindo espaço
para a ascensão do Partido dos Trabalhadores, na Índia a novidade política
pendeu para a direita. A degradação social e moral da política congressista
nos marcos do neoliberalismo, facilitou a comunalização da política - uma
politização da religião de orientação discriminatória, frequentemente em-
bebida em uma retórica e em práticas violentas (CHANDRA, 2002).
Com a chegada ao poder em 1998 do Bharatiya Janata Party (BJP),
o “Partido do Povo Indiano", pela primeira vez um partido que se nutre
da política comunal e do nacionalismo hindu (hindutva), comandou o país
durante um mandato completo (1998-2004), elevando o grau de sensibili-
dade da questão religiosa no país. Ao mesmo tempo, deslocou-se para um
segundo plano a dimensão econômica da política nacional. Entre 1991 e
2004, a racionalidade do ajuste estrutural deu o tom das reformas avan-
çadas, sob ambos partidos. Desde então, a clivagem entre o partido do
Congresso e o BJP se coloca nas dimensões social e cultural da política,
enquanto a ordem neoliberal permanece inquestionada.
Quando voltou ao comando do país em 2004, com apoio da esquer-
da, o partido do Congresso pretendeu reparar parcialmente a situação
que corroborou para criar, no campo como na cidade. Desde a campanha
eleitoral o partido ensaiou um mea-culpa, propondo uma “reforma com
rosto humano”, com a pretensão de conciliar as reformas econômicas,
cujos fundamentos seguiram intocados, com reformas sociais.
No campo, o National Rural Employment Guarantee Act (2005) ofe-
receu proteção elementar contra o desemprego rural, assegurando ao
menos 100 dias de trabalho por ano aos lavradores, enquanto a National
Rural Health Mission (Missão Nacional de Saúde Rural) somou-se a ações
para ampliar a infraestrutura rural (Bharat Nirman). Nos anos seguintes,
a cobertura do sistema previdenciário foi ampliada, programas de auxílio
nanceiro para viúvas e decientes vivendo abaixo da linha da pobreza
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Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
foram implementados (Indira Gandhi National Widow/ Disability Pension
Scheme), assim como um programa de alimentação escolar (Midday meal
scheme), entre outras iniciativas de cunho assistencialista. De modo aná-
logo ao que observou-se no Brasil, no contexto da extensão de programas
de transferência de renda condicionada como o Bolsa Família, enquanto
alguns enxergam uma abordagem mais universalista no provimento de
assistência social, ativistas criticam um deslizamento rumo a políticas fo-
calizadas de combate à porbreza em lugar da defesa de direitos dos traba-
lhadores (NIELSEN, 2017).
Na Índia como no Brasil, esta política social foi facilitada por altas
taxas de crescimento, em média 9% entre 2004 e 2008 no caso asiático,
aançando a reeleição do partido do Congresso em 2008. No entanto, o
crescimento econômico também desdobrou-se em conitos sociais. Mas-
sivos uxos de capital estrangeiro, que em 2007 equivaleram a 9,2% do
PIB, intensicaram a especulação nanceira, mas também imobilria.
Entre os motores do crescimento econômico esteve a construção civil,
cuja expansão afetou a cidade e o campo, envolvendo empreendimentos
residenciais e comerciais, obras de infraestrutura e a criação de zonas
econômicas especiais (SEZ), provocando conitos em todos os casos. Al-
gumas destas lutas tem sido exitosas em nível local, como a resistência
à SEZ de Nadigram em West Bengal, então governada pelos comunis-
tas, ou as conhecidas batalhas contra fábricas de Coca-Cola que amea-
çam o suprimento de água da economia camponesa (PRASHAD, 2015;
INDIA RESOURCE CENTER, 2018). No entanto, de forma aloga ao
caso brasileiro, onde houve resistência a obras associadas ao Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), como a hidroelétrica de Belo Monte,
em ambos países esta resistência não coagulou um projeto alternativo de
ressonância nacional.
O empenho do partido do Congresso em avançar políticas sociais
continuou no segundo mandato, culminando com a implementação do
Right of Food Act em 2013. Este programa, que visa prover gêneros alimen-
tares básicos a preços subsidiados para 2/3 da população, provocou uma
reação indignada da classe dominante. Por outro lado, sucessivos escân-
dalos de corrupção abalaram o prestígio do partido entre a classe média,
enquanto os limites para a criação de emprego, a despeito do crescimento
econômico, corroeram a adesão popular ao partido.
Embora supercialmente haja similaridades entre os motivos de
desgaste do INC e aqueles que afetaram o PT, como os escândalos de
corrupção, há notáveis diferenças. Em contraste com o Brasil, não houve
na Índia um levante popular comparável às jornadas de junho de 2013 e o
partido foi derrotado nas urnas em 2014 ano em que o PT venceu, ainda
que por escassa margem. Este contraste parece ainda mais surpreendente
porque, ao contrário do Brasil, a economia indiana continuava crescendo
em 2014, quando perdeu as eleições.
Entendo que os motivos desta derrota remetem ao longo processo
de corrosão política do INC, que remontam aos anos 1970, quando foi
derrotado nas urnas pela primeira vez, mas que ganhou novos contornos
quando o partido assumiu a agenda do ajuste estrutural, contradizendo
o referencial histórico da organização. O outro lado deste processo foi o
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fortalecimento da política comunal, que a partir dos anos 1990 ascendeu a
um lugar dominante na política indiana, em um contexto em que o secu-
larismo foi percebido como uma dimensão do projeto nacional do partido
do Congresso, que falhou (CHANDRASEKHAR, 2017).
Entretanto, apesar da tendência à abertura econômica prevalente
desde os anos 1990, o alcance das reformas ainda é limitado na Índia, em
comparação com outros países. De modo geral, alises sob o prisma
liberal avaliam que o mercado indiano é relativamente fechado, reser-
vando muitos produtos para pequenas empresas locais. Considera-se a
legislação laboral rigorosa em comparação com a China, por exemplo,
dicultando demissões e contratos temporios. A burocracia estatal é
vista como um empecilho ao investimento externo, enquanto regulações
dicultam a aquisição de terra para propósitos industriais, sujeitas ainda
ao enfrentamento com agricultores e sindicatos. Por m, a infraestrutura
é precária e o subcontinente indiano está entre as regiões menos integra-
das do planeta, seja a leste em direção do sudeste asiático, a oeste rumo
ao Oriente Médio ou ao norte onde estão a China e a Rússia. A taxa de co-
mércio intraregional é a mais baixa do mundo, respondendo por menos
de 5% das trocas. Frente a estes reveses, a dimensão do mercado interno é
visto como um dos únicos trunfos do país no contexto asiático (WORLD
BANK, 2015; GUPTA, 2017).
É sobre este pano de fundo que analisaremos, a seguir, as estratégias
perseguidas pelo Estado indiano no entorno regional, visando potenciar
as oportunidades de realização mercantil no contexto da globalização.
Política externa
A tentativa nehruviana de desenvolvimento econômico não-colo-
nial nos marcos do capitalismo correspondeu, no plano das relações in-
ternacionais, ao ensejo de equidistância em relação aos blocos da Guerra
Fria. A Índia liderada por Nehru foi o principal motor político e ideológi-
co da conferência Afro-Asiática de Bandung em 1955, que adotou e desen-
volveu os “cinco princípios da coexistência pacíca” (Pancha Sila) formu-
lados pelo líder indiano. Este encontro se desdobrou no Movimento dos
Países Não-Alinhados, referência fundamental das lutas anti-coloniais no
Terceiro Mundo sob a Guerra Fria, no qual a Índia teve sempre um pa-
pel destacado. Esta política não tem paralelo com o Brasil, à exceção da
efêmera Política Externa Independente ensaiada no contexto anterior ao
golpe militar de 1964, ano em que morreu Nehru.
A despeito de paradoxos e contradições, o horizonte da política ex-
terna indiana esteve referido ao não-alinhamento até o nal da Guerra
Fria, quando a inexão neoliberal correspondeu a um progressivo ali-
nhamento aos Estados Unidos. Esta reorientação incidiu no modo como
o país enquadra as relações com o entorno asiático. O paradigma do não-
-alinhamento angulava a solidariedade asiática em escala ampla, tanto do
ponto de vista geogco como civilizatório, concebendo a aproximação
entre os países do sul nos marcos de uma estratégia de superação do le-
gado colonial, referido aos valores do Pancha Sila. A partir dos anos 1990,
a abordagem prevalente distanciou-se desta orientação contra-hegemô-
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Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
nica, pautando-se por um enfoque resignado, ditado de modo crescente
pelas exigências mercantis inerentes à globalização. A ambição de um ho-
rizonte civilizatório alternativo diante da Guerra Fria cedeu lugar a uma
racionalidade pragmática que, aceitando a liderança dos Estados Unidos e
a globalização, projeta estratégias que favoreçam um lugar menos peri-
rico para o país na ordem mundial.
Esta perspectiva modicou a dimica com os países vizinhos, e
com a Ásia de maneira geral. A relação com os países fronteiriços ga-
nhou maior imporncia, segundo uma racionalidade que concebe a li-
derança regional como um ativo político na ordem mundial, derivando
recentemente na política de neighbors rst (vizinhos em primeiro lugar).
Entretanto, esta liderança é dicultada pelo histórico de dissenso legado
pela partilha, e as clivagens religiosas que a acompanharam. No tocante
ao sudeste asiático, a chamada Look East policy (olhar para o oriente) que
circula no país desde os anos 1990, expressa o interesse indiano em vin-
cular-se ao dinamismo econômico que emana do oriente. Em ambos ca-
sos, seja no entorno imediato, seja no sudeste asiático, a Índia envolveu-se
em diversas iniciativas políticas e econômicas de integração regional. Em
ambos casos, a projeção do poder chinês inuencia cálculos e decisões,
enquanto na relação com a África, o espírito de Bandung cedeu lugar à
expansão mercantil.
Em 1985, mesmo ano em que foi assinada a Declaração de Foz
do Iguaçu por Brasil e Argentina, que está na origem do Mercosul, foi
criada a South Asian Association for Regional Cooperation (SAARC), à qual
aderiram todos países do subcontinente indiano e adjacências: Afeganis-
tão, Bangladesh, Butão, Índia, Nepal, Maldivas, Paquistão e Sri Lanka.
Embora na sua origem a organização acenasse com propósitos políticos,
visando superar o trauma da partilha, também evoluiu na direção da
integração comercial, consumada em 2006 como South-Asian Free-Trade
Area (SAFTA). Entretanto, enquanto no caso sul-americano a evolução
política nos anos subsequentes aproximou Brasil e Argentina, sobretudo
sob as presidências de Lula em Kirchner a partir de 2003, as tensões entre
Paquistão e Índia persistiram, desaguando em mais um conito militar
entre os países em 1999, a Guerra de Kargil na região de Caxemira. O
quadro foi agravado pelo ascenso do nacionalismo hindu, que coman-
dava o país naquele momento, difundindo uma atitude hostil à religião
muçulmana prevalente no Paquistão.
A desavença entre Índia e Paquistão sempre entravou avanços con-
cretos da SAARC, o que levou o primeiro país a se engajar em iniciati-
vas alternativas. Em 1997, constituiu-se o embrião da organização que, a
partir de 2004 foi conhecida como Bay of Bengal Initiative for Multi-Sectoral
Technical and Economic Cooperation (BIMSTEC). Originalmente um arran-
jo relativamente frouxo, a composição da organização é reveladora da
orientação da política externa indiana. Integrada por países do sul e do
sudeste asiático (Bangladesh, Índia, Myanmar, Sri Lanka, Taindia, Bhu-
tão e Nepal), BIMSTEC foi concebida como uma espécie de ponte entre
SAARC e Association of South East Asean Nations (ASEAN) (ADB, 2016).
Neste quadro, BIMSTEC resulta da convergência entre a orienta-
ção indiana de "olhar para o oriente” (Look East) com a política de “olhar
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.41 - 62
para o ocidente” (Look West) que emanava da Taindia, por motivações
similares (BONU, 2012; DATTA, 2017). A iniciativa ofereceu à Índia uma
porta de entrada à ASEAN, da qual participam Myanmar e Tailândia.
Por outro lado, a organização reúne países da SAARC, mas sem a pre-
sença do Paquistão, considerada incômoda para os interesses indianos.
Em suma, BIMSTEC expressa duas tendências fundamentais da política
externa indiana: a intenção de consolidar a liderança entre os países do
entorno imediato, mesmo que isso implique em excluir o Paquistão; por
outro lado, o empenho econômico em intensicar a integração regional
na direção oriental, com vistas a potenciar nexos econômicos nos marcos
da globalização (YAHYA, 2003; PALIT, 2016).
Neste mesmo diapasão, foi lançada em 2000 no Laos a Mekong-Gan-
ga Cooperation (MGC), iniciativa reunindo a Índia e cinco países da ASEAN
(Cambodja, Laos, Myanmar, Taindia e Vietnã), em torno de uma agen-
da turismo, cultura, educação e transporte. Além do ensejo de maior co-
nectividade, sugerido pela evocação de dois grandes rios que singram o
continente, a iniciativa apoia-se em nexos históricos que vinculam a Índia
com esta região, remontando ao menos à propagação do budismo. O sítio
arqueogico de Angkor Wat por exemplo, principal atração turística do
Cambodja, foi inicialmente concebido como um templo hindu, erguido
pelo império Khmer. Em outras palavras, há relevantes similaridades cul-
turais que podem favorecer a aproximação com a Índia, em termos do
que alguns analistas se referem como soft power (YHOME, 2017).
É possível traçar um paralelo com a situação brasileira na América
do Sul, onde apesar da diferença de idioma, similaridades históricas e cul-
turais favorecem a aproximação. Porém, se no caso sul-americano o cál-
culo geopolítico é motivado pela inuência histórica dos Estados Unidos,
na Ásia contemponea o móvel fundamental é o receio da projeção chi-
nesa, em um contexto em que todos os países da região tem algum nível
de apreensão em relação a este país, em função de conitos passados ou
tensões presentes. Porém, diferentemente dos tempos do não-alinhamen-
to, esta aproximação pode convergir com interesses dos Estados Unidos:
em um momento em que a presença paquistanesa na China se multiplica,
a Índia foi vista pela gestão Obama como um potencial pivô para isolar a
China na Ásia (KURUVILLA, 2017).
A proposta de integrar sul e sudeste asiático nos marcos da glo-
balização não era nova. Desde 1992 o Asian Development Bank (ADB)
secretariava a Greater Mekong Sub-region (GMS), que não tem a partici-
pação da Índia, mas inclui regiões da China relacionadas ao rio Mekong
(Verghese: 2001, 195). No início dos anos 2000, também o ADB respon-
deu às novas tendências que emanavam da Índia, e esteve à frente do
programa South Asia Subregional Economic Cooperation (SASEC) em 2001.
Trata-se de uma iniciativa reunindo países do sul e sudeste asiático em
torno de uma agenda de projetos de integração infraestrutural regional
comparável à Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-
-Americana (IIRSA), avançada neste mesmo momento pelo Banco Inte-
ramericano de Desenvolvimento (BID) na América do Sul. Também SA-
SEC propunha uma estratégia conjunta de integração regional, embora
no caso sul-americano, a escala da proposta seja maior. Segundo Prabir
51
Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
De, não se trata de coincidência, mas há muito intercâmbio entre o ADB
e o BID, que se reete na estratégia de atuação dos bancos. Chaturdevi é
ainda mais enfático, sugerindo que os bancos iniciaram os processos de
integração em ambos continentes (DE, 2017; CHATURDEVI, 2017).
No caso sul-americano, a IIRSA foi originalmente pensada como
a dimensão de infraestrutura de um projeto de integração regional re-
ferenciado ao regionalismo aberto, no contexto em que se discutia a im-
plementação da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA). A car-
teira de projetos da iniciativa foi desenhada pelo Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID), que retalhou o subcontinente em dez eixos
de integração e desenvolvimento, segundo uma racionalidade orientada
por corredores de exportação de matérias-primas. Em termos territoriais,
pretendia-se superar dois obstáculos "naturais" à integração subcontinen-
tal, os Andes e a Amazônia, potencializando os nexos entre a costa Atn-
tica (o Brasil) e o Pacíco, em um contexto de gravitação do dinamismo
da economia mundial para a Ásia.
No caso indiano, o imperativo de conectar o país com o sudeste
asiático subjacente a BIMSTEC e a SASEC responde ao desígnio de inte-
grar o país a cadeias globais de valor, potencializando o acesso a merca-
dos como o Japão e os Estados Unidos (TANEJA, 2017). Portanto, em am-
bas situações, a integração regional não emerge como um m em si, mas
como uma via para potencializar a conexão de Brasil e Índia aos circuitos
mais dimicos da economia global. Neste processo, em ambas situações
potencializaram-se nexos mercantis com os respectivos entornos regio-
nais, mas referidos a racionalidades diferentes.
No Brasil, as gestões presidenciais petistas pretenderam distanciar-
-se do regionalismo aberto propondo, em consonância com a reivindica-
ção de uma política econômica “neodesenvolvimentista”, um “regiona-
lismo desenvolvimentista”. Este regionalismo promoveria “a integração
física entre os interiores dos países, passo fundamental para a integração
de cadeias produtivas de fornecedores e produtores relacionados, obje-
tivando a formação de economias de escala e a própria integração das
sociedades sul-americanas” (DESIDERA NETO; TEIXEIRA, 2012, p. 32).
Neste contexto a ALCA naufragou, pois deparou-se com múltiplas resis-
tências no campo popular, mas também não obteve consenso entre as
classes dominantes na América Latina nem nos Estados Unidos.
Por outro lado, a IIRSA foi abraçada pelo projeto de integração re-
gional avançado pelo governo Lula. Com a constituição da União de Na-
ções Sul-Americanas (UNASUL) em 2008, a iniciativa foi incorporada ao
Conselho de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN) desta organi-
zação, consumando uma situação paradoxal: a iniciativa converteu-se no
esteio material de uma organização identicada com um "regionalismo
desenvolvimentista", que se propunha a inverter as premissas que orien-
taram a constituição original da própria IIRSA, sob a égide do "regiona-
lismo aberto". O argumento é que seria possível e desejável integrar o
arcabouço técnico da iniciativa, mas concedendo-lhe um sentido político
diferente nos marcos da liderança brasileira sob a égide da UNASUL.
Este paradoxo responde à racionalidade do projeto integracionista
brasileiro. O substrato econômico da política regional petista foi a estraté-
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gia de apoiar a internacionalização de grandes empresas de capital nacional
ou sediadas no país, entendidas como vetor do desenvolvimento capitalista
nacional: é a política das "campeãs nacionais". Este apoio se materializou
principalmente por meio de uma diplomacia empresarial, praticada pelo
Itamaraty, e pela política de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimen-
to Econômico e Social (BNDES). Beneciaram-se deste apoio setores con-
centrados e oligopolizados do capitalismo brasileiro, que frequentemente,
operam como uma extensão de negócios dominados por transnacionais,
notavelmente no campo da construção civil e da exportação priria, em
torno a produtos como soja, etanol, minérios, carne, petróleo e outros. A
justicativa para este foco é a avaliação de que são os setores em que o país
é mais competitivo internacionalmente (SANTOS, 2017).
No caso indiano, o retorno do partido do Congresso à presidência
em 2004 não se traduziu em uma estratégia diferenciada para o entorno
regional. Se a ideologia petista de uma política econômica “neodesenvolvi-
mentista” tem paralelo na proposta mais modesta de “reforma com rosto
humano”, a proposição de um “regionalismo desenvolvimentista” não tem
equivalência na política do INC. Na realidade, assim como ocorre no ter-
reno da economia, as tendências prevalentes na política externa desde a in-
exão liberal nos anos 1990 não foram contestadas, sequer no plano ideoló-
gico. Segundo Yhome, a principal novidade no início do século XXI é que a
projeção internacional chinesa se evidenciou, o que aguçou a necessidade
de respostas políticas e econômicas por parte do governo indiano (YHO-
ME, 2017). O sentido da resposta intensicou movimentos na direção do
livre-comércio, da conexão oriental e da liderança política regional.
O marco principal da abertura comercial multilateral foi o ingres-
so da Índia na Organização Mundial do Comércio em 1995, decisão que
explicitou o distanciamento em relação ao nacional-desenvolvimentista
nehruviano. A partir de 2004, sob a gestão do INC, acordos de livre-co-
mércio se multiplicaram, impulsionando intercâmbios comerciais. Em
2005 foi assinado um tratado de livre-comércio com Singapura, país que
acolhe uma signicativa dspora indiana. Entretanto, a expectativa de
que este acordo servisse como uma porta de entrada para ASEAN, não
se concretizou e em 2009, um tratado de livre-comércio com a própria
ASEAN foi assinado (CHANDA, 2017). Seguiram-se acordos com Japão,
Malásia e Coreia do Sul, que em 2017, estavam em diferentes estágios de
implementação. Negociações com Austlia, Nova Zelândia e Indonésia
também estavam em curso. Neste processo, as trocas entre a Índia e os
países ASEAN se multiplicaram por vinte em vinte anos, atingindo U$ 77
bilhões em 2014-5 (RIS, 2016, p. 31). No entorno imediato, a criação da SA-
FTA acordada em uma cúpula da SAARC em 2004, colocou a sub-região
na via do livre-comércio.
Porém, há quem indique que esta proliferação de tratados bilaterais
responde a um certo modismo, em lugar de constituir uma estratégia
ponderada (ARPITA MUKHERJEE, 2017). Indício da abertura do país,
entre 1990 e 2007 a taxa de troca internacional de bens e serviços na eco-
nomia indiana dobrou, passando de 17% a 31% do PIB, até alcançar 54%
em 2013 (BOUILLOT, 2016, p. 87). Em termos comerciais, desde o início
dos anos 2000 a Índia apresenta décit crescente com os países da ASEAN
53
Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
e com a China, uma vez que o aumento das importações não foi compen-
sado por exportações de manufaturas, ou de serviços. No primeiro caso,
a economia indiana apresenta obstáculos diversos para atrair a manufa-
tura transnacional, aos quais já nos referimos, entre a organização dos
trabalhadores e limitações de infraestrutura, enquanto poucos setores da
indústria nacional tem competitividade internacional. Já no setor de ser-
viços constatam-se barreiras não comerciais, como a questão do idioma,
que dicultam a expansão dos negócios indianos em países como o Japão
e a Coreia (CHANDA, 2017).
De todo modo, o desígnio de intensicar trocas exige enfrentar
a questão da conectividade infraestrutural na direção oriental, um de-
sao considerável que SASEC e BIMSTEC pretendem endereçar. Para
começar, a própria região nordeste da Índia evoluiu como uma espécie
de enclave, escassamente conectado com o conjunto do país e com seus
vizinhos. A conexão entre as fronteiras ocidental e oriental de Bangla-
desh, país rodeado pela Índia, é mais fácil por mar. Em relação a Myan-
mar, apenas uma estrada mal preservada conecta ambos países, apesar
de uma fronteira de 1643 quilômetros. No conjunto, o nordeste indiano
compreende territórios relativamente isolados e pouco integrados, onde a
presença do Estado é escassa, exceto no aspecto militar (RIS, 2011). O bai-
xo desenvolvimento econômico é ainda complicado em função da diver-
sidade étnica prevalente e das relações informais com os países vizinhos,
uma vez que o contrabando é uma atividade importante em toda a região
que se estende a leste da Índia.
Entretanto, o imperativo de conectar a Índia ao oriente para estrei-
tar vínculos com os mercados globais exige enfrentar a questão, pois se
as ligações marítimas são relativamente ecientes, por terra não o são.
Segundo Yhome, três projetos principais foram inicialmente concebi-
dos: uma rodovia trilateral conectando Índia, Myanmar e Taindia; o
corredor multimodal Kaladan envolvendo rotas marítimas e terrestres
para contornar Bangladesh, conectando o leste indiano aos estados do
nordeste; uma ferrovia Índia – Hanoi, que em 2017, ainda estava no pa-
pel. Seguiram-se outras iniciativas de integração infraestrutural, como o
corredor entre a Índia e o Mekong e a já mencionada carteira de projetos
associadas à SASEC (YHOME, 2017).
Em correspondência com os esforços de integração infraestrutural,
os uxos comerciais entre a Índia e os países CMLV (Cambodja, Mya-
nmar, Laos e Vietnã) decuplicou entre 2004 e 2013, saltando de U$ 1.1
bilhões para U$ 11.2 bilhões. Neste último ano, o investimento indiano
nestes países era estimado em U$ 40.9 milhões. Estas cifras, embora ex-
pressivas, empalidecem em comparação com os investimentos da ASEAN
nos países CMLV neste ano, que alcançaram U$ 3.5 bilhões, enquanto a
China sozinha investia cerca de U$ 2 bilhões (DIXIT, 2015).
Na realidade, conforme já observado, o interesse fundamental da
Índia não é estes mercados em si, mas as possibilidades de conexão com
cadeias globais de valor, uma vez que o setor mais competitivo das ex-
portações do país é serviços, destinados principalmente a corporações
transacionais que operam a partir dos países industrializados. De modo
alogo, a relação da Índia com os países limítrofes não é pautada central-
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mente por interesses econômicos, pois tratam-se de mercados pequenos
(PANDE, 2017). Ainda que negócios aconteçam, são questões geopolíti-
cas que ditam a dimica das relações da Índia com o entorno regional.
Deste ponto de vista, há diferenças importantes entre a política con-
gressista para o subcontinente indiano e a estratégia petista para a Améri-
ca do Sul, embora o entorno regional tivesse importância política central
em ambas estratégias de inserção global. Em linhas gerais, a racionali-
dade petista entendeu que a internacionalização de corporações brasilei-
ras serviria de alicerce material para projetar regionalmente a inuência
do país, modicando seu padrão de inserção internacional. Ou para usar
o jargão do meio diplomático, fazer do Brasil um global player. Foi nesta
perspectiva que se criou em 2008 a UNASUL, organização que reuniu to-
dos os países sul-americanos sem a presença dos Estados Unidos, mas que
diferentemente da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) pro-
posta por Venezuela e Cuba, não tinha pretensões contra-hegemônicas.
No caso brasileiro, a estratégia integracionista articulava a am-
pliação de frentes de negócio ao protagonismo político do país. Os vizi-
nhos sul-americanos demostraram duas motivações fundamentais para
se acercar. Por um lado, houve aqueles que enxergaram a oportunidade
de consolidar um campo político alternativo à inuência estadunidense,
motivação subjacente aos países sul-americanos que integram a ALBA,
iniciativa potencialmente mais radical que foi neutralizada, na prática,
pela conduta brasileira. Por outro lado, houve países que zeram negó-
cios com o Brasil como com qualquer país, como é o caso do Peru. Sinto-
maticamente, Venezuela e Peru são os dois países em que a Odebrecht,
corporação que simboliza a expansão apoiada pelas gestões petistas, mo-
vimentou maior volume de negócios (CHAN, 2015).
No contexto indiano, não se constata uma articulação comparável
entre expansão mercantil e projeção política. Diversos fatores que ex-
plicam esta diferença. No plano econômico, não houve uma política de
apoio à expansão de negócios indianos na região, o que pode ser atribuído
a fatores comerciais, como os diminutos mercados vizinhos, a natureza
das exportações indianas, ou recursos insucientes à disposição do Exim
Bank indiano. Porém, considerações de natureza política também tem
um papel relevante.
De modo análogo ao que ocorre no sudeste asiático com a China,
os pequenos países do subcontinente indiano enxergam com apreensão a
projeção indiana. Este receio remete não apenas ao trauma da partilha e às
diversas guerras com o Paquistão, mas também às intervenções em Ban-
gladesh (1971, então Paquistão Oriental), Sri Lanka (1987) e ilhas Maldivas
(1988). De fato, no começo de 2018 aventava-se novamente a possibilidade
de intervenção da Índia em meio à crise política nas Maldivas (KAZMIN,
2018). Este legado histórico não tem paralelo na América do Sul.
Por outro lado, os investimentos chineses no subcontinente indiano
escalaram desde o lançamento da One Belt, One Road Initiative (BRI) em
2013. Trata-se de uma estratégia do governo chinês que evoca as antigas
rotas da seda, visando intensicar as conexões mercantis na direção da
Ásia Central e Europa (Silk Economic Belt Road), mas também na direção
sul, articulando-se a variadas rotas marítimas (Maritime Silk Road). Neste
55
Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
contexto, a China tem se apresentado como um parceiro disponível, em
circunstâncias em que a Índia não deseja, ou é incapaz de comparecer.
No Sri Lanka, os chineses nanciaram a construção do porto de
Hambantota no sul da ilha, que os indianos anteriormente recusaram,
considerando-o caro. No nal de 2017, menos de sete anos após a inau-
guração, o porto foi arrendado pelo governo cingalês aos chineses por 99
anos, diante da impossibilidade de pagar a dívida, integrando-se concre-
tamente à BRI (PURUSHOTHAMAN, 2017). No Nepal, o impacto dos
investimentos chineses é notável em estradas, hidroelétricas e ferrovias,
além do auxílio para a reconstrução do país após o terremoto de 2015.
Enquanto o investimento chinês era estimado em U$ 8.3 bilhões em 2017,
o compromisso indiano estava em U$ 317 milhões. Neste ano, os comu-
nistas venceram as eleições, prenunciando uma maior aproximação entre
o reino e a China. Em Bangladesh, onde as relações com a Índia tem
evoluído favoravelmente, o embaixador chinês anunciou investimentos
da ordem de U$ 10 bilhões em 2018, nos marcos da BRI. Mesmo a -
delidade do pequeno Butão, com quem a Índia cultiva “laços sagrados”
aançados pela dependência econômica (95% das exportações e 75% das
importações), tem sido cortejado por investimentos chineses. Enquanto
isso, Maldivas assinou o seu primeiro tratado de livre-comércio no nal
de 2017, justamente com a China.
Vista por este prisma, a política Neighbors First adotada pelo Pri-
meiro-Ministro Narendra Modi desde 2014, emerge antes como uma
reação à corrosão da hegemonia indiana no seu entorno imediato, do
que como uma estratégia para armar o protagonismo do país na or-
dem mundial. A intenção de cultivar a delidade política dos vizinhos
é movida, sobretudo, por preocupações de segurança. Por outro lado,
estes países encontram na China oportunidades de negócios, mas tam-
bém um trunfo político a ser utilizado nas negociações com a Índia: a
chamada China card, ou seja, a possibilidade de manipular a aproxima-
ção com Beijing como forma de obter concessões de Delhi. Entretan-
to, é no Paquistão que a presença chinesa se arma de modo massivo.
Neste país, o braço da BRI é o chamado China-Pakistan Corridor, envol-
vendo investimentos em infraestrutura estimados em U$ 62 bilhões, o
que equivale a todo investimento estrangeiro direto no país desde 1970.
O corredor atravessa a região de Caxemira, motivo de disputa entre a
Índia e o Paquistão desde a partilha. O alcance geopolítico do corredor
não está evidente: há quem considere as ambições chinesas limitadas,
mas reações hostis ensaiadas por Trump podem tornar a aproximação
com a China uma “profecia auto-realizável.
Diante dos constrangimentos para projetar-se a oeste, na direção
de Paquistão e Afeganistão, ou para o norte, onde está a China, negócios
indianos têm se expandido na África em anos recentes. Apesar de dicul-
dades relacionadas à língua, à infraestrutura e à dimensão dos mercados,
empresas indianas encontram maior abertura neste continente, e setores
diversos como a indústria de serviços (IT e telecomunicações), minera-
ção, construção civil e a aquisição de terras (land grabbing), tem expan-
dido suas atividades (CHANDA, 2017; MAZUMDAR, 2017). O comércio
entre a Índia e a África quintuplicou entre 2005-06 e 2015-6, alcançando
56
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U$ 52 bilhões em março 2016-17. O investimento direto indiano na África
totalizava em 2012, U$ 14 bilhões, convertendo o país no sétimo maior
investidor estrangeiro no continente. Embora estes números sejam mo-
destos em relação à totalidade dos negócios indianos no ultramar, os in-
vestimentos têm aumentado desde então, e as movimentações políticas
também: a partir 2008, realiza-se periodicamente o Forum India-Africa.
A mais recente cúpula foi realizada em Nova Delhi em 2015 e reuniu 41
chefes de Estado africanos (DUBEY; BISWAS, 2016). De maneira geral, o
Estado tem apoiado esta expansão, sem no entanto, desenvolver uma es-
tratégia precisa (CHANDA, 2017). Nas palavras do presidente do Export
Import Bank of India, “A história indiana (na África) é uma história de
empreendedorismo privado” (KHARE, 2013).
Governo Modi
O que muda com a destituição de Dilma Roussef e a eleição de Na-
renda Modi? No caso brasileiro, a conjunção entre crise econômica e es-
ndalos de corrupção envolvendo diversas entre as “campeãs nacionais”,
já colocara em xeque o projeto regional petista, mesmo antes do golpe
em 2016. O governo Michel Temer desinteressa-se pelo protagonismo
sul-americano e pelas veleidades desenvolvimentistas das gestões petis-
tas, acenando com uma volta à agenda da abertura comercial multilate-
ral, associada no plano doméstico a uma agressiva ofensiva antipopular.
Vislumbra-se uma política externa de escassa iniciativa e planejamento,
conforme à orientação geral da globalização pregada por corporações e
organismos multilaterais.
No caso indiano, a eleição de Narendra Modi como primeiro-mi-
nistro em 2014 trouxe o nacionalismo hindu de volta ao comando do país.
Modi é um político rude mas carismático, adepto da espetacularização
da política e do ativismo em redes sociais, que converte motivos hindus
em objeto de marketing pessoal ou de negócios, projetando uma versão
modernizadora do hindutva. Adotando a consigna Make in India, Modi se
propôs a aumentar a fatia do PIB industrial de 16% para 25% em 2022,
criando 100 milhões de novos empregos. Sob seu comando, a economia
do país continuava crescendo em ritmo acelerado, tornando-se em 2017
a mais dimica do G-20, à frente da China, com uma taxa de cresci-
mento superior a 7%. Entretanto, as tendências já descritas perseveram:
embora o país fosse o nono destino mundial de investimento estrangeiro
direto em 2016, poucos eram os investimentos greeneld e menor ainda a
geração de empregos. Ao contrário, o setor manufatureiro registrava no
segundo semestre de 2017 a perda de 87 mil empregos, em um país que
precisa criar 1 milhão de empregos por mês para absorver o crescimento
vegetativo da força de trabalho (PINSON; STIEL, 2018).
No plano econômico, o sentido da gestão do BJP é abrir e desregu-
lamentar o mercado interno com vistas a atrair investimento estrangeiro,
ao mesmo tempo em que apoia a projeção de negócios indianos competi-
tivos internacionalmente. Modi recuperou a ideia das ZES, mas nos mar-
cos de uma estratégia que objetiva limitar geogracamente a oposição à
liberalização econômica entre industriais e trabalhadores. Em compara-
57
Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
ção com o Brasil, a economia indiana é relativamente fechada, e novos
setores tem sido abertos ao capital internacional, inclusive universidades,
hospitais, bancos e o comércio varejista (MENON, 2017).
Ao mesmo tempo, o governo constituiu um Project Development
Fund para apoiar indústrias indianas interessadas em instalar-se em polos
manufatureiros nos países CLMV. Esta política, contraditória com a ban-
deira Make in India, é justicada com o argumento de que a competitivi-
dade da indústria indiana aumentará, trazendo no longo prazo, práticas
e tecnologias mais avançadas para o país. Também a África tem atraído
indústrias indianas, como é o caso de uma fabricante de transformadores
que anunciou a instalação de uma unidade em Zâmbia em 2018, bene-
ciando-se do cobre local.
Neste contexto, a atuação do Exim Bank intensica-se: no início
de 2018, o banco levantou U$ 10 bilhões por meio de emissão de títulos
no mercado londrino, que serão destinados a projetos de exportação e
investimentos no exterior por meio de linhas de crédito de longo prazo
(MONEY CONTROL, 2018)
3
. Em particular, os negócios na África tem
se expandido. Já em 2015, o banco anunciara a criação da Kuzuza Project
Development Company (KPDC), que trabalha para viabilizar projetos de in-
fraestrutura com participação indiana na África, continente que, segundo
um estudo do Banco Mundial, requer investimentos da ordem de U$ 90
bilhões por ano (SRIVATS, 2015).
No bojo do crescente envolvimento mercantil com a África, foi lan-
çado em 2017 o Asia-Africa Growth Corridor (AAGC), um acordo de coope-
ração econômica entre os governos da Índia, Japão e os países da África.
Segundo o documento original, objetiva-se uma colaboração para desen-
volver a infraestrutura africana, inclusive digital, tendo em vistas poten-
cializar os nexos entre os países através do oceano Índico (RIS, 2017). Vi-
sualiza-se um corredor marítimo com ramicações sobre os territórios,
em uma evidente reação à One Belt, One Road Initiative chinesa, que prevê
um braço estendendo-se sobre o mesmo Oceano Índico. Unidos pelo te-
mor chinês, Índia e Japão concertam esforços para expandir negócios na
e com a África, visando também assegurar o suprimento de matérias-pri-
mas e alimentos que necessitam, ao mesmo tempo em que contrabalan-
çam a expansão chinesa na África e no Oceano Índico
4
.
Finalmente, o governo considera a aderir à Regional Comprehensi-
ve Economic Partnership (RCEP), constituindo uma área de livre-comér-
cio entre os dez países da ASEAN e o seis países com que ASEAN tem
acordos de livre-comércio (Austrália, China, Índia, Japão, Coreia do Sul e
Nova Zelândia). A RCEP é vislumbrada como uma alternativa à Trans-Pa-
cic Partnership (TPP), iniciativa que engloba diversos países americanos
e asiáticos, mas que exclui China e Índia. Entretanto, setores expressivos
do capitalismo indiano, que incluem industriais aglutinados na Confede-
ration of Indian Industry (CII), são contrários à proposta, principalmente
pelo receio da concorrência chinesa (CHATURDEVI, 2017). Para Arpi-
ta Mukherjee, a RCEP não oferece qualquer interesse econômico para
o país, mas este pesquisador adverte que, como o BJP não acredita em
planejamento nem em pesquisa, tende a tomar decisões cada vez menos
informadas (MUKHERJEE, 2017).
3. De modo similar ao que ocorreu
com o BNDES em 2003, quando uma
alteração estatutária permitiu uma linha
de crédito estimulando a internacio-
nalização das “campeãs nacionais”,
é permitido desde 2005 aos bancos
indianos apoiar aquisições operadas por
empresas nacionais no exterior.
4. Simultaneamente, os Estados Unidos
propõem um corredor econômico
Indo-Pacífico, visando conectar o sul da
Ásia ao sudeste asiático, integrando os
oceanos Índico e Pacífico (YHOME, K;
CHATURVEDY: 2017, p. 28).
58
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.41 - 62
Em síntese, o governo do BJP está comprometido a liquidar o que
resta do horizonte nehruviano associado à indústria nacional, à política
secular e ao não-alinhamento, propondo em seu lugar o livre-comércio, a
política comunal e o alinhamento aos Estados Unidos. No plano domés-
tico, embora goze de uma legitimidade que Temer não tem, cultiva uma
versão autoritária do nacionalismo hindu, mobilizando práticas frequen-
temente comparadas a uma modalidade de fascismo (MUKHERJEE,
2017; VANAIK, 2017).
Considerões finais
Embora comparáveis, há diferenças importantes entre a formação
histórica da Índia e do Brasil, assim como entre a constituição e atuação
política do INC e do PT, que incidem no contraste entre as políticas regio-
nais praticadas por estes governos no início do século XXI.
No Brasil, o Partido dos Trabalhadores alcançou a presidência pela
primeira vez em 2003, despertando expectativas de mudança despropor-
cionais à política que esposara. A pretensão de superar o neoliberalismo
articulando continuidade macroeconômica a políticas assistenciais, teve
expressão ideológica no discurso neodesenvolvimentista, que no plano
regional, correspondeu à intenção de convergir a internacionalização de
negócios brasileiros com certa soberania regional: o regionalismo desen-
volvimentista.
No caso indiano, o INC retornou ao poder em 2004 após ter co-
mandado a inexão de sentido neoliberal nos anos 1990, afastando-se do
legado associado a indústria nacional e ao não-alinhamento. Navegando
em um horizonte civilizatório rebaixado, em que a comunalização da
política ofuscou o debate sobre os constrangimentos à mudança, a prática
congressista ambicionou conciliar a agenda do ajuste estrutural com pro-
gramas de sensibilidade social, sem reivindicar mudanças profundas na
política doméstica ou internacional: a reforma com rosto humano.
No caso brasileiro, desenhou-se uma estratégia para a América do
Sul, que articulou expansão mercantil e protagonismo político. Esta es-
tratégia foi possível porque havia negócios brasileiros interessados em
mercados sul-americanos e vice-versa, enquanto a liderança política do
país foi de modo geral, bem-vinda, e as preocupações concernentes a um
subimperialismo brasileiro permaneceram relativamente marginais
5
. No
caso indiano, observa-se uma reação à projeção chinesa, que em lugar de
resultar em uma estratégia especíca, acentuou tendências já prevalentes
na direção da abertura comercial, da integração com o oriente e da busca
de liderança subcontinental. Negócios indianos estavam menos interessa-
dos nos diminutos mercados vizinhos do que na conexão com o sudeste
asiático, em direção a Japão, Estados Unidos e China, enquanto o históri-
co de tensões regionais diculta a liderança política do país.
Estas especicidades incidiram na forma como se concretizou a
integração política e a conectividade infraestrutural. Em ambos casos,
iniciativas originárias dos anos 1980 (Mercosul e SAARC), somaram-se a
outras, de diferente escopo e natureza. Na Índia, a difícil relação com o
Paquistão, somada ao imperativo da conexão oriental resultou em BIMS-
5. Sobre a noção de um sub-imperialis-
mo brasileiro sob as gestões petistas
consultar: Luce, 2007; Fontes, 2012.
59
Fabio Luis Barbosa dos Santos Economia políca da integração regional
TEC, concebida como uma ponte entre SAARC (sem Paquistão ou Afe-
ganistão) e ASEAN. A articulação regional avançou uma agenda expli-
citamente mercantil, em que a conectividade estrutural é central, como
demonstra a superposição entre BIMSTEC e SASEC, secretariada pela
ADB. Ao mesmo tempo, tratados de livre-comércio foram assinados, au-
mentando a taxa de trocas da economia indiana e os décits comerciais
do país, enquanto negócios indianos se intensicam na África. As expor-
tações de manufaturas ou serviços não compensaram o crescimento das
importações e apesar do crescimento econômico registrado, a criação de
empregos estancou.
Na América do Sul, a constituição da UNASUL colocou em pri-
meiro plano a dimensão política da integração subcontinental, embora
o alcance de uma iniciativa que congrega governos díspares, como eram
em seu momento original o venezuelano e o colombiano (2009), fosse
necessariamente limitado. Ao mesmo tempo, UNASUL promoveu por
meio da IIRSA a agenda da conectividade infraestrutural dos organismos
multilaterais, secretariada no subcontinente pelo BID. Porém, não hou-
ve coesão estratégica no plano econômico. Desde o fracasso da ALCA,
tratados de livre-comércio não estiveram entre as prioridades brasileiras
nem do Mercosul, enquanto Chile, Colômbia e Peru pautaram-se pela
abertura multilateral. Houve certa sinergia entre a intensicação de ne-
gócios brasileiros na região e a projeção internacional do país, que no en-
tanto, foi corroída pela conjunção entre escândalos de corrupção e crise
econômica. Finalmente, se na América do Sul a UNASUL insinuou uma
alternativa a histórica inuência dos Estados Unidos, no subcontinente
asiático a projão chinesa valorizou a Índia aos olhos da potência hege-
mônica, ao mesmo tempo em que motivou a aproximação entre os países
da região. A China tem oferecido investimentos e negócios na Ásia e na
África, mas junto com eles também difunde-se um receio compartilhado,
que acerca a Índia de parceiros improváveis, como o Japão.
Em suma, explicita-se nos anos 1980 que Brasil e Índia abdicam
do horizonte nacional-desenvolvimentista, aderindo em ritmo diferente
à agenda do ajuste estrutural que caracteriza a ordem neoliberal. Neste
processo, a constituição de burguesias nacionais, cujos negócios estariam
umbilicalmente vinculados ao espaço econômico nacional, cedeu passo
ao protagonismo de setores internacionalizados das burguesias locais,
apontando para horizontes de acumulação transnacionais.
Nesta perspectiva, a economia política petista pretendeu apoiar-se
no entorno regional como espaço privilegiado de acumulação de capital,
visando projetar negócios de escopo global, enquanto o partido do Con-
gresso ambicionou conectar negócios indianos a cadeias globais de valor,
via sudeste asiático. Em ambos casos, as vantagens competitivas interna-
cionais residem na exploração do trabalho barato e de recursos naturais.
Enquanto as “campeãs nacionais” brasileiras dedicam-se à produção de
matérias-primas e à construção civil, a exportação de serviços indiana
benecia-se do movimento de terceirização no mundo corporativo em
escala mundial, reduzindo custos por meio da precarização do trabalho.
Portanto, enfocados em perspectiva totalizante, Brasil e Índia ins-
crevem-se em uma divisão internacional do trabalho que apoia-se na de-
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.41 - 62
gradação do trabalho e na devastação ambiental, para acelerar e intensi-
car a circulação e acumulação de capital em escala global. Subordinados a
este movimento de valorização do valor, a conectividade infraestrutural,
a liberalização comercial e a formação de blocos regionais, entendidas
como dimensões da globalização, autonomizam-se em relação às na-
lidades elementares do desenvolvimento econômico, que remetem ao
bem-estar da população e ao equilíbrio ambiental. Os governos petistas
pretenderam negociar de modo mais favorável os termos desta partici-
pação, modulando a liberalização comercial e a integração regional, mas
sem questionar os marcos globais da inserção subordinada, assim como
o partido do Congresso pretendeu dosar o alcance da abertura, mas sem
problematizar o seu sentido. Porém, ao aceitar como inexoráveis os ter-
mos da globalização, a articulação estrutural entre dependência e desi-
gualdade social não foi desaada.
Na atualidade, a eleição de Modi ameaça o que resta do horizonte
nehruviano, enquanto a presidência de Temer condena o neodesenvolvi-
mentismo petista ao passado, ou à prisão. Reforça-se a lógica segundo a
qual a conectividade infraestrutural, a formação de blocos regionais e os
tratados de livre-comércio são perseguidos como ns em si, descolados
dos propósitos humanistas e ecológicos elementares do desenvolvimento
econômico. A globalização impõe-se como um fetiche, oferecendo como
horizonte civilizatório nada além da racionalidade autoreferida do capital.
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Entrevistas citadas, entre os dias 8 e 21 de Agosto de 2017, em Bangalore e Nova Delhi:
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CHANDRASEKHAR, C. P.. Economista, School of Social Sciences (JNU)
CHATURDEVI, Sachin. Diretor Geral do Research and Information System for Developing
Countries (RIS)
62
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.41 - 62
DE, Prabir. Research and Information System for Developing Countries (RIS)
GUPTA, Pralok. Centre for World Trade Organization (WTO) Studies
KURUVILLA, Benny. Transnational Institute
MAZUMDAR, Surajit. Centre for Economic Studies and Planning (JNU);
MENON, Gayatri. Socióloga e professora na Azim Premji University (APU)
MUKHERJEE, Adithia. Historiador e professor na Jawaharlal Nehru University (JNU);
MUKHERJEE, Arpita. International Growth Center (ICRIER)
NIELSEN, Alf. Sociólogo especializado em Índia.
PURUSHOTHAMAN, Chithra. Pesquisadora do Institute for Defense Studies and Analyses
RoyChowdhuri, Supriya. Institute for Social and Economic Change.
SUNDAR, Aparna Sundar. Socióloga e professora na Azim Premji University (APU)
TANEJA, Nisha. Indian Council for Research On International Economic Relations.
VANAIK, Achin. University of Delhi.
YHOME, K. Observer Research Foundation (ORF)
63
Representação política de mulheres:
um estudo sobre a incorporação da
agenda de gênero no âmbito legislativo
do Equador (2009-2017)
Women’s political representation: a study on the
incorporation of the gender agenda in Ecuador’s
legislative power (2009-2017)
Recebido em: 30 de janeiro de 2018
Aprovado em: 08 de julho de 2018
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2019v7.n1.p63
Bárbara Lopes Campos
1
R
Nosso trabalho consiste em um estudo de caso exploratório sobre a relação
entre a representação política de mulheres e a incorporação da agenda de gênero
no Equador. Temos por objetivo analisar como a representação descritiva de
mulheres no poder legislativo equatoriano inuencia a representação substantiva
de mulheres, em termos da produção de políticas públicas voltadas para questões
de gênero e de direitos das mulheres. O marco teórico do trabalho é embasado
em perspectivas feministas, especialmente de autoras de Relações Internacionais.
Realizamos um estudo de caso exploratório sobre a representação de mulheres na
Assembleia Nacional da República do Equador, analisando: 1) os projetos de lei
propostos voltados para a temática de gênero; 2) e a atuação das deputadas eleitas
no contexto de pós-implementação das políticas de cotas legislativas. Entendemos
que a representação descritiva de mulheres inuenciou a representação substan-
tiva de mulheres no Equador, uma vez que a presença e a atuação das deputadas,
juntamente com os projetos de lei aprovados, contribuem para o processo de
despatriarcalização e de transformação do sistema hegemônico masculino, no
sentido da promoção da igualdade entre homens e mulheres na sociedade.
Palavras-chave: Gênero. Representação de Mulheres. Equador. Agenda de
Gênero. Despatriarcalização.
A
Our paper consists of an exploratory case study on the relationship between
women`s political representation and the incorporation of the gender agenda
in Ecuador. We aim to analyze how the descriptive representation of women
in the Ecuadorian legislative power inuences the substantive representation
of women in terms of public policies focused on gender issues and women's
rights. The theoretical framework is based on feminist perspectives of
International Relations. We carried out an exploratory case study on women`s
representation in the National Assembly of the Republic of Ecuador analyzing:
1) proposed bills focused on gender issues; 2) the performance of female
1. Doutoranda em Ciência Política (DCP)
pela Universidade Federal de Minas Ge-
rais (UFMG). Mestre em Relações Inter-
nacionais pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Bacharela em Relações Internacionais
pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC Minas). Belo
Horizonte/Brasil. ORCID: 0000-0002-
6192-7825.
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
elected representatives in the context of the post-implementation of legislative
quota policies. We understand that the descriptive representation of women
has inuenced the substantive representation of women in Ecuador since the
presence of female deputies together with approved bills contributed to the
process of depatriarchalization and transformation of the masculine hegemonic
system promoting equality between men and women in society.
Keywords: Gender. Women’s Representation. Ecuador. Gender Agenda.
Depatriarchalization.
Introdução
Nosso trabalho se insere na temática da formação de uma agenda
internacional feminista na região latino-americana, e diz respeito à parti-
cipação de mulheres no processo de elaboração de políticas públicas vol-
tadas para questões de gênero em países da América Latina. O trabalho
consiste em um estudo sobre a inuência da representação de mulheres,
em processos decisórios da política nacional, na incorporação da agenda
de gênero no Equador. Especicamente, queremos descobrir como a re-
presentação descritiva de mulheres inuencia a representação substanti-
va de mulheres, no sentido de promover políticas públicas voltadas para
questões de gênero e direitos das mulheres no país.
Para tal, realizamos um estudo de caso exploratório sobre a repre-
sentação de mulheres na Assembleia Nacional da República do Equador,
com a intenção de entender a incorporação de questões de gênero na po-
lítica equatoriana, através dos projetos de lei propostos e da atuação das
deputadas eleitas, no contexto de pós-implementação de políticas de cotas
legislativas – pós 2009. O caso equatoriano aparece como chave para o
contexto aqui proposto, uma vez que o país possui algumas característi-
cas consideradas importantes para a realização da alise sobre a repre-
sentação descritiva e substantiva de mulheres. Em primeiro lugar, o país
passou por uma reformulação política em 2006, se inserindo no contexto
da onda rosa na América Latina e elaborando uma nova Constituição que
aponta para um caminho progressista em termos de políticas inclusivas.
Em segundo lugar, a política de cotas para mulheres implementada, ape-
sar de recente, atingiu resultados impressionantes, possibilitando que o
Equador alcançasse mais de 40% de representação feminina no parlamen-
to nacional em apenas 5 anos.
A partir de abordagens feministas em Relações Internacionais (RI),
se reconhece a importância de dar voz a iniciativas e projetos que ten-
tam transformar a situação de desigualdade entre homens e mulheres.
No âmbito da América Latina, os problemas relacionados à igualdade de
gênero são pautas que tem se tornado cada vez mais presentes nos deba-
tes políticos a nível nacional e internacional, sendo que muitos dos países
latino-americanos ocupam elevadas posições no ranking mundial de re-
presentatividade de mulheres na esfera política, tanto em relação à repre-
sentação legislativa quanto aos mecanismos institucionais de mulheres a
nível do poder executivo.
Acredita-se que os casos de sucesso de políticas de cotas para mu-
lheres em cargos legislativos dos países da América Latina representam
65
Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
uma condição essencial para o surgimento progressivo de projetos de lei
voltados para a promoção efetiva da igualdade de gênero. Tal interesse
parte do intuito de compreender até que ponto a abordagem feminista
que defende a inserção de mulheres na esfera política, como forma de
promover uma maior justiça de gênero na sociedade, se concretiza no
caso estudado. Assim, a indagação proposta remete às iniciativas de des-
patriarcalização do Estado, por meio da inserção de mulheres no proces-
so de decisão política e da incorporação da agenda de gênero.
O referente estudo tem como objetivo não apenas oferecer o resul-
tado desta pesquisa, mas, também, abrir espaço para outras indagações.
A proposta contribui para as Relações Internacionais ao estudar o fenô-
meno da quarta onda dos movimentos feministas na América Latina e a
maior representação de mulheres no Estado como formas de compreen-
der os impactos nas desigualdades políticas e sociais entre homens e mu-
lheres a nível sistêmico.
Entendemos que a representação descritiva de mulheres inuen-
ciou a representação substantiva de mulheres no Equador. Assim, consta-
tamos que a composição paritária de mulheres na Assembleia Nacional,
a incorporação das questões de gênero na política equatoriana por meio
dos projetos aprovados, e a atuação especíca das deputadas equatorianas
contribuem para a ressignicação dos espaços público e privado e para o
processo de despatriarcalização e de transformação do sistema hegemô-
nico masculino, no sentido da promoção da igualdade de gênero. Além
disso, apontamos para alguns limites observados ao nal do trabalho.
Perspectivas feministas em RI: compreendendo o sistema
patriarcal hegemônico
A hegemonia masculina pode ser denida através do conceito de
patriarcado, ou de um sistema patriarcal, que tem como base o andro-
centrismo e a heteronormatividade. Sylvia Walby (1991) identica o pa-
triarcado nas formas privada e pública, sendo que a primeira se refere à
esfera doméstica – espaço excludente onde o modo de expropriação da
produção é doméstica e individual; e a segunda que se refere à esfera
do Estado e do mercado de trabalho – espaço segregado onde o modo
de expropriação é coletivo. A ideologia de tal hegemonia de gênero, que
tem um caráter intrinsecamente político, ordena modos de pensar sobre
relações sociais e opera para legitimar relações especícas de poder (PE-
TERSON; RUNYAM, 2014).
O sistema patriarcal de crenças e suas instituições, portanto, orde-
nam a sociedade ao estabelecerem o homem como sendo a autoridade
em todas as esferas da vida social, seja como chefe de família, sacerdote
religioso, exercendo funções militares ou sendo o ser que ocupa o espaço
político. Nesse contexto estrutural temos, portanto, uma divisão dicotô-
mica e sexual do trabalho na qual os homens são responsáveis pelo tra-
balho produtivo e as mulheres pelo trabalho reprodutivo (PETERSON;
RUNYAM, 2014). Gayle Rubin (1975) demonstra, através de uma abor-
dagem marxista, como a heterossexualidade obrigatória está diretamen-
te relacionada com a divisão sexual do trabalho, que estabelece papeis e
66
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
funções diferenciadas para homens e mulheres na sociedade, de modo
que está associada com a opressão sofrida pelas mulheres. E, de modo se-
melhante, Nancy Hartsock (1985) enfatiza a imporncia de se pensar na
divisão sexual do trabalho, que aparece como naturalizada na sociedade,
enquanto forma de controle de um determinado “gênero que governa”
2
.
Entendemos, portanto, que a hegemonia masculina se perpetua no
ambiente internacional e se concretiza na existência de um sistema pa-
triarcal – sustentado pelas próprias estruturas e práticas do Estado, pelas
instituições da sociedade civil e pela ideologia do ideal de masculinidade –,
que dá legitimidade para a segregação e divisão entre os espaços público e
privado. Assim, entende-se que a modernidade marcou a emergência, não
só do capitalismo, mas da dimica social das relações de gênero dico-
micas e antagônicas, baseadas em dominação/subjugação do patriarcado
(SCHOLZ, 2014). Essa estrutura falologocêntrica, marcada por padrões de
dominação, provocou a criação de demandas por desconstruções, princi-
palmente pelo fato das mulheres serem as maiores vítimas da exacerbação
da divisão internacional do trabalho, uma vez que representam o verda-
deiro exército de reserva na conjuntura atual (SPIVAK, 2014).
Considerando que o trabalho em questão se dedica a políticas pú-
blicas elaboradas dentro de países latino-americanos, se torna relevante
utilizar o conceito de despatriarcalização do Estado, que diz respeito às
iniciativas de desconstrução das estruturas estabelecidas por realidades
e conjunturas patriarcais no âmbito da política. Ou seja, trata-se “[...] dos
esforços em curso de descolonização/ despatriarcalização do Estado, to-
mando como eixo central de alise a opressão de gênero ou de origem
patriarcal, na chave de um processo de democratização social e do pró-
prio Estado.” (MATOS; PARADIS, 2014, p. 59). Nesse sentido, entende-se
que o Estado patriarcal possui uma postura não democrática em termos
de discriminação e manipulação de gênero, sendo necessária a sua des-
construção. No contexto latino-americano, “[...] os movimentos feminis-
tas e de mulheres, especialmente a partir dos anos 90, foram também
travando a batalha da reconstrução de uma renovada consciência femi-
nista no país [Brasil] (e na região), e com ela foram ganhando um novo
contorno político.” (MATOS; PARADIS, 2014, p. 94).
No sentido ainda político da importância de tais movimentos, Wen-
dy Brown (1988) arma que o feminismo contemporâneo aparece como
uma abordagem que se direciona da margem para o centro, no sentido de
criticar construções sociais masculinas em diferentes questões, discursos
e instituições, para que seja possível, primeiro, interpretar e, posterior-
mente, transformar o mundo. Para Hannah Arendt (1994), os conceitos
de política e de poder remetem à capacidade humana de agir em comum
acordo, ou seja, a política corresponde à habilidade de agir em concerto,
se afastando de uma noção de política ligada ao exercício da dominação.
Esse entendimento da esfera política é essencial para compreendermos
nosso objeto de estudo, uma vez que a noção da possibilidade de atuação
do Estado no intuito de agir em concerto, desligada da ideia de domina-
ção e uso de violência, nos ajuda e entender uma série de conquistas no
sentido de defender os direitos das mulheres e a equidade de gênero por
parte do Estado.
2. Do inglês: “ruling gender” (HARTSO-
CK, 1985, p. 9).
67
Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
Incorporar questões de gênero às problemáticas e abordagens de Re-
lações Internacionais, signica assumir que a manutenção da estrutura do-
minante de gênero produz e reproduz dicotomias, hierarquizações, desi-
gualdades e injustiças, que possuem consequências de proporções globais.
Partindo desse pressuposto, as lentes feministas se tornam essenciais para
revelar e compreender como essas estruturas de dominação sustentam de-
sigualdades no âmbito global (PETERSON; RUNYAM, 2014). Resgatando
as ideias de Cynthia Enloe (2004, p.29), que argumenta que o sistema po-
lítico internacional é “habitado” por homens, podemos nos orientar pela
seguinte pergunta de partida: onde estão as mulheres? E não apenas em RI
no geral, mas também no mundo que RI se propõe a estudar.
Aqui, estudamos a relação entre a presença política de mulheres
e a incorporação da agenda de gênero no Equador. Podemos entender
agenda de gênero como:
[...] a agenda-síntese dos temas priorizados por diversos atores (e atrizes), tendo
como eixo as relações de gênero, não se confundindo com a agenda de nenhum
grupo particular. Reúne, assim, temas e propostas levantados por mulheres
participantes de movimentos populares e temas e propostas formulados pelo
feminismo, em suas diferentes vertentes
3
(FARAH, 2004, p. 53).
Consideramos, ainda, que a representação descritiva de mulheres
– no sentido da representação formal através de mecanismos eleitorais e
designação de mulheres para cargos públicos no governo –, está muitas
vezes relacionada à representação substantiva, através da incorporação
das demandas dos movimentos de mulheres no processo político (LO-
VENDUSKI, 2005).
A quarta onda dos movimentos feministas na América Latina: o
contexto político do Equador
A chamada quarta onda dos movimentos feministas, no contexto
latino-americano, tem relação com uma nova abordagem feminista que
destaca, entre outras questões, o foco no mainstreaming feminista, isto é, a
verticalização em relação ao Estado e suas instituições, ao mesmo tempo
em que se enfatizam ações transversais, interseccionais e intersetoriais
de despatriarcalização das instituições – onde se inclui instituições esta-
tais, sindicatos, partidos, parlamentos, empresas, entre outras (MATOS;
PARADIS, 2014, p. 96). No contexto dessa quarta onda de abordagem e
movimentos feministas, as mulheres se voltaram para dentro do Estado e
começam a ocupar, cada vez mais, esse espaço político, sendo essenciais
no processo de criação de organismos, mecanismos e estruturas que pos-
sibilitam ações despatriarcalizantes (MATOS; PARADIS, 2014).
Assim, se na esfera do poder legislativo podemos enfatizar a maior
representação de mulheres a partir da emergência de políticas de cotas na
região latino-americana (DAHLERUP, 2005); na esfera do poder executi-
vo podemos enfatizar os mecanismos institucionais de mulheres, através
dos quais as mulheres encontraram novas formas de representação e par-
ticipação política (MATOS; PARADIS, 2014). Vale ressaltar o que cou co-
nhecido como a “onda rosa” na América Latina, ou seja, o fato de que: “[a]
política latino-americana foi marcada na última década pela ascensão de
3. A agenda de gênero é um dos
conjuntos de temas que podem compor
o que John Kingdon chama de agenda
sistêmica ou agenda pública (KINGDON,
1995 apud FARAH, 2004, p. 53).
68
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
partidos, movimentos e lideranças de esquerda a governos nacionais. Tal
ascensão, por sua relativa sincronia e delimitação regional, constitui em
si mesma um processo sócio-político único [...]” (SILVA, 2010, p.1). Dessa
forma, no cenário da quarta onda feminista e da onda rosa latino-ameri-
cana, diversos mecanismos apareceram como formas de institucionali-
zar, no interior da própria estrutura do Estado, perspectivas de mulheres
(MATOS; PARADIS, 2014).
Especicamente sobre o processo político ao qual o Equador expe-
rimentou, a Revolución Ciudadana ecuatoriana impulsionou a elaboração
de uma nova Constituição, na qual a esquerda, o progressismo e movi-
mentos campesinos e indígenas – inclusive de mulheres – pudessem par-
ticipar do momento de repensar o modelo neoliberal seguido até então.
Apesar dos questionamentos que encaram o Alianza País de Rafael Correa
como um afastamento dos interesses dos setores tradicionais das popula-
ções – principalmente após a promão de modelos econômicos extrati-
vistas que impactaram negativamente os direitos indígenas aos quais os
governos estavam inicialmente alinhados (SCHAVELZON, 2015) –, uma
visão mais inclusiva denida pela noção de Estado plurinacional pautou a
nova direção da Constituição da República Del Ecuador.
No caso da inserção de mulheres na política equatoriana, teremos
como ponto de partida as políticas de cotas para mulheres no legislati-
vo nacional. O Equador aparece na nona posição do ranking mundial de
2016 (INTERPARLAMENTARY UNION, 2016), com uma porcentagem
de 41,6% de mulheres ocupando cadeiras na Assembleia Nacional. O país
possui cotas legislativas que estão efetivadas nos textos da Constituição e
de leis eleitorais. De acordo com o Artigo 65 da Constituição de 2008, o
sistema de cotas equatoriano estabelece princípios de paridade para todos
os níveis eleitorais. Assim, arma-se que o Estado deve adotar medidas de
ação armativa para garantir a participação de parcelas discriminadas da
população. Dessa forma, a legislação eleitoral estabelece que:
De acordo com os artigos 99 (1) e 160 da Lei Eleitoral de 2009, nas listas de
candidatos, para as eleições através do sistema de representação proporcional, os
nomes dos homens e mulheres candidatas serão alternados. Além disso, o artigo
160 exige que as listas de candidatos para as eleições para a Assembleia Nacional, o
Parlamento Andino, o Parlamento Latino-Americano, os conselhos regionais, dis-
trital, conselhos municipais e rurais, serão formados com uma sequência de igual
número (mulher-homem ou homem-mulher) para completar o número total de
candidatos principais alternativos (QUOTA PROJECT, 2016, s/p, tradução nossa
4
).
Além disso, o “artigo 105 (2) da lei eleitoral estabelece que as listas
de candidatos serão rejeitadas pela Comissão Eleitoral caso não cumpram
as disposições da Constituição e da lei eleitoral relativas à igualdade de
gênero e à alterncia” (QUOTA PROJECT, 2016, s/p, tradução nossa
5
).
Percebemos, portanto, que o sistema de cotas equatoriano é bastante ex-
tenso e busca abarcar grande parte do aparato político do país. Em rela-
ção ao impacto na representatividade legislativa a nível nacional, consta-
tamos que após a implementação da legislação especíca sobre paridade e
alternância, a representação de mulheres na Assembleia Nacional passou
de 25% em 2008 – quando ocupava a 37ª posição no ranking mundial –
para 32,3% em 2009, 38,7% em 2013 e 41,6% em 2014 – representação que
se mantém até o ano de 2016 (INTERPARLAMENTARY UNION, 2008;
4. According to Articles 99 (1) and
160 of the 2009 Electoral Law, in the
candidate lists, for the elections through
the system of proportional represen-
tation, the names of men and women
candidates shall alternate. In addition,
Article 160 requires that candidate lists
for elections to the National Assembly,
the Andean and Latin American Parlia-
ment, the regional councils, as well as
the district, municipal and rural councils,
shall be formed with an equal number
sequence (woman–man or man–wo-
man) to complete the total number of
principal and alternative candidates.
5. Article 105 (2) of the electoral law
states that the candidate lists will be
rejected by the Electoral Commission
if they do not comply with the gender
parity and alternation provisions of the
Constitution and the electoral law.
69
Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
2009; 2013; 2014; 2016). Assim, a implementação do sistema no Equador
possibilitou que a representação de mulheres em seu parlamento superas-
se os 40% em menos de 5 anos.
É importante mencionar que o fato dessa composição legislativa
do país se concretizar, ou seja, de existir uma paridade de gênero no po-
der legislativo equatoriano, representa uma transformação automática na
conformação do espaço político. O simples fato de depararmos com ima-
gens de mulheres no site da Assembleia Nacional equatoriana já aponta
para a existência uma outra dimica. A presidência da Assembleia Na-
cional da República do Equador do período entre 2013 e 2017 foi ocupada
por três mulheres: a presidenta Gabriela Alejandra Rivadeneira Burbano,
a primeira vice-presidenta Rosana Alvarado Carrión, e a segunda vice-
-presidenta Marcela Paola Aguiñaga Vallejo. A disposição entre homens e
mulheres na Assembleia é algo destacado na página online da composição
dos asambleístas, de acordo com a Figura 1. E a proporção ocial informa-
da pela Assembleia era de 78 homens e 59 mulheres – 56,93% e 43,07%,
respectivamente (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2016).
Figura 1 – Composição da Assembleia Nacional do Equador
Fonte: (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2016).
Projetos de lei e agenda de gênero no Equador
Em nossa investigação acerca da incorporação de questões de gê-
nero no interior do Estado equatoriano, buscando entender a inuência
de políticas de cotas na representação substantiva de mulheres, reali-
zamos um estudo de caso exploratório sobre os projetos de lei volta-
dos para a questão de gênero elaborados no Equador entre 2009 e 2017.
O Quadro 1 apresenta os projetos de lei encontrados, e que serão em se-
guida analisados, a partir da base de dados disponibilizada pelo próprio
governo equatoriano
6
.
6. As informações sobre os referidos
projetos de lei e resolução foram retira-
das do próprio banco de dados disponi-
bilidade no site da Assembleia Nacional
do Equador (ASAMBLEA NACIONAL
REPUBLICA DEL ECUADOR, 2018).
70
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
Quadro 1- Disposição dos Projetos de Lei Estudados
Projetos Aprovados Projetos Arquivados Projetos Unicados Projetos em Trâmite
Projetos Voltados para
Questões de Gênero
1 (resolução)
1 (projeto)
2 3 6
Projetos que Tocam
Questões de Gênero
6
Não incluídos na
pesquisa
Não incluídos na
pesquisa
Não incluídos na
pesquisa
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados disponível
(ASAMBLEA NACIONAL REPUBLICA DEL ECUADOR, 2018).
Análise dos projetos de lei identificados
Medidas vinculantes nos projetos de lei aprovados
No primeiro momento, realizamos uma breve indicação dos proje-
tos aprovados que possuem – ou não – medidas vinculantes em seus do-
cumentos. Estamos chamando de medidas com efeito vinculantes aquelas
que estabelecem obrigatoriedade conferida a determinado enunciado com
caráter jurisprudencial, de modo que seu conteúdo deve ser adotado e não
apenas encarado como mera orientação (PINHEIRO, 2017). O Quadro 2
indica a relação dos projetos de lei e suas respectivas medidas vinculantes.
Quadro 2- Medidas Vinculantes dos Projetos dos Lei Aprovados
Projetos Aprovados Possui Medidas Vinculantes
Não Possui Medidas
Vinculantes
Resolução para eliminar toda
forma de violência contra mu-
lheres, meninas e adolescentes
X
Lei Orgânica dos Conselhos
Nacionais para a Igualdade
Criação do Conselho Nacional para a Igualdade de Gênero:
monitoramento das atividades de várias instâncias públicas;
obrigatoriedade de paridade na composição do conselho.
Código Orgânico de
Organização Territorial,
Autonomia e Descentralização
Criação das Comissões Permanentes de Igualdade e Gênero e dos
Conselhos Cantonais para a Proteção dos Direitos ligados ao órgão
legislativo: monitoramento das atividades das instâncias dos GADs.
Lei do Esporte, Educação
Física e Recreação
Obrigatoriedade da existência de equipes femininas em organiza-
ções esportivas; obrigatoriedade de representação paritária entre
homens e mulheres na composição de organizações esportivas.
Lei Orgânica de Educação
Intercultural
X
Lei Orgânica de Comunicação
Obrigatoriedade de prestação de desculpas públicas por
parte da direção do meio de comunicação responsável a atos
discriminatórios; multas de até 10% da renda mensal do meio de
comunicação em casos de reincidência.
Lei Reformatória à Lei de
Seguridade Social
Obrigatoriedade de um salário mínimo unicado para pessoas
que trabalham nos setores doméstico, artesanal ou industrial.
Código Orgânico Integral
Penal
Diversas penas especicadas, incluindo a privação da liberdade,
em casos de crimes de feminicídio, abandono, violência contra a
mulher e à família nuclear, discriminação, e crimes de ódio.
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados disponível (ASAMBLEA NACIO-
NAL REPUBLICA DEL ECUADOR, 2018).
71
Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
Assim, podemos observar que dentre os projetos de lei estudados
que foram aprovados, apenas um não possui medidas de efeito vincu-
lante. A Lei Orgânica de Educação Intercultural aparece como uma reco-
mendação inclusiva sobre o direito dos cidadãos equatorianos ao acesso
à educação, mas não apresenta metas especícas, mecanismos de im-
plementação ou sanções em casos de não cumprimento (REPÚBLICA
DEL ECUADOR, 2011). Além disso, a Resolução para eliminar toda forma de
violência contra mulheres, meninas e adolescentes, criada na comemoração
do Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra a Mulher, tam-
bém contém recomendações gerais sobre a importância de combater tais
formas de violência no cenário nacional e regional (REPÚBLICA DEL
ECUADOR, 2014b).
Temáticas dos projetos de lei
Em relação às temáticas abordadas nos documentos aqui estuda-
dos, identicamos que muitos deles possuem temáticas em comum e que,
em muitos dos casos, múltiplas temáticas estão contidas em um mesmo
projeto. Contudo, no intuito de demonstrar de forma objetiva e compara-
da o escopo ou eixo principal de cada projeto apresentado, organizamos
em temáticas especícas de acordo com o Quadro 3.
Quadro 3- A Distribuição dos Projetos Estudados em Relação a suas Temáticas
Temática 1
Promoção do combate
à discriminação e vio-
lência contra mulheres
Temática 2
Promoção e trans-
versalização da
igualdade de gênero
Temática 3
Direitos das mu-
lheres à saúde
e/ou ao esporte
Temática 4
Direitos das mulheres
ao trabalho, seguridade
e/ou assistência social
Temática 5
Direitos das
mulheres à
educação
Aprovados 3 2 1 1 1
Arquivados 2 0 0 0 0
Unicados 0 2 0 1 0
Em Trâmite 2 1 2 1 0
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados disponível (ASAMBLEA NACIO-
NAL REPUBLICA DEL ECUADOR, 2018).
Percebemos, portanto, a partir da comparação temática entre os
projetos estudados no presente trabalho, que a temática da promoção
do combate à discriminação e violência contra mulheres aparece com
destaque, uma vez que o Código Orgânico Integral Penal, a Lei Orgânica de
Comunicação e, mais recentemente, a Resolução para eliminar toda forma
de violência contra mulheres, meninas e adolescentes, resultam em um apa-
rato político e legal que possui uma série de medidas para a promoção
do combate, da punição, da prevenção e da sensibilização em relação a
atos de violência, perseguição ou discriminação cometidos contra mu-
lheres no Equador (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2014b; REPÚBLICA
DEL ECUADOR, 2014a; REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2013). Além dos
projetos de lei aprovados e que possuem medidas e metas vinculantes em
relação ao cenário nacional e ao âmbito dos governos autônomos des-
centralizados (GADs), encontramos projetos arquivados e novos projetos
em trâmite na Assembleia que abordam, também, a temática de maneira
72
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
aprofundada, buscando garantir de forma ainda mais enfática o combate
a atos de violência e discriminação, em especial à mulher – mas também
a outros grupos considerados vulneráveis como crianças, adolescentes e
membros da população LGBTI (GALLEGOS, 2016; GUALA, 2011; MON-
TEDEOCA, 2016a; MONTEDEOCA, 2012b).
De forma semelhante, percebemos que a temática da promoção
e transversalização da igualdade de gênero nas instituições e na so-
ciedade equatoriana também possui destaque nos projetos de lei estu-
dados, uma vez que dois projetos de alcance e dimensões grandiosos
foram aprovados, de modo que a Lei Orgânica dos Conselhos Nacionais
para a Igualdade e o Código Orgânico de Organização Territorial, Autono-
mia e Descentralização caracterizam o marco de uma iniciativa política
e legal para a promoção da igualdade entre homens e mulheres, em
vários âmbitos da existência econômica, social, política e cultural. Nes-
se sentido, a institucionalização da transversalização de políticas volta-
das para mulheres e para a igualdade de gênero, a nível nacional, dos
GADs e municipal, proporcionam a penetração de tais pautas e agendas
políticas; garantindo a elaboração, acompanhamento e monitoramen-
to de políticas de tais natureza por meio do Conselho Nacional para a
Igualdade de Gênero, das Comissões Permanentes de Igualdade e Gênero, e
dos Conselhos Cantonais para a Proteção dos Direitos. Além desse enorme
aparato institucional, encontramos dois projetos que foram unicados
e, portanto, incorporados – mesmo que não integralmente –, são estes o
Projeto de Lei de Igualdade entre Mulheres e Homens e Pessoas de Diversa Con-
dição Sexo-genérica e o Projeto de Lei Orgânica de Igualdade entre Mulheres
e Homens, garantindo que as pautas sobre a promoção integral da igual-
dade de gênero fossem inseridas na discussão a respeito dos Conselhos
Nacionais para a Igualdade. Por m, o Projeto de Lei Orgânica para a Parti-
cipação Equitativa de Mulheres e Homens em Posições de Liderança no Setor
Público e Privado, que se encontra em tmite na Assembleia, demarca a
existência de demandas para aprofundar os mecanismos institucionais
de garantia à participação igualitária entre homens e mulheres em pro-
cessos decisórios (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2010a; REPÚBLICA
DEL ECUADOR, 2014c; CARANQUI, 2012; MONTEDEOCA, 2012a;
MONTEDEOCA, 2016b).
Sobre a temática a respeito dos direitos das mulheres à sde e/
ou ao esporte, apesar de termos encontrado apenas um projeto voltado
para o esporte, e que aparece como importante dentro da discussão, uma
vez que aborda de maneira robusta a questão da promoção igualitária de
homens e mulheres em termos de oportunidades para praticar esportes
e participar de processos decisórios de organizações esportivas – tendo
inclusive mecanismos coercitivos e vinculantes para tal –, nos depara-
mos, também, com projetos novos direcionados para questões de saúde.
O projeto de Lei da Prática Intercultural para o Parto Acompanhado no Siste-
ma Nacional de Saúde e o Projeto de Lei para Prevenção, Diagnóstico, Controle e
Vigilância do Câncer de Mama, aparecem, assim, como importantes inicia-
tivas para garantir acesso amplo, inclusivo e diversicado de mulheres ao
direito à saúde (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2010b; ANDRADE, 2012;
GUALA, 2016).
73
Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
De forma semelhante, a temática dos direitos das mulheres ao tra-
balho, seguridade e assistência social não aparece em um volume gran-
de de projetos aprovados, sendo alvo apenas da Lei Reformatória à Lei de
Seguridade Social, que nos revela um elemento essencial para a discussão
da igualdade entre homens e mulheres no âmbito do trabalho, que é a va-
lorização do trabalho doméstico, a partir do estabelecimento de uma re-
muneração mínima garantida pelo Estado. Além disso, temos o Projeto de
Lei que Garante a Seguridade Social a Mulheres que Realizam Trabalho Domés-
tico não Remunerado, projeto unicado que garante este direito adquirido;
assim como o Projeto de Lei de Proteção e Assistência a Mães Adolescentes,
que está em tmite e que propõe programas de assistência a mães ado-
lescentes e a seus lhos, em conjunto com estratégias de conscientização
sobre as consequências da gravidez na adolescência, possuindo caráter,
também, educativo (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2010c; ANDRADE,
2010; VILLARREAL, 2012).
Por m, a temática dos direitos das mulheres à educação aparece
apenas em um projeto, este aprovado, a Lei Orgânica de Educação Intercul-
tural, que garante o acesso à educação a todas as mulheres equatorianas,
apesar da ausência de mecanismos vinculantes. Porém, é importante res-
saltar que a maioria dos projetos estudados – e isso se deve principalmente
ao princípio constitucional da promoção integral, inclusiva e transversal
da igualdade de gênero – possuem medidas educativas e de sensibilização
para promover a igualdade e combater determinadas práticas; assim, des-
de projetos voltados para a questão da violência e discriminação contra
mulheres até os projetos de inclusão da prática do parto humanizado em
unidades de saúde equatorianas, por exemplo, possuem disposições edu-
cativas em suas recomendações (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2011).
A partir da comparação entre as temáticas dos projetos de leis es-
tudados, podemos observar que muito se tem alcançado em relação à
agenda vinculada à promoção do combate à discriminação e violência
contra mulheres e à promoção e transversalização da igualdade de gê-
nero no Equador. Tais temáticas foram atendidas com leis robustas, in-
clusivas, que possuem mecanismos vinculantes e que atingem diferentes
níveis institucionais.
Proposições dos projetos de lei
Apresentaremos aqui, a partir do Quadro 4, a relação entre os pro-
jetos de lei estudados e a autoria dos mesmos. Assim, poderemos compa-
rar o número de projetos voltados para questões de gênero e de mulheres
que foram propostos por deputadas (mulheres), por deputados (homens),
ou pelo poder Executivo (através do Presidente Constitucional da Repú-
blica Rafael Correa Delgado). Além disso, podemos observar, ao mesmo
tempo, a qual temática corresponde cada encaminhamento de projeto e
se o projeto – dentre os aprovados – possuem medidas vinculantes. Vale
ressaltar que a Resolução para eliminar toda forma de violência contra mulhe-
res, meninas e adolescentes não possui autoria especica – sendo um docu-
mento produzido em conjunto e em nome da Assembleia Nacional –, não
sendo incluída, portanto, na seguinte análise.
74
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
Quadro 4- Proposição dos Projetos de Lei por Autoria
Projetos de Lei
Mecanismo
Vinculante
Proposto por
Deputada
Proposto por
Deputado
Proposto pelo
Presidente
Temática 1
Lei Orgânica de Comunicação
X
Rolando José
Panchana Farra
Código Orgânico Integral Penal X X
Projeto de Lei Orgânica contra a
Discriminação, Perseguição e Violência
Política em razão de Gênero
Lourdes Licenia
Tibán Guala
Projeto de Lei Orgânica Reformatória à Lei
Contra Violência à Mulher e a Família
Marisol Peñael
Montesdeoca
Projeto de Lei Orgânica Reformataria à Lei
Orgânica Eleitoral, Código da Democracia
para a Prevenção e Sanção da Perseguição
Política Motivada em Razões de Gênero
Betty Carrillo
Gellegos
Projeto de Lei Orgânica de Acesso Integral a
uma Vida Livre de Violência de Gênero
Marisol Peñael
Montesdeoca
Temática 2
Lei Orgânica dos Conselhos Nacionais para
a Igualdade
X X
Código Orgânico de Organização Territorial,
Autonomia e Descentralização
X X
Projeto de Lei de Igualdade entre Mulheres
e Homens e Pessoas de Diversa Condição
Sexo-genérica
Paola Verenice
Pabon Caranqui
Projeto de Lei Orgânica de Igualdade entre
Mulheres e Homens
Marisol Peñael
Montedeoca
Projeto de Lei Orgânica para a Participação
Equitativa de Mulheres e Homens em Posi-
ções de Liderança no Setor Público e Privado
Marisol Peñael
Montedeoca
Temática 3
Lei do Esporte, Educação Física e Recreação
X
Celso Pablo
Maldonado
Arboleda
Projeto de Lei da Prática Intercultural para
o Parto Acompanhado no Sistema Nacional
de Saúde
Lourdes Licenia
Tiban Guala
Projeto de Lei para Prevenção, Diagnóstico,
Controle e Vigilância do Câncer de Mama
Silvia Salgado
Andrade
Temática 4
Lei Reformatória à Lei de Seguridade Social
X
Nivea Luz Maria
Velez Palacio;
Cynthia Viteri
Jimenez
Linder Maximiliano
Altafuya Loor;
Rolando José
Panchana Farra
Projeto de Lei que Garante a Seguridade
Social a Mulheres que Realizam Trabalho
Doméstico não Remunerado
Silvia Salgado
Andrade
Projeto de Lei de Proteção e Assistência a
Mães Adolescentes
Leandro Cadena
Villarreal
Temática 5
Lei Orgânica de Educação Intercultural
X
Total 11 4 4
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados disponível (ASAMBLEA NACIO-
NAL REPUBLICA DEL ECUADOR, 2018).
75
Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
A partir da alise do Quadro 4, a primeira observação é que den-
tre os 7 projetos que foram aprovados – e dos 6 que possuem medidas
vinculantes – apenas 1 possui participação de mulheres em sua proposi-
ção, que é o caso da Lei Reformatória à Lei de Seguridade Social, que pos-
sui proposição mista. Os outros 6 projetos que foram aprovados – dentre
eles 5 com medidas vinculantes – foram propostos pelo Presidente Rafael
Correa Delgado ou por deputados.
A segunda observação é que dentre os 12 projetos que são voltados
para questões de gênero, que inclui a Lei Orgânica dos Conselhos Nacionais
para a Igualdade e todos os projetos arquivados, unicados ou em trâmi-
te, 10 foram propostos por deputadas – sendo que a deputada Lourdes
Licenia Tibán Guala propôs 2 projetos, a deputada Marisol Peñael Mon-
tesdeoca propôs 4 projetos, a deputada Silvia Salgado Andrade propôs 2
projetos, e as deputadas Betty Carrillo Gellegos e Paola Verenice Pabon
Caranqui propuseram 1 projeto cada
7
. A Lei Orgânica dos Conselhos Nacio-
nais para a Igualdade foi proposta pelo Presidente Rafael Correa Delgado,
e o Projeto de Lei de Proteção e Assistência a Mães Adolescentes foi apresenta-
do pelo deputado Leandro Cadena Villarreal.
A terceira observação é que em relação às temáticas dos projetos de
lei, a tendência dos projetos propostos pelas mulheres segue a tendência
geral observada de privilegiar as temáticas 1 e 2 (promoção do combate à
discriminação e violência contra mulheres; e promoção e transversaliza-
ção da igualdade de gênero).
Votações dos projetos de lei
Apresentaremos aqui, a partir do Quadro 5, a relação entre alguns
projetos aprovados e o processo de votação na Assembleia Nacional, para
depois analisarmos a participação de deputadas na aprovação de projetos
que impactaram a promoção da igualdade de gênero no país. Vale ressaltar
que grande parte das votações não puderam ser trabalhadas aqui, uma vez
que as informações sobre o processo de votação na Assembleia Nacional
não estão mais disponíveis – apenas os processos de votação a partir de 2013
estão disponíveis na base de dados da Assembleia Nacional do Equador.
Quadro 5- Votações Disponíveis de Projetos Aprovados
Projetos Aprovados Votos de Aprovação/quórum Votos Contra Abstenções
Lei Orgânica dos Conselhos Nacionais para a Igualdade 90/116 1 deputado
18 deputados
7 deputadas
Lei Orgânica de Comunicação 108/135
19 deputados
7 deputadas
1 deputado
Código Orgânico Integral Penal 101/130
21 deputados
8 deputadas
1 deputado
Fonte: Elaboração própria a partir dos respectivos documentos de votação (ASAMBLEA
NACIONAL REPUBLICA DEL ECUADOR, 2014); (ASAMBLEA NACIONAL REPUBLICA
DEL ECUADOR, 2013a); (ASAMBLEA NACIONAL REPUBLICA DEL ECUADOR, 2013b).
Apesar do número pequeno de dados adquiridos referentes aos pro-
cessos de votação de projetos de lei aprovados, os três projetos (Lei Orgâ-
nica dos Conselhos Nacionais para a Igualdade, Lei Orgânica de Comunicação
7. A fim de compor o cenário da
distribuição de autorias de mulheres
dos projetos estudados, vale explicitar
a relação das deputadas aqui citados
com os partidos políticos. Apesar da
categoria partido político não ser o foco
da nossa discussão, tal relação deve ser
mencionada: as deputadas Betty Carrillo
Gellegos, Marisol Peñafiel Montesdeo-
ca, Paola Verenice Pabon Caranqui e
Silvia Salgado Andrade pertencem ao
partido do governo de Rafael Correa,
o Alianza PAIS; as deputadas Lourdes
Licenia Tibán Guala e Nivea Luz Maria
Velez Palacio pertencem ao partido
Alianza de la Izquierda Democrática; e
a deputada Cynthia Viteri Jimenez per-
tence ao partido Partido Social Cristiano
(REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2016).
76
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
e Código Orgânico Integral Penal) lidam com importantes questões voltadas
para a igualdade de gênero e defesa dos direitos das mulheres. Todos eles
foram aprovados com uma maioria signicativa dos votos; e em relação
aos votos que foram contra, ou aos votos de abstenção, a proporção dos
votos de deputados para de deputadas é maior que o dobro.
Na votação da Lei Orgânica dos Conselhos Nacionais para a Igualdade,
apenas um deputado votou contra e 25 congressistas se abstiveram, sen-
do que apenas 28% destes eram deputadas. Na votação da Lei Orgânica
de Comunicação, 26 congressistas votam contra, sendo que apenas 26%
destes eram deputadas, e apenas um deputado se absteve da votação. E
na votação do Código Orgânico Integral Penal, 29 congressistas votaram
contra, sendo que apenas 27% destes eram deputadas, e apenas um de-
putado se absteve da votação. Sendo que a representação de mulheres na
Assembleia Nacional equivale a 43,07%, podemos observar a tendência,
nos casos aqui mencionados, de uma maior resistência por parte de depu-
tados em aprovar os referidos projetos. Apesar dos dados não nos permi-
tirem nenhuma armação generalista, eles apontam para uma proporção
semelhante do comportamento dos votos de deputados e deputadas em
relação à aprovação de projetos que impactam signicativamente a vida
de mulheres equatorianas.
A atuação de deputadas do legislativo equatoriano
Podemos perceber ao longo da subseção 4.1, portanto, que as de-
putadas que atuaram a partir de 2009 na Assembleia Nacional – marco
da institucionalização das políticas de cotas legislativas para mulheres no
Equador –, possuem um padrão de interação similar, no cenário legis-
lativo equatoriano, em relação à proposição de políticas voltadas para a
promoção da igualdade entre gêneros e direitos das mulheres. Dentre os
projetos identicados como voltados para questões de gênero, a grande
maioria foi proposta por deputadas – 83,3% dos projetos estudados –, sen-
do a maior parte relacionada às temáticas do combate à violência contra
mulheres e da promoção da igualdade transversal de gênero – represen-
tando 70% dos projetos propostos por mulheres e voltados para questões
de gênero.
Outro ponto importante é que apenas um projeto aprovado – repre-
sentando 14,2% dos projetos aprovados estudados – possui participação
direta de deputadas em sua proposição. Porém, dos projetos aprovados
aos quais tivemos acesso ao processo de votação, percebemos a tendência
de uma maior resistência por parte de deputados em aprovar os referidos
projetos, ao observarmos a distribuição entre os votos contrios ou de
abstenção em relação aos projetos de lei – sendo que a atuação de deputa-
das não ultrapassou 28% dos votos que sinalizaram rejeição. Vale ressal-
tar, porém, que a aprovação de tais projetos é alta, possuindo mais de 74%
dos votos válidos nos três casos apresentados.
Observamos, também, que 5 propostas encaminhadas por depu-
tadas foram arquivadas ou unicadas a outros projetos. Porém, observa-
mos, ainda, que muitas das políticas propostas por essas parlamentares
são recentes e ainda estão em processo de qualicação/avaliação/votação
77
Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
na Assembleia Nacional – dos 12 projetos estudados que são voltados para
questões de gênero, 5 projetos de autoria feminina estão tramitando no
parlamento, já que foram propostas entre os anos de 2012 e 2016.
Tais projetos propostos e que ainda estão tramitando na Assem-
bleia Nacional do Equador revelam que para essas deputadas muitas das
problemáticas relacionadas às temáticas aqui categorizadas ainda não fo-
ram totalmente solucionas, ou incluídas de modo satisfatório, nos pro-
jetos de lei previamente aprovados pelo parlamento. Dessa forma, esses
novos projetos insistem nas discussões sobre: 1) a necessidade de garantir
maior acesso das mulheres a serviços de saúde, de maneira inclusiva e de-
mocrática; 2) a imporncia de implementar mecanismos que garantam
a participação equitativa de mulheres e homens em posições de lideran-
ça em ambientes públicos e privados no país; 3) a demanda por medidas
de proteção, punição e prevenção para combater a perseguição política
sofrida por mulheres; 4) a necessidade de ampliar e aprofundar os meca-
nismos de combate a todos os tipos de violência sofridos por mulheres na
sociedade equatoriana.
A partir dessa reexão, podemos considerar que apesar de impor-
tantes projetos, que atendem a demandas relacionadas às temáticas aqui
expostas e que possuem medidas vinculantes, terem sido aprovados no
Equador nos últimos anos; as deputadas da Assembleia Nacional aqui
citadas estão sinalizando para a necessidade de ampliar, aprofundar e
incluir demandas e problemáticas relacionadas à igualdade de gênero e
direitos das mulheres nas propostas do legislativo nacional. Assim, mes-
mo que muitas de suas propostas tenham sido incluídas nas discussões
parlamentares, e de importantes resoluções e projetos de lei terem ganha-
do destaque na esfera legislativa, a atuação dessas deputadas da Assem-
bleia Nacional aparece como um elemento importante na reivindicação
de uma política mais inclusiva e igualitária, que enfatiza projetos voltados
para questões de gênero e dos direitos das mulheres. Dessa forma, enten-
demos que a participação de mulheres no legislativo nacional do Equador
contribui para iniciativas que tem por objetivo a promão da igualdade
de gênero.
A agenda de gênero no Equador
Ao longo do presente trabalho apresentamos uma série de informa-
ções a respeito de como políticas voltadas para questões de gênero ou que
tocam questões de gênero e de direitos das mulheres foram propostas
e aprovadas na Assembleia Nacional equatoriana. Chegamos à conside-
ração, na subseção anterior, que a atuação de deputadas do legislativo
nacional do país possui grande importância, não apenas no processo de
proposição e aprovação de políticas, mas também na insistência em in-
cluir determinadas pautas na agenda política do Equador, por meio do
encaminhamento de projetos de lei recentes. Contudo, para compormos
de forma mais aprofundada o cenário político observado ao longo da pes-
quisa, discutiremos outras variáveis relevantes e resgataremos o argu-
mento teórico do trabalho para discutir sobre a promoção da igualdade
de gênero no país.
78
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
Em primeiro lugar, observamos ao longo da pesquisa a importân-
cia que instrumentos e tratados internacionais tiveram no processo de
interiorização da temática da igualdade de gênero nos princípios do Es-
tado equatoriano e em muitos dos projetos de lei estudados. A indicação
mais clara de tal interferência foi encontrada no documento da Resolução
para eliminar toda forma de violência contra mulheres, meninas e adolescentes,
que foi promulgada em comemoração ao Dia Internacional da Elimina-
ção da Violência Contra a Mulher, e que destaca elementos de cooperação
internacional importantes sobre a temática da promoção da igualdade de
gênero. Dessa forma, observamos que a própria Declaração Universal dos
Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos é usado
para embasar a defesa pelos direitos das mulheres, pela não discriminação
e pela igualdade entre homens e mulheres. Além disso, a Convenção para
Eliminação de todas as formas de Descriminação contra a Mulher (CEDAW)
aparece como um compromisso vinculante que orienta a criação de me-
didas que garantam a erradicação da discriminação contra a mulher. E
a Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência
contra a Mulher vincula o Estado no sentido de estabelecer medidas para
erradicar tal violência (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2014b).
Por m, mas não menos importante, destacamos a Plataforma de
Pequim como responsável por difundir a pauta do empoderamento de
mulheres, estabelecendo a recomendação pela criação de mecanismos
institucionais para o avanço das mulheres em diferentes esferas, contri-
buindo para a criação das políticas de cotas no país; e, juntamente com o I
Foro Parlamentario Beijing, inuenciou a Assembleia Nacional a empreen-
der ações conjuntas com outras instâncias estatais no sentido de fazer
esforços para erradicar a violência de gênero contra as mulheres, meninas
e adolescentes (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2017). Dessa forma, enten-
demos que os tratados internacionais, apesar de não terem determinado
a implementação de cotas no Equador e a adoção de políticas públicas
voltadas para gênero, aparecem como marcos importantes que ajudam a
embasar a adoção de tais políticas.
Em segundo lugar, devemos destacar que apesar do presente traba-
lho ter se limitado ao estudo e análise dos projetos de lei e da incorpora-
ção da categoria de gênero no âmbito do Poder Legislativo do Equador,
o papel do Poder Executivo não poder ser descartado, sendo uma var-
vel que inuencia profundamente a agenda política de gênero no país.
Conseguimos observar, ao longo do presente capítulo, que a agência do
Presidente Constitucional da República Rafael Correa Delgado foi pri-
mordial no encaminhamento de projetos que impactaram profundamen-
te a realidade de mulheres equatorianas. Dos 7 projetos estudados que
foram aprovados, 4 foram submetidos pelo presidente, sendo que 3 deles
possuem medidas vinculantes.
A Lei Orgânica dos Conselhos Nacionais para a Igualdade prevê a cria-
ção de um aparato institucional de proporções extraordinárias, que atinge
todos os níveis governamentais do país, e que estabelece a criação do Con-
selho Nacional para a Igualdade de Gênero. O Conselho estabelece a agenda
de gênero em todo o território nacional, incluindo diversos eixos
8
; além
de recomendar, acompanhar e monitorar as políticas públicas voltadas
8. 1) reprodução e sustentabilidade da
vida; 2) uma vida livre de violência; 3)
educação e conhecimento; 4) saúde;
5) esporte e recreação; 6) cultura,
comunicação e arte; 7) produção e em-
prego; 8) ambiente; 9) poder e tomada
de decisões (CONSEJO NACIONAL DE
IGUALDAD DE GÉNERO, 2014).
79
Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
para gênero criadas no país (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2014c). O -
digo Orgânico de Organização Territorial, Autonomia e Descentralização, de
forma semelhante, possui grandes proporções e procura institucionalizar
mecanismos nos âmbitos dos GADs; dentre eles, instituir as Comissões
Permanentes de Igualdade e Gênero e os Conselhos Cantonais para a Proteção
dos Direitos para agir em sintonia com o Conselho Nacional para a Igualdade
de Gênero (REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2010a). Já o Código Orgânico Pe-
nal Integral especica diversos crimes e prevê penas e sanções para crimes
de feminicídio, discriminação, violência e crimes de ódio, contribuindo
para o combate, punição e prevenção de tais crimes (REPÚBLICA DEL
ECUADOR, 2014a). Dessa forma, a ação do presidente foi fundamental
para institucionalizar aparatos preciosos em defesa dos direitos das mu-
lheres equatorianas nos últimos anos, principalmente em relação às te-
máticas da promoção e transversalização da igualdade de gênero e da
promoção do combate à discriminação e violência contra mulheres.
Em terceiro lugar, devemos resgatar o conceito de transversaliza-
ção do princípio de igualdade e não discriminação em razão de gênero
nas funções do Estado, que aparece na Constituição na determinação de
que o Estado é responsável por formular e implementar políticas para
alcançar a igualdade entre mulheres e homens, através de mecanismos
especializados em conformidade com a lei; além de incorporar o enfo-
que de gênero em planos e programas (REPÚBLICA DEL ECUADOR,
2008). Esse princípio, portanto, baliza vários dos projetos de lei aqui estu-
dados, sendo de extrema importância para a incorporação de diferentes
temáticas relacionadas à igualdade de gênero na agenda política do país;
destacamos tal princípio na criação dos Conselhos Nacionais para a Igual-
dade de gênero, uma vez que se torna claro que a categoria de gênero deve
ser levada em consideração em todas as instâncias de decisão política do
Equador. Tal movimento, portanto, aponta para a incorporação da pers-
pectiva de gênero no Estado equatoriano.
Em quarto lugar, é importante destacar o caráter interseccional dos
projetos de lei aqui estudados, tanto em relação às temáticas abordadas
quanto em relação às categorias de opressão endereçadas nos projetos. Nes-
se sentido, grande parte dos projetos estudados incluem a discussão sobre
a transversalização da igualdade de gênero em suas discussões e possuem
medidas vinculadas à necessidade de sensibilização e educação da popula-
ção sobre questões de igualdade de gênero, possuindo, assim, um caráter
multidimensional. Além disso, muitos projetos, ao se referirem à necessida-
de de garantir direitos das mulheres ou estabelecer, por exemplo, medidas
de proteção, sanção e prevenção a atos de violência contra mulheres; outras
categorias de opressão aparecem em consonância, como a questão da desi-
gualdade de raça, etnia, religião, a descriminação contra a população LGT-
BI, contra pessoas portadoras de deciência, entre outras. Outros exemplos
de tais interseccionalidades seriam a política de promoção da educação,
que possui medidas especícas para mulheres de comunidades indígenas; e
o projeto de lei sobre práticas de parto humanizado ou alternativo, que le-
gitima as práticas advindas de comunidades indígenas. Assim, observamos
como as categorias de gênero, raça, etnia, orientação sexual, entre outras,
muitas vezes perpassam o conteúdo dos projetos em conjunto.
80
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.63 - 86
Em quinto lugar, voltamos a armar que a partir da comparação
entre as temáticas dos projetos de leis estudados, observamos que muito
se tem alcançado em relação à agenda vinculada à promoção do combate
à discriminação e violência contra mulheres e à promoção e transversa-
lização da igualdade de gênero no Equador. Tais temáticas foram atendi-
das com leis robustas, inclusivas, que possuem mecanismos vinculantes
e que atingem diferentes níveis institucionais. Conrmamos, também,
ao longo da análise dos projetos estudados, a indicação inicial de que a
pauta sobre o combate da violência contra mulheres ganha destaque na
pauta política equatoriana, uma vez que encontramos uma resolução e 7
projetos de lei vinculados a tal temática, padrão este que se repete quan-
do olhamos para os projetos propostos pelas deputadas. Tal observação
pode ser um indicativo de que este problema ainda persiste de maneira
sistemática na sociedade equatoriana.
Por m, resgatando nosso entendimento sobre o sistema patriar-
cal, percebemos como positiva a ascensão de mulheres à esfera estatal. O
adentramento das mulheres na esfera pública foi percebido: 1) por meio
da representação descritiva de mulheres – com as políticas de cotas que
garantem uma representação paritária entre homens e mulheres no po-
der legislativo; 2) juntamente com a representação substantiva de mulhe-
res – pela participação ativa de deputadas nos processos de proposição e
aprovação de políticas voltadas para a promoção da igualdade de gênero.
Assim, através da representação efetiva de mulheres na Assembleia Na-
cional do Equador altera-se a realidade da composição entre homens e
mulheres na política; ao mesmo tempo em que se aprofunda a construção
da agenda de gênero no país.
Nesse sentido, a maior representação descritiva de mulheres – ao
ressignicar o espaço político, armando que o espaço público deve
ser acessível a todas as pessoas –, e a maior representação substantiva
de mulheres – com a proposição e aprovação de leis que promovem a
igualdade de gênero e direitos das mulheres –, contribuem de maneira
essencial para a desconstrução de crenças e práticas excludentes que sus-
tentam a ordem hegemônica masculina. Assim, é possível armar que
a Assembleia Nacional do Equador, composta no momento da pesquisa
de 43% de mulheres, possuindo mulheres na presidência e nas posições
de vice-presidência, possuindo importantes projetos de lei aprovados – e
em trâmite– que estabelecem medidas vinculantes sobre temas valiosos
à promoção da igualdade de gênero, abriu espaço para a construção de
uma realidade mais justa e igualitária entre homens e mulheres na socie-
dade equatoriana.
Portando, os projetos de lei propostos, que foram estudados, preten-
dem promover os direitos das mulheres e alcançar a igualdade de gênero
– desde a adoção de um combate rígido a atos de violência contra mulhe-
res; passando pela institucionalização da transversalização de gênero; a
valorização do trabalho doméstico e a garantia de seguridade social para
mulheres; até o estabelecimento do direito à educação e de assistência à
saúde inclusiva e ampla. Dessa forma, tais projetos possuem o potencial
de transformar materialmente a realidade de mulheres equatorianas, e
de alterar os valores e bases ideológicas da sociedade. Assim, a partir da
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Bárbara Lopes Campos Representação políca de mulheres
alteração da divisão de poder entre homens e mulheres na política, e do
aprofundamento da agenda de gênero, o processo de despatriarcalização
do Estado ganha materialidade.
É preciso ressaltar, enm, que diante dessa transformação no espa-
ço político equatoriano, consideramos que a representação descritiva de
mulheres inuenciou a representação substantiva de mulheres, na medi-
da em 83,3% dos projetos estudados – todos eles submetidos à Assembleia
Nacional após a implementação da política de cotas para mulheres –, e
que foram considerados voltados especicamente para questões de gê-
nero, foram propostos por deputadas. Assim, apesar da maioria dos pro-
jetos estudados que foram aprovados terem sido propostos pelo poder
executivo ou por deputados, consideramos que a atuação de mulheres na
Assembleia Nacional constitui um elemento essencial para a aprovação
de tais políticas e para a proposição de novos projetos que trazem para o
âmbito da política as discussões especicadas acima, contribuindo para
a transformação da estrutura e dos valores da sociedade equatoriana, no
sentido de alcançar maior igualdade e justiça de gênero.
Nesse sentido, a análise aqui realizada sobre a atuação política de
deputadas da Assembleia Nacional da República do Equador sinaliza para
a necessidade de ampliar, aprofundar e incluir demandas e problemáticas
relacionadas à igualdade de gênero e direitos das mulheres nas propostas
do legislativo nacional. Assim, a atuação das deputadas da Assembleia Na-
cional aparece como um elemento importante de reivindicação de uma
política inclusiva e igualitária, agindo por meio de instituições políticas
para transformar a realidade de mulheres e de outros grupos considera-
dos minoritários no Equador.
Considerões finais
O presente trabalho realizou um estudo sobre a relação entre a
representação de mulheres em processos decisórios da política nacional
equatoriana e a incorporação da agenda de gênero no Equador. Para ana-
lisar a inuência de uma maior representação descritiva de mulheres no
âmbito legislativo nacional, realizamos um estudo de caso exploratório
sobre os projetos de lei propostos e a atuação das deputadas eleitas, a par-
tir do contexto da implementação de políticas de cotas para mulheres.
Após a exposição dos projetos de leis encontrados que são voltados
para questões de gênero ou que tocam questões de igualdade entre gê-
neros e de direitos das mulheres, realizamos uma análise que teve como
foco principal o escopo da incorporação das questões de gênero no país e
a atuação das deputadas no processo de elaboração e aprovação dos proje-
tos. Concluímos, primeiramente, que muito se tem alcançado no Equador
em relação à agenda vinculada à promoção do combate à discriminação e
violência contra mulheres e à promoção e transversalização da igualdade
de gênero no Equador; uma vez que grande parte dos projetos aprovados
estudados instituíram leis abrangentes e com medidas vinculantes que
abordam tais temáticas de maneira aprofundada. Em segundo lugar, cons-
tatamos que a representação descritiva de mulheres inuenciou a represen-
tação substantiva de mulheres, na medida em que 83,3% dos projetos estu-
82
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dados – todos eles submetidos à Assembleia Nacional após a implementa-
ção da política de cotas para mulheres –, e que foram considerados voltados
especicamente para questões de gênero, foram propostos por deputadas.
Vale ressaltar, que mesmo a maioria dos projetos estudados que
foram aprovados não terem sido propostos por deputadas, consideramos
que a atuação de mulheres na Assembleia Nacional constitui um elemento
essencial para a aprovação de tais políticas e para a proposição de novos
projetos que trazem para o âmbito legislativo discussões que pretendem
alcançar maior igualdade e justiça de gênero. Assim, a atuação das deputa-
das da Assembleia Nacional aparece como um elemento importante de rei-
vindicação de uma política inclusiva e igualitária, clamando pela transfor-
mação da realidade enfrentada por mulheres no Equador. Nesse sentido, a
partir da ressignicação dos espaços público e privado, a representação de
mulheres na política contribui para o processo de despatriarcalização e de
transformação do sistema hegemônico masculino – sistema caracterizado
ao longo do trabalho como possuindo caráter internacional –, no sentido
da promoção da igualdade entre gêneros.
Por m, devemos pontuar outros elementos importantes na discus-
são do trabalho e que não puderam ser desenvolvidas, aqui, de maneira
aprofundada. Em primeiro lugar, a sistematização dos dados de países
que possuem condições parecidas com o cenário político equatoriano –
em termos de representação descritiva de mulheres no Estado –, pode-
riam ajudar a compor o quadro latino-americano em termos de como
e em que medida a igualdade de gênero está sendo alcançada na região.
Em segundo lugar, e em consonância com o ponto anterior, outras com-
parações possíveis seriam as estabelecidas entre períodos de pré-institu-
cionalização e pós-institucionalização de políticas de cotas para mulheres
no poder legislativo de países latino-americanos. Assim, tais estudos po-
deriam nos fornecer um melhor entendimento acerca da incorporação da
agenda de gênero no Estado. Em terceiro lugar, destacamos, também, a
importância de estudos que atentem para a implementação das políticas
públicas previstas em projetos de lei aprovados. Nesse sentido, o foco de
futuras pesquisas ligadas à temática da promoção da igualdade de gêne-
ro poderiam se voltar para como, ou de que modo, as políticas públicas
previstas em leis ou em programas dos governos latino-americanos con-
seguem, de fato, ser implementadas. Assim, as considerações aqui realiza-
das explicitam alguns limites do presente trabalho; ao mesmo tempo em
que apontam para possíveis pesquisas que contribuam para as discussões
sobre a representação de mulheres na política e a promoção da igualdade
de gênero no contexto latino-americano.
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Política Externa Cabo-verdiana: evolução,
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Cape Verdean Foreign Policy: evolution, perspectives
and lines of force
Recebido em: 13 de novembro de 2017
Aprovado em: 11 de julho de 2018
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2019v7.n1.p87
João Paulo Madeira
1
R
O artigo tem por objetivo compreender os trilhos de Cabo Verde, em matéria de
política externa com vista a potenciar o seu desenvolvimento. O país exerce desde
a independência em 1975, uma política externa de não alinhamento, efetuando
diligências na procura de fontes de nanciamento com o propósito de centrar
os seus esforços na adoção das melhores práticas de governação. Para o efeito,
partiu-se das seguintes hipóteses de estudo: a armação e projeção de um país
com parcos recursos naturais, geogracamente limitado e dependente de uxos
nanceiros externos, necessita de aproveitar as suas caraterísticas geográcas com
vista a colmatar as necessidades internas e, paralelamente, projetar-se para além
das próprias fronteiras; os sucessos obtidos por Cabo Verde dependem de fatores
ideacionais entre os quais se destacam: a transparência e accountability com o
propósito de captar os recursos adequados, quer sejam públicos ou privados ex-
ternos, a experiência e capacidade técnica na captação de programas e projetos de
cooperação, a habilidade do país em se ajustar às “janelas de oportunidades” no
sistema internacional. Para o efeito, adotou-se uma metodologia interdisciplinar
aplicada ao estudo de caso do arquipélago, com vista a analisar acontecimentos,
estruturas e contextos complexos, resultantes da sua insularidade.
Palavras-chave: Cabo Verde. Política Externa. Sociedade Internacional. Cresci-
mento Económico. Desenvolvimento.
A
The article aims to understand Cape Verde’s trails in terms of foreign policy
in order to enhance its development. The country has followed, since its
independence in 1975, a nonalignment foreign policy, undertaking measures to
nd sources of funding with a view to focus its eorts on the adoption of the
best practices of governance. For this purpose, we have considered the following
study assumptions: the armation and projection of a country with few natural
resources, geographically limited and dependent on external nancial ows,
which needs to take advantage of its geographical features in order to overcome
the internal needs and, at the same time, are looking beyond their own borders;
the successes achieved by Cape Verde depend on ideational factors among which
we highlight – the transparency and accountability with the purpose of capturing
the appropriate resources, whether they are public or external private, the
experience and technical capacity on the uptake of cooperation programs and
1. Professor Auxiliar da Universidade
de Cabo Verde (Uni-CV). Investigador
do Centro de Administração e Políticas
Públicas (CAPP-ISCSP-UL) e do Centro
de Investigação em Ciências Sociais
e Políticas (CICSP-Uni-CV). Doutor em
Ciências Sociais pela Universidade de
Lisboa (ISCSP-UL). Bolseiro de pós-
-doutoramento pela Fundação Calouste
Gulbenkian na FCT-UNL enquanto mem-
bro da Rede de Estudos Ambientais em
Países de Língua Portuguesa (REALP).
Praia/Cabo Verde. ORCID: http://orcid.
org/0000-0002-0016-8167
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
projects, the ability of the country to adjust to the “windows of opportunities”
in the international system. To that end, we adopted an interdisciplinary
methodology applied to a case study of the archipelago, in order to analyze
events, structures and complex contexts, arising from its insularity.
Keywords: Cape Verde. Foreign Policy. International Society. Economic
Growth. Development.
Introdução
Após a independência da maioria dos países africanos que teve iní-
cio na década de sessenta do século passado, os recém-Estados passaram a
exigir das instituições e organizações internacionais o devido reconheci-
mento pelos direitos que foram, entretanto, adquiridos. Cabo Verde não
constitui exceção à regra, tendo os sucessivos governos, desde a indepen-
dência em 1975, apostado numa política externa
2
que atendesse às condi-
ções geográcas e climáticas adversas
3
do arquipélago, estando conscien-
tes da necessidade de redimensionar a política interna, face às mudanças
que, entretanto, se registavam no cenário internacional.
O país seguiu uma política externa de não-alinhamento, atuando
de forma rme e prudente, de modo a obter conança dos parceiros inter-
nacionais para garantir que os apoios fossem exclusivamente utilizados
para debelar as carências existentes no arquipélago, entre as quais a es-
cassez de recursos naturais com frequentes períodos de seca e fome. Esta
condição conduziu à necessidade da emigração, tanto espontânea como
forçada e, por último, à fragilidade da base produtiva nacional. Foi neste
período que se registaram ganhos substanciais em formas de doação de
países como a África do Sul, Espanha, Estados Unidos da América, Israel,
Portugal, Reino Unido, República Popular da China, Singapura, Suécia,
União das Repúblicas Socialistas Sovticas e Estados Árabes. Ao contrá-
rio de vários países em desenvolvimento, Cabo Verde tinha como princi-
pal meta assegurar a estabilidade do país e o seu desenvolvimento a longo
prazo. Fê-lo de diversas formas, através da promoção da boa governação,
respeito pelas liberdades fundamentais e pelos princípios do Estado de
direito democrático, impulsionado pela procura de uma maior eciência
e transparência das instituições democráticas.
A “prova de fogo” prendia-se com o dossier África do Sul, uma vez
que o arquipélago recusou aderir às sanções económicas por parte da Or-
ganização da Unidade Africana (OUA), atual União Africana (UA), contra
o regime do apartheid em 1986, pois exigia-se a Cabo Verde a não per-
missão de escala de aviões da South African Airways no Aeroporto Inter-
nacional do Sal (DAVIDSON, 1988, p. 229). Um dos motivos foi a atitude
prudente, mas rme, que insistiu que os voos renderiam anualmente a
Cabo Verde uma quantia superior a 25,4 milhões de dólares, igual a 31%
do PIB, avaliado na altura pelo Banco Mundial em 80 milhões de dólares
(LOPES, 2002, p. 344). Tratava-se, pois, de uma questão complexa que re-
queria um debate pormenorizado e uma abordagem cuidada da questão,
dado que, anal, estava em causa a necessidade de assegurar a viabilidade
económica do país (MADEIRA, 2006, p. 91).
2. O conceito de política externa
aqui utilizado diz respeito a todas as
políticas, incluindo as económicas e
de segurança adotadas por um Estado
em relação ao exterior (BERRIDGE e
JAMES, 2003, p. 107).
3. De entre as condições geográficas e
climáticas destacam-se: a exiguidade
territorial e a insularidade, dispersão
entre ilhas, ventos quentes e secos que
sopram do deserto do Saara em direção
ao arquipélago, resultando numa baixa
produtividade agrícola. Os cursos natu-
rais de água são escassos devido, por
um lado, às secas cíclicas e chuvas sa-
zonais e, por outro, à, escassez crônica
de água. Quando a precipitação ocorre,
entre agosto e outubro, dá-se sob a for-
ma de chuvas, por vezes, torrenciais que
causam danos significativos na erosão
hídrica (Neves, et al. p. 59-72).
89
João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
Cabo Verde procurou sempre manter relações estreitas com Portu-
gal, Brasil e demais países da Comunidade dos Países de Língua Portu-
guesa (CPLP) que, em julho de 1996, formaram uma organização de con-
certação político-diplomática entre os seus Estados-Membros no sentido
de reforçar a presença da Comunidade nas organizações internacionais e,
igualmente, promover a cooperação nos domínios da defesa e seguran-
ça, ciência e tecnologia, educação e saúde, cultura, promoção e difusão
da língua portuguesa. O arquipélago possui igualmente relações com os
países da Francofonia e goza, desde 1977, do estatuto de observador asso-
ciado na Agência de Cooperação Cultural e Técnica (ACCT), atualmente
Organização Internacional da Francofonia (OIF).
Imagem 1- Mapa continente Africano
Fonte: Cities and Places (2018)
Cabo Verde carateriza-se por ser um pequeno Estado africano que
se encontra localizado no Atlântico Médio entre África, Europa e América
e que tem vindo a preconizar uma política externa assente no pragma-
tismo e defesa do interesse nacional (AMANTE DA ROSA, 2007, p. 165;
GRA, 2014, p. 270; MADEIRA, 2016, p. 90). Baseia a sua conduta numa
cultura de paz (CARDOSO, 1986, p. 15), de dlogo e de não ingerência nos
assuntos internos de outros Estados.
As características do meio geogco, geralmente associadas à in-
sularidade, pequena superfície, terreno montanhoso e escassez de recur-
sos naturais e períodos de seca prolongados têm despertado o país para
a necessidade da sua viabilização no cenário internacional, procurando
conquistar a credibilização da imagem no exterior e o reforço das rela-
ções político-diplomáticas, particularmente entre os países que fazem
parte da região ocidental de África
4
. A promoção do desenvolvimento
acarreta custos acrescidos para o Estado, tornando-o dependente de u-
xos externos, particularmente das remessas dos emigrantes, dos investi-
mentos no setor do turismo e dos programas de cooperação e de ajuda
pública ao desenvolvimento
5
.
A aposta nas relações externas constitui um mecanismo necessá-
rio para multiplicar e diversicar parceiros, promovendo, deste modo,
4. Na região da Comunidade Econó-
mica dos Estados da África Ocidental
(CEDEAO), oito são francófonos (Benin,
Burquina Faso, Costa do Marfim, Guiné-
-Conacri, Mali, Niger, Senegal e Togo),
cinco são anglófonos (Gâmbia, Gana,
Libéria, Nigéria e Serra Leoa), dois são
lusófonos (Cabo Verde e Guiné-Bissau).
5. A cooperação para o desenvolvimento
carateriza-se por um dos instrumentos
da política externa que os Estados
utilizam no sentido de aproximar
tanto os países desenvolvidos, como
os países em vias de desenvolvimento,
facilitando, desta forma, o diálogo.
Todo este processo tem como pano de
fundo o envolvimento dos doadores na
formulação de estratégias de desenvol-
vimento. É esperado que os doadores
e os recetores da ajuda colaborem
entre si de forma eficaz. Em seguida,
ocorre a implementação de estratégias
de desenvolvimento a fim de que se
possa avançar para atingir os objetivos
estabelecidos. Neste contexto, os atores
nacionais ou estrangeiros e os países
beneficiários desempenham um papel
decisivo (DEGNBOL-MARTINUSSEN e
ENGBERG-PEDERSEN, 2005, p. 1). Cabo
Verde aderiu em 1977 à categoria dos
Países Menos Avançados (PMA), o que
permitiu aceder, designadamente, a um
conjunto de ações, programas ou pro-
jetos de ajuda ao desenvolvimento e à
concessão de preferências comerciais e
assistência técnica. Em janeiro de 2008
o arquipélago transitou para a categoria
de País de Rendimento Médio. A boa
aplicação das ajudas internacionais e a
estabilidade social, económica e política
desde a independência contribuíram
para o desenvolvimento do país. Con-
tudo, a entrada para este grupo limitou
o acesso a empréstimos concessionais,
em especial os encargos relativos à
amortização e aos juros junto dos par-
ceiros e organizações multilaterais.
90
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
uma inserção internacional segura e competitiva. Apesar das fragilidades
apontadas aos pequenos Estados insulares como sejam: isolamento geo-
gráco, reduzida dimensão territorial, baixa densidade populacional, po-
voamento disperso, dívida pública face ao produto interno bruto, baixas
taxas de qualicação e, por vezes, desajustadas em relação ao mercado de
trabalho, economias de pequena escala, número limitado de mercados de
exportação e exposição continuada a riscos e vulnerabilidades ambien-
tais (MADEIRA, 2017, p. 18; SANTOS, 2011, p. 12; TOLENTINO, 2007,
p. 135), as opções políticas têm caminhado no sentido de procurar apro-
veitar as caraterísticas geogcas do arquipélago para projetar o país e,
desse modo, colmatar as suas necessidades internas.
De entre as particularidades geográcas, territoriais e socioeco-
nómicas, destaca-se a extensa Zona Económica Exclusiva (ZEE)/Plata-
forma Continental (PC) de Cabo Verde, que vai além dos 796.840 km2,
ou seja, uma área quase 20.000 vezes maior que a parte emersa (DIAS e
CARMO, 2010, p. 250), o que resulta na fragilidade das suas fronteiras.
Outras especicidades incluem não só Cabo Verde, mas também as ilhas
Canárias, Açores e Madeira que se encontram distantes da costa e me-
nos expostas aos problemas fronteiriços, entre os quais: epidemias, dis-
putas territoriais e questões religiosas. São ilhas facilmente navegáveis,
particularmente rentáveis para o turismo e indústria pesqueira, apesar
da pressão sobre os recursos naturais limitados. Este contexto alargado,
permite o fomento da produção e distribuição de energia proveniente
de fontes renováveis (eólica, geotérmica, hidráulica, maremotriz e solar),
assim como o acesso a programas de empreendedorismo marítimo. Por
exemplo, a EMPREAMAR
6
desenvolve em em Cabo Verde um programa
para o setor marítimo das comunidades costeiras que dependem da eco-
nomia marítima, através da implementação de soluções inovadoras, a m
de criar vantagens competitivas. Trata-se de um projeto nanciado pela
Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimen-
to (AECID), Instituto Nacional de Desenvolvimento das Pescas (INDP),
Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) e Campus do Mar.
É neste contexto que a relação deste país com parceiros, como por
exemplo a União Europeia, os Estados Unidos e, mais recentemente a
China, tem sido de vital imporncia (MADEIRA, 2017, p. 10). Consciente
das suas limitações, Cabo Verde tem procurado implementar parcerias
que valorizem as suas especicidades insulares, em particular a sua po-
sição geoestratégica privilegiada no Atntico. Als, é uma das vocações
que o arquipélago tem explorado desde a sua descoberta e que serviu, du-
rante séculos, como importante “placa giratória do comércio triangular
entre a África, a Europa e as Américas” (PEREIRA, 2011, p. 20). O facto
de se localizar a aproximadamente 500 km da costa ocidental africana, no
cruzamento das principais rotas Norte-Sul e Este-Oeste, o arquipélago
tem conferido um conjunto de oportunidades, tanto no domínio marí-
timo quanto no aéreo. Quanto ao primeiro, é de salientar as facilidades
na prestação de serviços aos navios de passageiros e de carga no Porto da
Praia (Ilha de Santiago), no Porto Grande, Mindelo (Ilha de São Vicente),
no Porto Novo (lha de Santo Antão) e no Porto de Palmeira (Ilha do Sal).
Obviamente, isto traz a necessidade de acompanhar a concorrência de
6. Ver a este respeito: EMPREAMAR
CV, O meio marinho com recurso para o
empreendedorismo em Cabo Verde, EM-
PREAMAR, Mindelo, 2018. Disponível
em <http://www.empreamarcv.org/>.
Acesso em 09 jul. 2018.
91
João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
vários portos, como o de Las Palmas, que oferece uma ampla rede de
serviços, incluindo portos de pesca e marinas; o de Dakar com acesso
privilegiado aos mercados nacionais do Senegal e do país vizinho, Mali,
em particular após a reabilitação dos caminhos-de-ferro de mais de 700
quilómetros que ligam Dakar a Bamako; [3] o de Abidjan que permite
chegar aos países vizinhos da Costa do Marm sem ligação ao mar, no-
meadamente: Mali, Burquina Faso ou Níger.
No que respeita ao transporte aéreo, Cabo Verde desempenhou,
até hoje, um importante papel, quer no plano económico quer no militar.
A primeira travessia aérea do Atlântico Sul ocorreu entre março e junho
de 1922 e permitiu ligar as cidades de Lisboa e Rio de Janeiro. Esta via-
gem foi protagonizada por Sacadura Cabral e Gago Coutinho e passou
pela cidade do Mindelo, Ilha de São Vicente em Cabo Verde. O ato foi
particularmente importante uma vez que foram testados aparelhos de
navegação que marcaram a história da aviação mundial. De 1963 a 1975,
o Aeródromo de Trânsito N.º 1 da Força Aérea Portuguesa (FAP) foi ins-
talado no aeroporto do Sal que apoiava as ligações aéreas entre Portugal
e as suas províncias ultramarinas em Africa. Entre 1967 e 1993, o aeropor-
to internacional do Sal foi utilizado como ponto de reabastecimento de
aviões pela SAA, uma vez que foram negados os direitos de a aterragem
e reabastecimento pela maioria dos países africanos, devido ao protesto
internacional contra o regime de segregação racial na África do Sul. Mais
tarde, as companhias aéreas - Cubana de Aviación e Aeroot - Russian Air-
lines utilizaram o respetivo aeroporto para reabastecimento e transpor-
te de passageiros (GOMES e MOREIRA DE SÁ, 2008, p. 370; MAFFIA,
2008, p. 52). Desde 2017, o aeroporto do Sal tem sido utilizado pela South
Atlantic Airbridge, operado pela Air Tanker entre o Reino Unido e as Ilhas
Malvinas. Trata-se de um acordo temporário até 2020, altura em que se
espera que esteja reparada a pista de descolagem e aterragem do aeropor-
to da Ilha de Ascensão
7
.
Atualmente, o principal desao do país passa pelo reforço no esta-
belecimento de acordos estratégicos, atendendo ao respeito pelos direitos
humanos, transparência, cumprimento das regras democráticas, princí-
pios de bem-estar e de justiça social. À semelhança do que se passou em
anos anteriores, Cabo Verde manteve a liderança dos países lusófonos no
Índice de Democracia de 2018, elaborado pelo The Economist. O arqui-
pélago ocupa o 23.º lugar entre os 167 Estados comtemplados pelo estu-
do. Este aspeto assume particular relevância, uma vez que se encontra
a três posições à frente de Portugal e a vinte e seis do Brasil. Importa
igualmente mencionar as declarações do empresário sudanês-britânico
Mo Ibrahim, fundador da Celtel e presidente da fundação internacional,
com o seu nome, que apontou em abril de 2017, Cabo Verde como um
exemplo de Governação em África. Mo Ibrahim apelou para que “em vez
de olharem para a China ou América, olhem para Cabo Verde! Vejam
como é que conseguiram”
8
. Als, a observância destes princípios, com
resultados diretos na melhoria dos padrões de desenvolvimento humano,
fez com que Cabo Verde obtivesse o estatuto de um Estado de Direito
Democrático, que atualmente goza de um elevado grau de credibilidade,
particularmente no cumprimento das normas de boa governação (BA-
7. Ver a este respeito: Refuelling Hub for
South Atlantic Airbridge confirmed as
Cape Verde. MercoPress, Montevideo,
24 jul. 2017. Disponível em: <http://
en.mercopress.com/2017/07/24/
refuelling-hub-for-south-atlantic-airbri-
dge-confirmed-as-cape-verde> Acesso
em 09 jul. 2018.
8. Ver a este respeito: “Olhem para
Cabo Verde” diz Mo Ibrahim ao
continente africano. LUSA/Deutche
Welle, Lisboa, 08 abr. 2017. Disponível
em: <https://www.dw.com/pt-002/
olhem-para-cabo-verde-diz-mo-ibrahim-
-ao-continente-africano/a-38352584>
Acesso em 09 jul. 2018.
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
KER, 2009, p. 135; FRYNAS, WOOD & SOARES DE OLIVEIRA, 2003, p.
46; MADEIRA & REIS, 2018, p. 183).
De entre as cinco antigas colónias portuguesas que obtiveram in-
dependência em meados da década de 1970, três sofreram guerras civis,
regimes opressivos e momentos de grande instabilidade política (Ango-
la, Guiné-Bissau e Moçambique). Cabo Verde e São Tomé e Príncipe -
zeram, no início da década de 1990, as respetivas transições políticas de
um sistema de partido único para uma democracia multipartidária e,
desde então, “têm continuamente produzido governos democraticamen-
te eleitos” (VEENENDAAL e CORBETT, 2014, p. 538), apesar do fraco
desempenho económico (BAKER, 2006, p. 504; SEIBERT, 2006, p. 135;
CAHEN, 1991, p. 141).
Cabo Verde ao optar por uma política de não-alinhamento, pro-
curou estabelecer e cultivar relações de cooperação com países como
Angola, Alemanha, Brasil, Coreia do Sul, Cuba, EUA, França, Portugal,
Senegal, República Popular da China e Rússia na base da conança,
proximidade e respeito pelas diferenças em torno dos regimes políticos
e económicos, tradições culturais e sistemas religiosos. A cooperação
assentou essencialmente nos domínios da saúde, educação e desporto,
infraestruturas e fomento empresarial, recursos humanos, nanceiros,
transportes e comunicações, energia, agricultura, pesca, pecria e tu-
rismo. O arquipélago mantém relações bilaterais com todos os países
lusófonos e é membro de várias organizações internacionais. Partici-
pa em diversos encontros sobre questões políticas, económicas e am-
bientais
9
. Assim sendo, torna-se necessário, em forma de pergunta e de
maneira clara, responder ao seguinte problema de pesquisa: perante as
condições edafoclimáticas do arquipélago, como sejam: reduzida super-
fície, solos pouco evoluídos, escassez de água, secas cíclicas e a inuên-
cia dos ventos quentes e secos que sopram do deserto do Sahara, quais
deverão ser os principais desaos de Cabo Verde em matéria de política
externa no sentido de colmatar a insularidade, dependência e exposição
a choques extremos? Para o estudo desta problemática, mostra-se im-
prescindível a adoção de um estudo qualitativo de base interdisciplinar
que permita cruzar múltiplas técnicas de recolha de dados em diferen-
tes momentos e lugares.
O presente artigo procura compreender o caminho percorrido
por Cabo Verde para melhor se analisar os resultados até hoje obtidos,
a partir do processo de formulação e implementação das decisões to-
madas no âmbito da política externa. Apesar de Cabo Verde ser una-
nimemente considerado pelos organismos internacionais um exemplo
de democracia, transparência e de boa governação em África (AFRICAN
DEVELOPMENT BANK, 2012, p. 16; EUROPEAN UNION, 2016, p. 3;
INTERNATIONAL MONETARY FUND, 2016, p. 10; WORLD BANK,
2011) e de ter alcançado em 2007 o estatuto de País de Rendimento Mé-
dio
10
, o certo é que importantes desaos ao nível da política externa se
impõem, particularmente num contexto mundial conturbado, marcado
por incertezas a nível interno, sendo, portanto, relevante que se com-
preenda os principais elementos que interferem no processo de tomada
de decisão dos Estados.
9. Cabo Verde é membro do Comité
Permanente Inter-Estados de Luta Contra
a Seca no Sahel (CILSS). Foi criada em
12 de setembro de 1973, na sequência
das secas que atingiram a região do
Sahel na década de 1970. Atualmente,
fazem parte treze Estados-Membros,
entre os quais oito costeiros (Benin,
Costa do Marfim, Gâmbia, Guiné-Cona-
cri, Guiné-Bissau, Mauritânia, Senegal e
Togo), quatro sem litoral (Burquina Faso,
Mali, Níger e Chade), e um insular (Cabo
Verde). No entanto, também sobre esta
questão, o arquipélago presidiu em 2017,
por um período de um ano, o Grupo dos
Pequenos Estados Insulares Africanos e
Madagáscar (em inglês SIDSAM) com
vista a adotar uma posição comum nas
organizações internacionais, regionais e
sub-regionais, especialmente em relação
à União Africana (UA), à Agenda 2063 e
à Agenda Global 2030 na promoção do
desenvolvimento sustentável.
10. Esta “subida” foi decidida em de-
zembro de 2004 pelas Nações Unidas e
tal deveu-se, em grande parte, ao facto
de Cabo Verde preencher pelo menos
dois dos três critérios seguintes: ter
subido o seu Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) e o Rendimento Per
Capita (RPC), apesar de alguns avanços,
continua ainda a faltar pontos-base no
Índice de Vulnerabilidade Econômica
(IVE) (PAIS, 2012, p. 65). A resolução da
Assembleia Geral 59/209 determinou
que a passagem para o grupo de PDM
só seria efetiva, após um período de
três anos, para permitir uma saída por
etapas suscetível de criar condições
para que a “promoção” não constitu-
ísse um obstáculo ao desenvolvimento
do arquipélago. Neste sentido, as
autoridades cabo-verdianas com o
apoio do Sistema das Nações Unidas,
criaram o Grupo de Apoio à Transição
(GAT) em que estiveram presentes os
principais parceiros internacionais para
a implementação e aperfeiçoamento de
uma estratégia progressiva de passa-
gem para o Grupo dos PDM. Ver a este
respeito: Arquipélago passa hoje a ser
País de Desenvolvimento Médio. Dispo-
nível em http://expresso.sapo.pt/africa/
arquipe lago-passa-hoje-a-ser-pais-de-
desenvolvimento-medio=f205442#gs.
HN2aAgs. Acesso em 09 jul. 2018.
93
João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
Compreender o processo de tomada de decisão em política externa
No domínio de Relações Internacionais é fundamental reconhecer
que o estudo da política externa adquiriu, nas últimas décadas, uma im-
portância acrescida, por constituir uma ferramenta essencial no posicio-
namento dos Estados no sistema internacional que o procuram no senti-
do de projetar o seu interesse nacional.
Ao longo da história da humanidade, diferentes povos se relaciona-
vam e interagiam entre si, com o objetivo de atingir certos ns e assim
concretizarem os seus interesses
11
. Um dos principais marcos históricos
da política externa surge a partir da assinatura do Tratado de Vestlia
em outubro de 1648. Por reestruturar a ordem internacional, o Tratado
passou a assegurar os princípios fundamentais que regem as relações en-
tre Estados, a saber: a separação de poderes e a não dependência e a não
interferência nos assuntos internos.
Este acontecimento histórico foi de vital imporncia para a comu-
nidade internacional, uma vez que se centrou no equilíbrio de poderes, na
convivência com base na denição de regras jurídicas, na concertação mul-
tilateral, no respeito pelo direito internacional e na prossecução de uma
diplomacia permanente (CR AVINHO, 2002, p. 50; FERNANDES, 1991, p.
30). Todavia, nem todos partilham desta opinião. Osiander (2001, p. 284),
por exemplo, considera que a origem do conceito de soberania surgiu an-
tes do século XVII. É perfeitamente possível, até muito provável, que te-
nha havido relações entre atores com base na soberania, antes mesmo da
palavra ter surgido no vocabulário. O grau de autonomia dos atores pode
variar, em parte, impulsionado pelas suas próprias escolhas, sem que haja
necessariamente um discurso em torno da ideia de luta pela hegemonia.
Na sua ótica, a dicotomia império-soberania é falsa, uma vez que, ao longo
da história, sempre existiram formas de cooperação. Já Teschke (2002, p.
6) argumenta que o sistema vestfaliano foi, desde sempre, caracterizado
por relações entre dinastias e outras comunidades políticas enraizadas na
forma de sociedade pré-capitalista. A lógica de disputas de interesses entre
dinastias, estruturou a política europeia até ao século XIX. Nesse artigo,
o autor adianta a hipótese de que a geopolítica europeia em torno das di-
nastias surgiu muito antes de 1648. Neste sentido, torna-se necessário re-
considerar “Vestlia” como um marco histórico que representa uma mu-
dança de paradigma no cenário geopolítico e fonte de referência no estudo
das relações internacionais. O autor propõe que se proceda a uma reexão
acerca do surgimento do moderno sistema europeu de Estados-Nações.
Apesar das observações apresentadas, o certo é que, ao longo do
tempo, assistiu-se a uma evolução notável nas relações entre Estados e,
entre estes com outros atores internacionais, que se foram desenvolvendo
em resposta às novas oportunidades e desaos. Nenhum Estado, mes-
mo uma superpotência, é autossuciente para atuar de forma isolada na
medida em que, cada vez mais, existe uma crescente interdependência
entre Estados, organizações e grupos com destaque mundial. Todavia, os
Estados nacionais continuam a ser os principais atores, senão exclusivos
da sociedade internacional
12
. Als, esta era, até há poucas décadas, cons-
tituída basicamente por uma constelação de:
11. O conceito de interesse nacional
refere-se àquilo que é considerado
como um objetivo vital ou desejável por
um determinado Estado nas Relações
Internacionais (BERRIDGE e JAMES,
2003, p. 181).
12. A designação de sociedade
internacional tornou-se um conceito ge-
nérico, muitas vezes associado à Escola
Inglesa. Porém, outros autores deram
igualmente um importante contributo
para a sua definição. Por exemplo, o
historiador alemão Heeren (1834) versa
sobre os sistemas de Estados, que de
uma forma ou doutra, acabaram por
influenciar o pensamento da Escola
Inglesa. O termo tem sido intrínseco ao
direito internacional desde, pelo menos,
o século XIX (Keene, 2002; Little, 2009;
Schwarzenberger, 1951). Bull e Watson
(1984) definem a sociedade internacio-
nal como um grupo de Estados (ou mais
geralmente, um grupo de comunidades
políticas independentes com poder de
decisão). Estes não formam um sistema
coerente, no sentido em que o compor-
tamento de cada ator constitui um fator
necessário para o cálculo em matéria de
relações sociais. Este pode ser realizado
pela via do diálogo, tendo em mente a
consolidação de instituições comuns,
bem como a definição de regras e
procedimentos comuns. Para esse
efeito, torna-se necessário reconhecer
os interesses de ambos no sentido de
manter os respetivos acordos (BUZAN,
1993, p. 330)
94
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
“Estados justapostos, ligados entre si por relações de interesse ou de força,
orientando-se apenas por vagas indicações dum direito internacional embrio-
nário e desprovido de mecanismos sancionatórios (…) as únicas formas de
organização existentes eram rudimentares e consistiam em relações de domínio
ou de equilíbrio de forças, em alianças temporárias contra inimigos comuns
e em sistemas de representação mútua, através da acreditação de diplomatas”
(GOMES, 1990, p. 57).
Contudo, numa perspetiva contemporânea, a alise da política ex-
terna, enquanto abordagem teórica diferenciada, teve a sua origem após a
Segunda Guerra Mundial. Na sua génese sobressaem as investigações de
Snyder, Bruck e Sapin (1954), de Harold e Sprout (1956; 1965) e de Rosenau
(1966). Estas produções académicas contribuíram para a construção do
campo de alise da política externa que, no período pós-Guerra-Fria,
adquiriu uma renovada e importante centralidade no âmbito de Relações
Internacionais (FREIRE e VINHA, 2011, p. 15; HAGAN, 2001, p. 10).
Os atores internacionais, com particular destaque para os Estados
nacionais, passaram a recorrer à política externa como um meio ecaz
para a projeção internacional, embora se possa considerar que a sua for-
mulação e implementação não constituem tarefas simples, nem tão pou-
co lineares. Estas decorrem essencialmente da necessidade de se traba-
lhar diferentes modelos analíticos que possibilitam compreender de for-
ma adequada o funcionamento da sociedade internacional. Existe uma
intrínseca relação entre a dimensão interna ou doméstica e a dimensão
externa ou internacional ou, por outras palavras, entre o agente e a estru-
tura (ROSENAU, 1969, p. 45).
Contudo, há que ter em consideração, no entanto, em razão de cir-
cunstâncias internas e externas e a sua evolução ao longo do tempo, a di-
mensão da política interna dos Estados. Anal é disto que se trata: uma po-
lítica pública que deveria, mais do que nunca, mostrar continuidade, seja
por razões institucionais ou por força das suas responsabilidades. Putnam
(1993, p. 432) chama a atenção para a análise das determinantes internas
no sentido de enfatizar a política dos Estados. Entre os exemplos, destaca
o papel dos legisladores, partidos e dos grupos de interesse (económicos
e não-económicos). Aponta igualmente outros fatores que determinam
as decisões. Estes dizem respeito aos arranjos institucionais, eleições e
mudanças ao nível da opinião pública, assim como o papel das diferentes
autoridades na assunção das suas responsabilidades. Não obstante haver
discordância quanto à prevalência dos fatores internos sobre os externos
ou vice-versa, o certo é que existe uma relação bidirecional entre estas di-
mensões. Por um lado, considera-se que o contexto interno constitui uma
variável relevante na denição e priorização da agenda da política externa
(HUDSON, 2007, p. 46; MILNER, 1997, p. 57; SAIDEMAN e AYRES, 2007,
p. 195) e, por outro lado, o contexto internacional constitui um elemento
fundamental e de referência no desenvolvimento interno ou doméstico
(KEOHANE e NYE, 2000, p. 87; WALTZ, 1979, p. 34).
Sendo assim, conceitua-se, neste artigo, a política externa como um
conjunto de instrumentos, estratégias e objetivos que os responsáveis go-
vernamentais optam no que concerne à formulação política para assim res-
ponder ao ambiente externo - atual e vindouro (ROSATI, 1994, p. 230). A
política externa consiste na elaboração por parte dos decisores políticos ou
95
João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
dos seus representantes devidamente autorizados, de programas orienta-
dos para a resolução de determinados problemas (HERMANN, 1990, p. 12).
Além de discutir a respeito de agente e estrutura, a política externa
engloba outras dimensões analíticas, entre as quais as mais subjetivas,
como sejam: crenças, valores, atitudes e interesses subjacentes ao proces-
so de formulação e decisão (FREIRE e VINHA, 2011, p. 18). O interesse
nacional explica porque um qualquer Estado se comporta de uma deter-
minada maneira e age de uma forma especíca no ambiente internacio-
nal. Geralmente, isto ocorre para se estar à altura das expectativas de ou-
tros Estados ou Organizações. Os Estados preservam e protegem os seus
valores e interesses. Isso poderá ser feito de várias maneiras de acordo
com o que é esperado. Poderá aqui incluir-se naturalmente a componente
de cooperação. Espera-se que esta seja reforçada pelo desenvolvimento de
outras duas componentes. A primeira prevê o desenvolvimento de uma
cooperação estruturada através de um determinado quadro político. A
segunda remete para o reforço da cooperação por intermédio da compo-
nente preferencial dos atores, a partir de uma alise cuidadosa dos ob-
jetivos que ambos têm em comum. Contudo, vários são os critérios que
poderão ser aplicados com o objetivo de dotar os Estados de ferramentas
para a tomada de decisões. Trata-se aqui de um processo que resulta de
uma escolha consciente dos riscos que lhes estão associados.
Este debate leva-nos a reetir acerca de uma problemática impor-
tante que se prende essencialmente com as motivações subjacentes ao
processo de formulação da política externa, nomeadamente o papel e as
características individuais do decisor, bem como dos quadros ideológicos
em que tais decisões são tomadas (JØRGENSEN, 2006, p. 52). Os objeti-
vos a alcançar, ns a atingir, recursos internos e o contexto externo in-
terferem na política externa de cada Estado. Ciente de que estes aspetos
constituem importantes elementos para a tomada de decisões, cabe aos
representantes políticos, avaliar os instrumentos da política externa a se-
rem utilizados, consoante os ns a que se destinam.
Política externa cabo-verdiana: da projeção à credibilização internacional
Localizado no Atlântico Médio, na região da costa ocidental africa-
na, aproximadamente a 500 km do Senegal, o arquipélago de Cabo Verde
é composto por dez ilhas e vários ilhéus que formam uma área geog-
ca de 4030 km
2
, tendo aproximadamente 539.560 habitantes (WORLD
BANK, 2018). À semelhança dos pequenos Estados insulares africanos,
Cabo Verde confronta-se com importantes desaos no que concerne ao
seu desenvolvimento, sobretudo por se tratar de um país insular, vulne-
rável e dependente de uxos externos. Os Pequenos Estados Insulares ca-
raterizam-se por serem espaços abertos à inuência externa, à mudança
e à adaptação. Apresentam geralmente algumas características comuns:
“Estados soberanos ou territórios autónomos, insulares e com população
inferior a um milhão e meio de habitantes” (TOLENTINO, 2007, p. 139).
No que concerne à política externa cabo-verdiana, é possível iden-
ticar dois grandes períodos, desde a sua fundação enquanto Estado in-
dependente até à atualidade: O primeiro teve lugar entre 1975 e 1990,
96
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
num regime de partido único que assentava na unidade política entre
a Guiné-Bissau e Cabo Verde. O segundo vai de 1991 até à atualidade e
foi, sobretudo, marcado pela passagem de um regime monopartidário
para um regime multipartidário. Cabo Verde teve um percurso bastante
peculiar no conjunto dos países africanos de expressão portuguesa, uma
vez que, durante este período, deram-se ruturas nas instituições políticas
e, ao mesmo tempo, formas de continuidade nas relações político-diplo-
máticas, em particular com a antiga metrópole (MADEIRA, 2016, p. 91).
Entre 1975 e 1990, a política externa de Cabo Verde decorreu num
contexto internacional conturbado, marcado sobretudo pela Guerra Fria,
que inuenciou as décadas seguintes. Perante esta conjuntura, o Estado
soberano teve que atuar de forma cautelosa mas rme por forma a obter
a conança interna e dos parceiros internacionais que pudessem garantir
os apoios essenciais para fazer face às carências existentes no arquipéla-
go. Neste período, destacam-se duas importantes fases: a primeira das
quais, de 1975 a 1980, em que a política externa estava, de certo modo,
direcionada para África, com adesão à OUA, atual UA, partilhando dos
mesmos objetivos com a Guiné-Bissau e de outras antigas colónias por-
tuguesas. Importa aqui destacar o jogo-duplo por parte da elite política
cabo-verdiana que foi posta em prática no seio do partido, no qual o po-
der foi exercido de forma a manter boas relações com a URSS (formação
e capacitação dos quadros médios e superiores) e os EUA (concessão de
apoios na área da ajuda alimentar, combate à seca e deserticação e ab-
sorção de mão-de-obra cabo-verdiana) (GRAÇA 2014, p. 272). Para fazer
face à grave crise que o país atravessava na altura, a Assembleia Nacional
decidiu assumir uma posição de neutralidade na Guerra Fria e exprimir
a sua posição rme e coerente em relação a assuntos políticos sensíveis
como por exemplo o “dossier” África do Sul e a instalação de bases mili-
tares em território nacional.
A segunda fase decorreu entre 1980 e 1990 e foi marcada pela rutu-
ra do projeto de unidade Guiné-Cabo Verde, como consequência do gol-
pe de Estado a 14 de novembro de 1980 ocorrido na Guiné-Bissau, desig-
nado de "Movimento Reajustador" perpetrado por João Bernardo “Nino”
Vieira contra Luís Cabral, acabando por o afastar da presidência, lugar
que ocupava desde 1973. Este processo resultou em divergências no seio
do partido e que acabaram por desmantelar a unidade política de ambos
os países, causando, em Cabo Verde, a mudança do Partido Africano para
a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) para Partido Africano
da Independência de Cabo Verde (PAICV) (NÓBREGA, 2003, p. 126-127).
As preocupações sobre a viabilidade da economia nacional, a carên-
cia a nível de infraestruturas e de capital humano, levaram os dirigentes
políticos a traçarem, como objetivos centrais de Cabo Verde, o desenvol-
vimento e a consolidação da política externa, através da maximização das
relações com os países doadores (MADEIRA, 2016, p. 92). O “o condu-
tor” da política externa foi a de conseguir, de forma estratégica, adquirir
os meios que pudessem auxiliar o país no seu desenvolvimento, com o
propósito de construir a imagem de um país viável e economicamente
sustentável que, de alguma forma, contribuísse para orientar a política
externa durante a Segunda República.
97
João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
A queda do muro de Berlim em novembro de 1989 e a reunicação
alemã em outubro de 1990, simbolizaram o desmoronamento da União
Soviética, dando início à terceira onda de democratização (HUNTINGTON,
1994, p. 20) na América Latina e no continente africano. Cabo Verde acom-
panhou essa tendência na medida em que adotou o regime democrático
13
que passou a constituir, por excelência, o pilar da sua política externa
(GRA, 2012, p. 220). O arquipélago passou a apresentar-se no cenário
internacional como um Estado democrático que segue um conjunto de
princípios, entre os quais da liberdade e o respeito pelos direitos huma-
nos, ciente de que o desenvolvimento económico depende da boa gestão
que se quer do investimento direto estrangeiro (IDE), da ajuda pública ao
desenvolvimento (APD) e das remessas dos emigrantes.
Ao abrir-se à economia de mercado, o país estabeleceu como meta
essencial para o seu desenvolvimento, a aposta no sector privado - no in-
vestimento nos transportes, nas comunicações, energia e valorização dos
escassos recursos naturais existentes. O arquipélago tem centrado a sua
ação na consolidação do regime democrático, sobretudo com a difusão
dos seus valores fundamentais: respeito pelos direitos humanos, boa go-
vernação e transparência. O esforço passou pela conceção de uma imagem
de um país estável, promotor da estabilidade, da paz e dos valores demo-
cráticos. Cabo Verde passou de um Estado considerado por diversas orga-
nizações internacionais como “inviável” para um Estado viável, credível
e reconhecido internacionalmente. Pelo fato de ter adotado uma política
externa numa perspetiva realista, tendo em conta a reduzida dimensão
em termos de superfície, baixa densidade populacional, agravada pelo
afastamento, insularidade e distância a que as ilhas se encontram, rele-
vo e clima difíceis, escassez de recursos naturais, fraco desenvolvimento,
dependência de programas de ajuda externa, exigiu que fossem criadas
estratégias de intensicação e de gestão responsável das ajudas externas
(MADEIRA, 2015, p. 87). O cumprimento das obrigações nanceiras ex-
ternas, em conformidade com as regras e princípios constitucionais, aca-
baram por se traduzir na abertura ao comércio e ao investimento, permi-
tindo, desse modo, uma relação económica bem-sucedida e mutuamente
vantajosa com diversos países. O arquipélago tem procurado estabelecer
relações de proximidade e de dlogo, tanto no plano bilateral como nas
insncias multilaterais em organismos como a UA, a CEDEAO
14
e da
sinergia criada entre as diversas agências e organizações da ONU como
o PNUD, a FNUAP e a UNICEF, contribuindo assim, para uma maior
ecácia na implementação de programas de desenvolvimento.
O Estado cabo-verdiano, a partir da abertura política em 1990 abre
espaço ao sector privado, passando este a assumir um papel de destaque
no processo de crescimento económico e desenvolvimento do país. Veri-
cou-se uma recentralização dos instrumentos da política externa, dire-
cionados para a internacionalização da economia, reforço e intensicação
das relações com outras potências (MACEDO, 2012, p. 12). Por exemplo,
os EUA, a União Europeia e a China têm sido, nestes últimos anos, os
principais parceiros do arquipélago, nomeadamente no acesso ao crédito,
mas também de uma forma mais geral, nas modalidades de assistência
técnica ao conjunto dos países que fazem parte do hemisfério sul.
13. A abertura política deu-se com a
revisão da Constituição em 1990 que
permitiu a realização das primeiras
eleições livres no país. As primeiras
eleições multipartidárias em Cabo Verde
tiveram lugar a 13 de janeiro de 1991
com a vitória do Movimento para a
Democracia (MpD).
14. Cabo Verde é desde 1976 membro
da CEDEAO e a sua condição de Estado
Insular não tem passado despercebida
no seio da comunidade, sobretudo, a
partir da revisão do Tratado em 1993. O
art.º 68 do respetivo Tratado determina
que deve ser objeto de um tratamento
especial no que se refere à insularidade.
Este, tal como se encontra atualmente,
acaba por limitar a sua atuação em
relação aos mercados da região onde
se insere. Apesar de, nestas últimas
décadas, se verificar um esforço na
tentativa de aproximação e cooperação
com os grandes mercados da Europa,
dos EUA e da China, o certo é que esta
situação, acaba por encobrir em parte
as suas vulnerabilidades, consequentes
da tal insularidade.
98
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
Com a alterncia política registada em 1991, Cabo Verde passou a
primar pela sua inserção na economia mundial, considerando que é fun-
damental basear a sua ação numa política externa que privilegie a diplo-
macia económica
15
para assim procurar criar as condições necessárias para
assegurar a respetiva estabilidade e credibilização externa. Desde essa
data, a diplomacia cabo-verdiana tem vindo a conquistar espaço de forma
efetiva, permitindo, desse modo, uma inserção mais dimica no cenário
internacional. No domínio da segurança, em particular com os atentados
de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e Washington, D.C., a rápida
condenação dos ataques terroristas, assim como a manifestação da dis-
ponibilidade e conança por parte do governo de Cabo Verde no sentido
de permitir que a Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) utilizasse o
espaço aéreo do arquipélago, dissipou quaisquer dúvidas sobre o passado
socialista do PAIGC. Além disso, o elevado número de cabo-verdianos a
residir na Europa e nos EUA e a relação de longa data com os seus parcei-
ros ocidentais, levou a sugerir que os dirigentes políticos cabo-verdianos
iriam fortalecer laços estreitos de cooperação com a Europa e os EUA.
Os programas do Governo de 2006-2011 e de 2011-2016 denem
três eixos fundamentais da política externa cabo-verdiana, a saber: uma
diplomacia ao serviço do desenvolvimento na era da globalização; uma
política externa de armação de Cabo Verde no mundo e a projeção das
comunidades cabo-verdianas no exterior, passando pelos conceitos de na-
ção global, arquipelágica e diasporizada (COSTA e PINTO, 2014, p. 217).
Estes aspetos chamam implicitamente a atenção para o investimento e
a aposta em outros setores como o do turismo, a cultura e o mar, que
contribuem para proporcionar uma outra dimensão à diplomacia eco-
nómica com o propósito de se ampliar sinergias e potencializar a sua
atuação no mercado, com a meta principal de atrair o IDE e incrementar
as exportações.
A estratégia passa por potencializar outros mercados internacio-
nais, como sejam os mercados africanos e o das Regiões Ultraperiféri-
cas (RUP)
16
, além de preservar os tradicionais mercados da UE e da CE-
DEAO. Corsino Tolentino (2015, p. 2) trouxe para o debate em julho de
2015, a necessidade de se perspetivar uma maior integração do arquipéla-
go na região e no continente africano. O autor considera que Cabo Verde
é parte da geopolítica africana e, neste sentido, o país deveria assumir a
sua natureza e vocação inter-regional, no sentido de aproveitar de forma
mais ecaz a sua relação com a comunidade onde se insere, o que não sig-
nica “abrir mão” de outras parcerias estratégicas consideradas úteis para
o desenvolvimento do país. Este debate visou consubstanciar a política
externa cabo-verdiana num discurso e numa prática que apontam para o
crescente papel do país no cenário internacional.
Com as eleições legislativas em março de 2016, que ditaram a maio-
ria absoluta do partido Movimento para a Democracia (MpD) no Parlamen-
to, o novo Governo eleito, com a apresentação em maio de 2016, do Pro-
grama do Governo para a IX Legislatura (2016-2021), teve a preocupação
de seguir uma política externa com vista a reforçar as parcerias existentes
e promover a criação de novos espaços de cooperação internacional. Para
concretizar este desiderato, Cabo Verde tem vindo a enveredar por uma
15. A diplomacia económica preo-
cupa-se com as questões da política
económica, por exemplo, a atuação
por parte de delegações que atuam no
seio de Organizações. Os diplomatas
económicos monitorizam e relatam
as políticas económicas dos países e
aconselham os governos de origem
sobre a melhor forma de os influenciar.
A diplomacia económica emprega os
recursos económicos, entre os quais as
recompensas ou sanções na prosse-
cução de um determinado objetivo
da política externa, sendo, por vezes,
designado de “política econômica”
(BERRIDGE e JAMES, 2003, p. 91).
16. As Regiões Ultraperiféricas (RUP)
da União Europeia (UE) dizem respeito a
territórios dependentes dos Estados-
-membros da UE, geograficamente
distantes e devem ter um tratamento
diferenciado, com salvaguardas especí-
ficas, nos termos do Tratado de Amster-
dão (1997), por serem partes integrantes
da UE. Cabo Verde não pertence à UE,
mas mantém desde novembro de 2007
uma Parceria Especial com a UE, que
visa fortalecer a aprofundar os laços
existentes entre ambos para prossegui-
rem e reforçarem o diálogo político e a
convergência económica, privilegiando,
para além da tradicional relação doa-
dor-beneficiário. Esta relação baseia-se
num quadro de confiança mútua e
interesses comuns com base em valores
e princípios, entre os quais: democracia,
boa governação, Estado de direito e res-
peito pelos direitos humanos e liberda-
des fundamentais. Ver a este respeito:
EUROPEAN UNION EXTERNAL ACTION:
Cape Verde and the EU. Disponível em:
<https://eeas.europa.eu/headquarters/
headquarters-homepage/19890/cape-
-verde-and-eu_en> e COMMISSION OF
THE EUROPEAN COMMUNITIES: The
Outermost Regions: an asset for Europe.
Disponível em <http://www.parliament.
bg/pub/ECD/73430COM_2008_642_
EN_ACTE_f.pdf>. Acesso em 09 jul.
2018 e LORINCZ, A., 2011, p. 5-12.
99
João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
diplomacia assente na materialização das suas estratégias politicas. Des-
taca-se aqui o esforço que o país tem adotado no sentido de melhorar
o ambiente de negócios para atrair o IDE
17
, em particular de empresas
internacionais e/ou consórcios que procuram o arquipélago como plata-
forma de inserção na região africana.
Principais linhas de força da política externa cabo-verdiana
Por se tratar de um Estado que goza da estabilidade das suas insti-
tuições, que garante a democracia, o Estado de Direito e o respeito pelos
os direitos humanos, encontra-se localizado no Atlântico Médio, o que
acaba por despertar mais atenção e interesse por parte de diferentes par-
ceiros, nomeadamente dos EUA, do Brasil, da UE e da China para a possi-
bilidade de rmar acordos de cooperação e consolidar alianças. Para con-
tinuar a mobilizar a ajuda externa, é necessário proceder a uma leitura
atenta do contexto internacional, consciente de que vários são os desaos,
sendo indispensável direcionar um olhar permanente às linhas de força
no sentido de adquirir, aprofundar ou atualizar conhecimentos relativa-
mente a acontecimentos e estruturas, bem como a mudanças e continui-
dades que têm lugar no panorama internacional. Cabo Verde terá, nesse
âmbito, de ser capaz de ajustar a sua política externa às exigências da
sociedade internacional.
Num contexto de grandes mudanças, desde a segurança às reali-
dades sociais, económicas e ambientais especícas, as decisões implicam
efetivamente uma renovação das disposições relativas à política externa.
As diretrizes e linhas de ação deverão continuar a se estruturar em torno
de uma inserção mais segura e sustentável. Para um país arquipelágico é
fundamental fortalecer parcerias tradicionais em articulação com as mais
recentes, de modo a dinamizar a APD. Esta ação tem sido efetuada atra-
vés de uma política de desenvolvimento assente na gradual diversicação
económica e redução da dependência externa.
A diversicação da economia encontra-se no topo da lista de prio-
ridades do programa do Governo para a IX Legislatura (2016-2021) que
pretende atrair mais investimento, gerar emprego e acelerar o crescimen-
to económico, especialmente no domínio das infraestruturas por forma
a melhorar o ambiente de negócios para as pequenas e médias empresas.
Além do turismo, o governo procura atrair investimentos para os secto-
res produtivos, nomeadamente nas áreas da indústria, serviços, energias
renováveis,naas e banca
18
.
Em janeiro de 2018 foi publicado em Abidjan, Costa do Marm,
o relatório Perspetivas Económicas em África. O estudo aponta para a
necessidade de diversicação da economia cabo-verdiana. Esta constitui
uma prioridade com vista a garantir um crescimento sustentável e dura-
douro. O setor dos serviços representa aproximadamente 70% do PIB e o
do turismo 20%. Um ponto negativo apontado diz respeito à necessidade
do governo estimular o crescimento económico e a produtividade, atual-
mente em declínio. Tal só será possível mediante a diversicação da sua
base económica, do reforço da resiliência a choques provenientes do exte-
rior, designadamente os relacionados com os acontecimentos climáticos
17. O Governo criou em julho de 2016
a agência Cabo Verde Tradind Invest
(CVTI), cuja missão é a de preparar o
país para atrair os investimentos e ser
mais eficaz nas respostas às exigên-
cias dos investidores que procuram
o arquipélago. Na página que a CVTI
mantém na Web encontram-se os
diversos motivos para se investir em
Cabo Verde: [1] localização geográfica e
estratégia privilegiada de proximidade
entre os três continentes (África, Europa
e Américas); [2] Estabilidade política
(Boa Governação - 4º Melhor em África
(Mo Ibrahim Foundation); Liberdade de
imprensa (País de 1ª categoria (Freedom
House); Democracia (27ª Posição no
Mundo); Perceção da Corrupção (2º
em África e 39º no Mundo (Interna-
tional Transparency); [3] Estabilidade
Económica (Liberdade Económica - 3º
na CEDEAO e 9º em África (Economic
Freedom Index - Heritage Foudation);
acesso internet ao público em geral (4ª
posição em Africa); Índice de Desenvol-
vimento TIC’s (IDI (4º em África e 1º na
África Ocidental); Desenvolvimento das
Infraestruturas (9º em Africa - África
Infrastructure Development Index); o
facto do Governo cabo-verdiano dar
garantias de que respeitará o direito dos
investidores em matéria de conceção
de benefícios fiscais); [3] Estabilidade
social (Desenvolvimento Humano (3º em
África (UNDP); Qualidade de vida (3º em
África (EIUnit Index); Taxa de literacia
(95% da população jovem). Disponível
em: <http://cvtradeinvest.com/> Acesso
em 09 jul. 2018.
18. EXPRESSO DAS ILHAS. Revisão
da política de investimento aposta
na diversificação, Disponível em
<https://expressodasilhas.cv/econo-
mia/2018/04/25/revisao-da-politica-
-de-investimento-aposta-na diversifica-
cao/57879> Acesso em 09 jul. 2018a.
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
adversos ou do desempenho económico da zona euro, que se repercute
nas áreas do comércio e do turismo, do investimento direto estrangeiro
e das remessas de emigrantes. O estudo aponta para a possibilidade de
restruturação das empresas públicas, como a Cabo Verde Airlines e a IFH
- Imobilria, Fundria e Habitat, S.A., cujas dívidas ascendem a quase
20% do PIB (ADB, 2018, p. 133). Apesar do anteriormente exposto, o país
tem vindo, desde a independência, a apostar na valorização das suas re-
lações bilaterais e multilaterais com o objetivo de captar recursos exter-
nos, em particular, junto de organizações internacionais, organismos e
agências, sobretudo de crédito, com os quais Cabo Verde mantém uma
cooperação técnico-nanceira. Este procedimento permite reforçar os la-
ços com esses países através de uma panóplia de formas de cooperação
e de assistência. Destaca-se aqui o Grupo de Apoio Orçamental (GAO)
que tem como membros o Banco Africano de Desenvolvimento (BAI), o
Banco Mundial (BM), a União Europeia (EU), Luxemburgo e Portugal.
Dada a imporncia dos países em desenvolvimento no que concer-
ne à dinamização do comércio global, sugere-se que Cabo Verde intensi-
que as suas relações com os países da sua região, assim como dos países
com os quais possui acordos especiais. O compromisso com o aprofun-
damento da integração regional deverá constituir uma prioridade para
a ação externa do país para melhorar a coesão regional, o crescimento
e o progresso social, com reexos na difusão dos valores democráticos
(DUARTE, 2004, p. 119). A redução das assimetrias regionais, a inclusão
social e o fortalecimento da soberania e da democracia constituem pi-
lares no que respeita à promoção de uma melhor integração e dlogo
político entre os Estados-membros da comunidade.
A CEDEAO, como espaço de livre comércio, deve primar pela apro-
ximação entre os seus membros, consciente de que é possível constituir
um espaço de convergência política e diplomática, pensando no desenvol-
vimento conjunto. Estas ações devem estar em sintonia com os desaos
da política externa num contexto internacional cada vez mais competiti-
vo e globalizado. O facto de Cabo Verde pertencer ao Grupo dos Pequenos
Estados Insulares em Desenvolvimento, permite que seja denida uma estra-
tégia de reforço do potencial da sua política externa, consciente de que a
troca de experiências possibilitará a integração de um maior número de
quadros em organizações internacionais. Se a estratégia passa pela rea-
proximação da sub-região onde o país se insere, é igualmente necessário
demonstrar que a política externa é cada vez mais relevante, cuja respon-
sabilidade internacional perante os demais parceiros deverá constituir
uma marca da identidade cabo-verdiana, por forma a facilitar a adaptação
à mudança (ESTEO, 2013, p. 680).
o obstante a vontade de exercer inuência na agenda internacio-
nal, Cabo Verde deverá fazer parte de espaços multilaterais com preten-
são de obter benefícios palpáveis que contribuam efetivamente para o seu
desenvolvimento (TAVAR ES, 2013, p. 220). As transformações vericadas
na distribuição do poder geopolítico mundial nas últimas décadas levam
o país a repensar a sua política externa para que a aproximação a outros
países seja efetivamente possível. Se o interesse do país é o de aprofundar
a sua relação com os Estados e Organizações internacionais, esta necessi-
101
João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
tará de ser centrada na coordenação entre as questões económicas e nan-
ceiras através da fomentação do desenvolvimento socioeconómico em
bases sustentáveis. Seria, efetivamente, desejável que os representantes
diplomáticos nos principais pólos de interesse, facilitassem este processo
num dlogo permanente e concertado com os objetivos e interesses.
O engajamento da diplomacia cabo-verdiana é fundamental, na
medida em que permite facilitar a coordenação entre o arquipélago e
os seus parceiros de modo a ampliar o comércio e os investimentos em
sectores estratégicos que estão demarcados na agenda de transformação do
país, em particular nas áreas da educação, saúde, infraestruturas, segu-
rança e na assinatura de vários acordos de cooperação em diferentes do-
mínios. Além disso, há um interesse cada vez maior em levar mais além
estes tipos de investimentos no sector nanceiro e bancário em Cabo
Verde
19
. É aqui de ressaltar que a aproximação de Cabo Verde aos países
do hemisfério sul não deve ser vista como um mecanismo de afastamen-
to aos países do hemisfério norte. Pelo contrio, esta deve ser encarada
como um valor acrescentado para o reforço e modernização da agenda de
dlogo e de cooperação do país, visto que se verica uma preocupação
constante em procurar pólos atrativos que tenham impacto signicativo
na economia global.
Por constituir um exemplo a nível africano da democracia
20
e da
transparência na gestão da coisa pública, Cabo Verde beneciou em 2004
e 2012 do programa americano Millennium Challenge Account (MCA), geri-
do pelo Millennium Challenge Corporation (MCC)
21
. Este programa foi um
dos principais instrumentos de cooperação Cabo Verde-EUA e teve como
principal objetivo ajudar Cabo Verde no combate à pobreza e na melho-
ria das condições de vida da sua população ao investir em áreas como o
saneamento, higiene e na mobilização de recursos hídricos e gestão de
propriedade e, assim, criar condições para que se promova o investimen-
to neste setor estratégico, em particular no que concerne às informações
fundrias, permitindo assim uma maior eciência na administração das
transações de terrenos.
Em setembro de 2016, Cabo Verde e os EUA assinaram um acordo
de colaboração com vista a melhorar a competitividade das empresas ca-
bo-verdianas. Um dos pontos diz respeito ao aumento das exportações
para os EUA. Este acordo disponibiliza um serviço de aconselhamento
a empresas cabo-verdianas que lhes permita alcançar competitividade e
integração no comércio regional e nas exportações de valor acrescentado
para os Estados Unidos, ao abrigo do African Growth and Opportunity
Act (AGOA). De salientar ainda que este acordo prevê igualmente a en-
trada nos EUA de um conjunto de produtos sem taxas aduaneiras
22
. Os
diversos programas têm capacitado Cabo Verde para investir, quer nos
projetos rentáveis, quer no sector privado e na capacitação institucional.
As boas relações entre Cabo Verde e os EUA reetiram-se na assinatura,
em setembro de 2017, de um novo acordo de cooperação militar que abre
espaço para a presença de forças americanas em Cabo Verde. Este acordo
denominado de Status of Forces Agreement (SOFA) procura fornecer uma
base legal para reforçar a defesa e segurança de ambos os Estados. O acor-
do dene os termos e as condições de participação entre Cabo Verde e os
19. O empresário de Macau David
Chow, Presidente da Legend Globe
Investment Company, assinou em junho
de 2017 um acordo com o governo de
Cabo Verde para a abertura de uma
instituição de crédito - Banco Sino-A-
fricano - permitindo assim alargar os
investimentos no país. PONTO FINAL,
Macau, 06 jun. 2017. Disponível em:
<https://pontofinalmacau.wordpress.
com/2017/06/06/david-chow-assinou-a-
cordo-para-abrir-banco-em-cabo-verde/>
Acesso em 09 jul. 2018.
20. O antigo presidente dos EUA, Barack
Obama, na Cimeira Estados Unidos-Áfri-
ca, que teve lugar entre 4 e 6 de agosto
de 2014, em Washington, D.C., apre-
sentou Cabo Verde como exemplo de
democracia para a África e para o mun-
do. Antes do encerramento da Cimeira
Cúpula EUA-África, Obama anunciou um
programa de investimentos de US $ 33
bilhões para os países que respeitam os
direitos humanos, a liberdade e a demo-
cracia. Disponível em: <http://www.rtc.
cv/index.php?paginas=21&id_cod=8940>
Acesso em 09 jul. 2018.
21. Em fevereiro de 2012, Cabo Verde
assinou o Compacto MCA-Cabo Verde II,
tendo concluído em novembro de 2017.
Disponível em: <http://www.mca.cv/
index.php/pt/arq-noticias/450-primeiro-
-ministro-preside-a-cerimonia-de-encer-
ramento-do-segundo-compacto-do-mca-
-cabo-verde> Acesso em 09 jul. 2018.
22. OBSERVADOR. Cabo Verde e
Estados Unidos assinam acordo para
aumentar exportações cabo-verdianas,
Observador, Lisboa, 16 set. 2018.
Disponível em: <https://observador.
pt/2016/09/16/cabo-verde-e-estados-u-
nidos-assinam-acordo-para-aumentar-
-exportacoes-cabo-verdianas/> Acesso
em 09 jul. 2018.
102
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
EUA no domínio militar, dando especial enfâse ao estatuto dos soldados
norte-americanos em território cabo-verdiano
23
.
Além da cooperação com os EUA, Cabo Verde tem priorizado o
espaço europeu, investindo no reforço e aprofundamento da Parceria
Especial entre Cabo Verde e a UE, que remonta a 2007. A Parceria tem
garantido ao arquipélago a aproximação a espaços estáveis, seguros e eco-
nomicamente viáveis, destacando-se, por exemplo, as Regiões Ultrape-
riféricas, permitindo assim obter uma posição mais vantajosa junto das
organizações internacionais (COSTA e PINTO, 2014, p. 170). Os benefí-
cios da Parceria são evidentes para ambas as partes, particularmente para
Cabo Verde, que tem possibilidade de aceder a fundos estruturais da UE
nos moldes e dimensão indispensáveis para um desenvolvimento susten-
tado (MADEIRA, 2013, p. 68).
A UE necessita de parceiros fortes, sólidos e credíveis. Esta Parceria
materializa a vontade de construir um dlogo mais estruturado na rela-
ção entre ambas as partes. Enquadra-se no campo de aplicação do Acordo
de Cotonu. Pretende que sejam postos em prática todos os meios previs-
tos no acordo com o propósito de denir um novo modelo de cooperação
UE-Cabo Verde. Esse modelo contribui para que o arquipélago almeje ir
além do quadro das relações existentes, com vista a alcançar um elevado
nível de cooperação. A Parceria Especial contempla seis pilares que inci-
dem em diversas áreas prioritárias: [1] Boa governação; [2] Segurança/es-
tabilidade; [3] Integração Regional; [4] Convergência técnica e normativa;
[5] Sociedade do Conhecimento; [6] Luta contra a pobreza e desenvolvi-
mento
24
. Cabo Verde e a UE consideram que, para continuar a estreitar os
laços de cooperação é imprescindível, estabelecer acordos, entre os quais
o da facilitação da emissão de vistos de curta duração para os cidadãos
cabo-verdianos e da UE. Cabo Verde adotou em 2017 uma medida para a
isenção de vistos a cidadãos da UE, para incentivar os investidores e atrair
mais turismo, dado que este último setor constitui um dos motores de de-
senvolvimento e de criação de emprego. A possível isenção de vistos por
parte da UE a cidadãos cabo-verdianos, foi amplamente debatida com a
delegação de deputados europeus que visitou o arquipélago em setembro
de 2017, alertando para a necessidade de Cabo Verde promover uma re-
forma no sector de segurança a m de garantir as condições do controlo
ao nível das fronteiras.
O relacionamento Cabo Verde-UE representa uma signicativa ele-
vação do nível de interlocução e ampliação da cooperação bilateral entre
o arquipélago e outros Estados-membros como Áustria, Espanha, França,
Noruega, Países Baixos, Luxemburgo e Portugal. Estes dois últimos, a
par da UE, Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), Banco Mundial
(BM) fazem parte do GAO e consideram fundamental atender à melhoria
das condições de vida dos cidadãos cabo-verdianos. A diversicação de
parceiros e a defesa de um multilateralismo a múltiplos níveis, mostra-se
indispensável para a sua inserção internacional, além de permitir trilhar
os caminhos de crescimento e desenvolvimento sustentável, com anga-
riação de fundos e ajuda concreta em formato de donativos e emprésti-
mos concessionais (CARVALHO, 2013, p. 42; GRA, 1998, p. 157). A
inserção a nível bilateral e multilateral de Cabo Verde tem apresentado
23. Ver a este respeito: EXPRESSO DAS
ILHAS. Opinião do Embaixador dos
Estados Unidos da América em Cabo
Verde, Donald L. Heflin sobre o Acordo
do Estatuto das Forças Armadas Norte-
-Americanas, SOFA, Expresso das Ilhas,
02 jul. 2018. Disponível em: <https://ex-
pressodasilhas.cv/opiniao/2018/07/02/
sobre-acordo-do-estatuto-das-forcas-ar-
madas-norte-americanas-sofa/58888>
Acesso em 09 jul. 2018.
24. Cape Verde and the EU. EEAS,
Brussels, 11 mai. 2016. Disponível em:
<https://eeas.europa.eu/headquarters/
headquarters-homepage/19890/cape-ver-
de-and-eu_en>. Acesso em 09 jul. 2018.
103
João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
resultados concretos, de modo a fazer com que a política externa seja um
importante vetor de inserção em plataformas seguras, por forma a garan-
tir o equilíbrio entre os pilares económico, ambiental e social (MADEIRA
e MONTEIRO, 2016, p. 548). Seguindo este caminho, o país estará certa-
mente a investir na criação de condições para se tornar numa plataforma
segura e competitiva no Atlântico Médio, próximo dos grandes mercados
africanos (COSTA, 2011, p. 230).
Cabo Verde acolheu entre 17 a 18 de julho de 2018, em Santa Ma-
ria, Ilha do Sal, a XII Conferência de Chefes de Estado e de Governo da
CPLP que teve como lema “Cultura, Pessoas e Oceanos”. Nesta Cimei-
ra, Cabo Verde assume até 2020 o exercício da Presidência da CPLP
25
.
O país pretende apresentar as suas propostas sob a forma de resoluções,
declarações e acordos na área cultural e no domínio dos oceanos e mares.
Tem ainda a intenção de alargar o debate, no que concerne às diferentes
realidades dos Estados-membros. Uma outra observação diz respeito ao
aprofundamento progressivo da mobilidade no espaço lusófono, que vai
ao encontro do Documento de Reeo sobre a Resincia no Espaço da CPLP
que, entretanto, já foi iniciado por Portugal
26
.
Se a política externa constitui um importante vetor na implemen-
tação de estratégias de desenvolvimento, a diversicação de parcerias
permitirá constituir uma linha estratégica para a credibilização externa
do país. Isso só será possível se Cabo Verde apostar na promoção, desig-
nadamente, da tecnologia e da inovação para a modernização dos servi-
ços públicos, em ações de promoção e projetos em matéria de “economia
azul” e de energias renováveis na região, bem como no setor do turismo.
Cimentar a posição nas organizações regionais e sub-regionais constitui,
sem dúvida, uma estratégia para viabilizar a integração de Cabo Verde na
sociedade internacional, permitindo ampliar e dinamizar as relações com
um número cada vez mais diversicado de parceiros, que têm procurado
o país para investimentos no comércio, no turismo, no mar, na ciência e
na tecnologia. Se a ordem internacional evoluiu em direção à multipola-
ridade
27
, é expectável que Cabo Verde aposte na diversicação das suas
relações. A crise nanceira internacional, que afetou de forma direta os
tradicionais parceiros do arquipélago, demonstra a necessidade de se ado-
tar condições para que se consolide uma política externa mais abrangente
que procura economias emergentes e estáveis.
Por se tratar de um Estado que, ao longo da sua história, apostou
no dlogo internacional para debelar fragilidades, faz sentido que Cabo
Verde continue a utilizar a sua política externa como instrumento para
obter consensos. Foi com este desígnio que Cabo Verde foi escolhido para
organizar o IV Fórum Mundial de Desenvolvimento Econômico Local
(DEL), que teve lugar na Cidade da Praia entre 17 e 20 outubro de 2017.
Este Fórum, o primeiro realizado em África, serviu para ampliar os es-
paços de atuação, mostrando a sua capacidade e condições para se de-
baterem grandes questões como a economia azul, o turismo nos países
insulares, a segurança alimentar, segurança e desenvolvimento, o muni-
cipalismo e a articulação intersectorial.
Saber ajustar as políticas à evolução das circunstâncias económicas
e tecnológicas, a política externa cabo-verdiana estará em condições de
25. CPLP. Cabo Verde acolhe Cimeira
CPLP. CPLP-NOTÍCIA, Lisboa, 27 jun.
2018. Disponível em <https://www.
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sId=5828&M=NewsV2&PID=10872>
Acesso em 09 jul. 2018.
26. OBSERVADOR. Cabo Verde vai
apresentar na CPLP proposta para mobi-
lidade adaptada a cada país. Observa-
dor, Lisboa, 22 mai. 2018. Disponível
em <https://observador.pt/2018/05/22/
cabo-verde-vai-apresentar-na-cplp-pro-
posta-para-mobilidade-adaptada-a-ca-
da-pais/> Acesso em 09 jul. 2018.
27. Ver a este respeito: KEOHANE e
NYE, 1998; VIOTTI e KAUPPI, 1999;
TOUVAL, S. 2010; WILKINSON, 2010;
ZARTMAN e TOUVAL, 2010.
104
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.87 - 109
minimizar os efeitos estruturais da insularidade e da quase inexistência
de recursos naturais. Se a pequenez do território se reete na política ex-
terna, signica que a sua diplomacia deve canalizar os recursos necessá-
rios para multiplicar e diversicar parcerias, consciente de que os interes-
ses da Nação devem ser salvaguardados e dedignamente representados,
de modo a que o país esteja em sintonia com os anseios de um mundo
mais estável e mais seguro.
Considerações finais
Por norma, os pequenos Estados insulares necessitam da colabora-
ção de outras potências, com vista a debelar fragilidades e adotar modelos
de desenvolvimento que possibilitem a redução das desigualdades sociais
e assimetrias regionais, inclusão social, política e económica. Em Cabo
Verde estes aspetos não têm sido diferentes, na medida em que o país
apostou numa política externa realista que espelhasse, no cenário inter-
nacional, uma identidade forte e coerente, defendendo de forma rme e
consistente os seus interesses.
As transformações substanciais na ordem internacional, com desta-
que para as potências como os EUA, a China e a UE, passam a integrar o
xadrez do poder através da multipolarização do poder político e económi-
co. Esta conjuntura obriga os Estados em desenvolvimento a centrarem-
-se numa política externa coerente, com o objetivo de alcançarem uma
posição rme e assumida para que, de forma coligada, possam igualmen-
te inuenciar a agenda internacional.
A acompanhar esta tendência, a política externa cabo-verdiana es-
tará seguramente em condições de se adaptar às mudanças do contexto
internacional, pois apesar de uma relativa melhoria, muito recente, a si-
tuação do mercado mundial contínua instável. Para isso, deverá conti-
nuar a investir no domínio do capital humano e na melhoria das condi-
ções de vida das populações. A estratégia passa por despertar o interesse
de organizações internacionais, regionais ou mundiais, para o estabeleci-
mento de relações sólidas, ganhando conança nas suas potencialidades,
para colmatar o déce geoeconómico.
Dada a multiplicação de pólos de cooperação e de parceria, o atual
ambiente internacional tem facilitado a reforma e a modernização dos
instrumentos da política externa dos pequenos Estados insulares para
uma melhor integração. Vive-se, portanto, um momento único na his-
tória deste país, que desperta um maior interesse no cenário internacio-
nal. Neste sentido, Cabo Verde, apesar dos constrangimentos estruturais
como sejam: descontinuidade geográca, secas cíclicas, escassa popula-
ção e precariedade dos recursos naturais, deve continuar a trabalhar a
m de se ancorar em economias emergentes e em ascensão, fazendo da
multipolaridade uma ferramenta de oportunidades.
O sistema internacional é atualmente caraterizado por uma multi-
plicidade de centros de poder que tem dado aos países africanos a opor-
tunidade de desempenhar um papel importante no equilíbrio mundial,
visto que estes são fontes de dinamização do crescimento económico, es-
pecialmente os países que têm demonstrado capacidade de superar a po-
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João Paulo Madeira Políca Externa Cabo-verdiana
breza e as desigualdades sociais. O compromisso de Cabo Verde para com
os congéneres africanos passa pela reestruturação da sua política externa,
apostando na diversicação de pólos de cooperação e encorajamento da
sua integração regional. Isto requer que o arquipélago fomente a partici-
pação pela via do dlogo, do entendimento e do acordo, contribuindo,
deste modo, para o reforço da conança recíproca entre os Estados da
região. Cabo Verde é um país que se situa numa região que pode efeti-
vamente servir como plataforma para estimular o surgimento de novas
cooperações nos domínios económico, político e cultural.
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110
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O Ministério dos Negócios Estrangeiros
Português e a Integração Europeia
(1951-1986)
The Portuguese Foreign Affairs Office and European
Integration (1951-1986)
Recebido em: 14 de maio de 2018
Aprovado em: 4 de agosto de 2018
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2019v7.n1.p110
Alice Cunha
1
Isabel Maria Freitas Valente
2
R
Após os tormentos da II Guerra Mundial, a Europa irá reinventar-se a si própria,
sendo que uma dessas formas se reveste nos comummente designados movimen-
tos de cooperação e de integração europeia, com os quais Portugal também se
envolveria. Tendo como enquadramento a posição do Estado português para com
a integração europeia, este artigo analisa especicamente o papel do Ministério dos
Negócios Estrangeiros (MNE) no que diz respeito à integração europeia. O recorte
temporal vai desde a Declaração Schuman, em 1951, até à adesão de Portugal à Co-
munidade Económica Europeia, em 1986. Conclui-se que, como seria expectável, o
MNE serviu as diretrizes do regime no poder, cumprindo instruções, mas também
conferindo o seu cunho, o que é particularmente visível na ação de um conjunto
de diplomatas pró-europeus. No geral, sempre se batalhou, inclusive no MNE, pela
“Europa económica” e apenas após 1976 também pela “Europa política”.
Palavras-chave: diplomacia; integração europeia; Ministério dos Negócios
Estrangeiros; Portugal
A
After the devastation of the II World War, Europe will reinvent itself, namely by
the commonly known movements of cooperation and European integration,
with which Portugal also got involved in. Bearing in mind the ocial position of
the Portuguese government towards European integration, through the time,
this article analyzes specically the role of the Portuguese Foreign Aairs Oce
regarding European integration. The time frame of this article goes from the
Schuman Declaration in 1951 until the Portuguese accession to the European
Economic Community in 1986. We conclude that, as expected, the Foreign
Oce served the regime’s position on the matter, fullling instructions, but
also adding its own vision, which was particular visible in some pro-European
diplomats. Overall, the Foreign Oce always battled to become a member of
the “economic Europe” and after 1976 also of the “political Europe”.
Keywords: diplomacy; European integration; Foreign Aairs Oce; Portugal
1. Doutora em História Contemporânea
pela Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de
Lisboa. Desde 2008, é investigadora
nessa Faculdade na área de História da
Integração Europeia, área na qual tem
publicado, sendo atualmente autora de
24 artigos com arbitragem científica e
de 14 capítulos de livros, coordenadora
de dez e único autor de três. Organizou
mais de três dezenas de eventos cien-
tíficos e tem participado em diversos
projetos de investigação, nacionais e
internacionais. Lisboa/Portugal ORCID:
0000-0003-3206-8475
2. Doutora em Altos Estudos Contem-
porâneos (História Contemporânea,
Estudos Internacionais Comparativos)
Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. Possui um Mestrado em
Estudos Europeus pela Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra. É
Investigadora Integrada do Centro de
Estudos Interdisciplinares do Século XX
da Universidade de Coimbra - CEIS20,
Coordenadora Científica do Grupo de
Investigação Europeísmo, Atlantici-
dade e Mundialização do CEIS20-UC.
Coimbra/Portugal. ORCID: 0000-0003-
2403-5147
111
Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
Introdução
Após os tormentos da guerra, a Europa irá reinventar-se a si pró-
pria, sendo que uma dessas formas se reveste nos comummente designa-
dos movimentos de cooperação e de integração europeia, com os quais
Portugal também se envolverá e nos quais o Ministério dos Negócios
Estrangeiros (MNE) português participará.
Salvo raras exceções (HOCKING; SPENCE, 2002; HOCKING,
1999), a literatura especializada estrangeira (de Ciência Política, Relações
Internacionais e História Contemporânea), não tem dedicado especial
atenção ao papel dos ministérios dos Negócios Estrangeiros na formu-
lação, condução e execução dos assuntos europeus. O mesmo se aplica à
literatura portuguesa, da qual apenas se conhece um artigo (CORREIA,
2006, p. 29-81), que aborda esta questão com mais detalhe. Assim, parece
pertinente analisar a intervenção do MNE no que diz respeito à integra-
ção europeia e à participação do país nesse processo, precisamente no
centenário de nascimento do Embaixador Calvet de Magalhães
3
e nos
30 anos da assinatura do Acto de Adesão. O recorte temporal proposto vai
desde a Declaração Schuman, em 1951, até à adesão de Portugal à Co-
munidade Económica Europeia (CEE), em 1986, a m de aferir o grau de
afastamento e/ou de envolvimento do MNE nesse âmbito.
Este artigo é baseado em pesquisa arquivística, tendo sido consul-
tada documentação das seguintes fontes: Arquivo Histórico-Diplomático
do Ministério dos Negócios Estrangeiros (AHD-MNE), Arquivo Particu-
lar de Calvet de Magalhães, do extinto Instituto de Estudos Estratégicos
Internacionais, Arquivos da Organização para a Cooperação e Desenvol-
vimento Económico (OCDE), Public Record Oce (National Archives),
Centro de Documentação Europeia da Universidade Católica Portuguesa
(CDE-UCP) – Espólio Erni Rodrigues Lopes (ERL). Recorre-se tam-
bém a entrevistas realizadas entre 2010 e 2012 com alguns dos responsá-
veis políticos e diplomáticos que participaram nas negociações de adesão.
Numa primeira parte, tentar-se-á demonstrar que a aproximação
de Portugal aos movimentos de cooperação e de integração regional pós-
-guerra resultou principalmente da conjugação de vários esforços e inicia-
tivas pessoais de funcionários de topo, mais do que do resultado de uma
política consciente governamental, como é als corroborada por alguns
deles (Calvet de Magalhães, nomeadamente). Neste sentido, o apareci-
mento e crescimento de uma corrente internacionalista pró-europeia no
MNE, durante o Estado Novo (1933-1974), é talvez um dos aspectos mais
interessantes da história da diplomacia portuguesa no pós II Guerra.
De facto, os embaixadores Ruy Teixeira Guerra e José Thomaz Cal-
vet de Magalhães foram dois dos protagonistas (e não raras vezes assu-
miram o que consideraram ser o interesse do país, sem o apoio explícito
do Governo) da internacionalização de Portugal. Principalmente, são res-
ponsáveis pelo envolvimento do País no processo de construção europeia,
mesmo que inicialmente aquele se apresentasse sob a forma de cooperação.
Já depois do 25 de Abril de 1974, com a instauração progressiva
de um regime democrático no País, esse movimento de aproximação à
Europa continuou e a adesão à CEE foi tomada como uma espécie de
3. José Thomaz Cabral Calvet de Ma-
galhães (1915-2004) foi um diplomata
português, cujo nome e carreira ficaram
associados à história da integração do
país nos movimentos de cooperação e
de integração europeia do pós II Guerra
Mundial. Em 1959, chefiou a delega-
ção portuguesa durante a convenção
negocial do Tratado de Estocolmo,
que criou a Associação Europeia de
Comércio Livre e, em 1960, foi nomeado
Representante junto das Comunidades
Europeias, tendo em 1962 sido nomeado
Representante Permanente e Chefe da
Delegação portuguesa junto da Comuni-
dade Económica Europeia.
112
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.110 - 128
desígnio nacional. Tendo isso em vista, mesmo antes das negociações de
adesão começarem, agurava-se indispensável saber, interna e externa-
mente, quem negoceia e a que nível (técnico ou ministerial), bem como
quem coordena as negociações, se a Presidência do Conselho de Minis-
tros, se o MNE, se o Ministério das Finanças e do Plano. Com isso, tem
início toda uma movimentação governamental no sentido da denição
da estrutura negocial portuguesa, o que será analisado numa segunda
parte deste artigo, assim como será explicado o maior ou menor grau de
intervenção do MNE nessas negociações.
O desenho da pesquisa foi orientado, em parte, pelo método do
“process tracing” (ou mapeamento de processo) no sentido em que, par-
tindo de um estudo de caso especíco (o MNE e a integração europeia),
promove a alise de ações e de mecanismos especícos que contri-
buem para uma possível explicação de certas relações causais, que cul-
minam em determinadas decisões, como a da adesão à EFTA e, mais
tarde, à CEE.
Aparecimento de uma corrente pró-europeia e internacionalista
no MNE durante o Estado Novo
Numa época em que o governo português defendia que o futuro de
Portugal estava indissociavelmente ligado à sua soberania sobre os terri-
tórios ultramarinos, um restrito grupo de diplomatas (como Ruy Teixeira
Guerra e Calvet de Magalhães) pensava de forma diversa e considerava
que a ligação à Europa, esteio fundamental da cultura portuguesa, era
essencial para o futuro desenvolvimento económico e social nacional.
Na ótica de Calvet de Magalhães, “a obra da nossa aproximação das
instituições europeias nos seus primeiros passos resultou principalmente
da conjugação de vários esforços e iniciativas pessoais, mais do que resul-
tado de uma política consciente governamental, e a essa obra me achei
pessoalmente ligado nalguns momentos cruciais dessa aproximação. ()
[a nível ocial] não só não existia na época qualquer entusiasmo por par-
te do Governo Português pela ideia de uma união europeia, como até
existia uma marcada hostilidade e até descrença acerca da viabilidade de
quaisquer iniciativas nesse sentido” (MAGALHÃES, 1981, p. 44-45).
De facto, numa ação discreta, mas persistente, Teixeira Guerra e
Calvet de Magalhães exercem, o primeiro, a partir de 1948, e o segundo
de 1956, notável inuência no sentido de aproximar Portugal aos grandes
organismos económicos europeus que surgiram no pós-guerra.
Entre eles, há que salientar o envolvimento, desde sempre, nas ne-
gociações de aproximação ao processo europeu, inicialmente de coope-
ração (na OECE e Plano Marshall) e mais tarde de construção da própria
união europeia (EFTA, CEE). Outro exemplo esclarecedor a ser consi-
derado é o facto de Calvet de Magalhães ter exercido, em simultâneo, as
funções de chefe e representante da OECE na Comissão Técnica de Coo-
peração Económica Europeia (CTCEE) e desta na OECE/OCDE.
É neste contexto que a força anímica destes diplomatas se revela
através de um contributo inestimável para a denição e adoção de uma
das estratégias de política externa de Portugal mais frutuosas – a da inter-
113
Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
nacionalização da economia portuguesa através da plena participação nas
instituições internacionais e europeias do pós-guerra.
Para esclarecer este ponto deve ter-se em conta o facto que, em
1956, Calvet de Magalhães foi colocado em Paris onde conseguiu que lhe
fossem abertas as portas de algumas das mais importantes instituições
europeias de cooperação, onde desenvolveu, como veremos, uma inten-
sa atividade diplomática e onde exercitou o seu conceito de diplomacia
económica. Relativamente a esta questão, João Rosas arma que foi com:
“Calvet de Magalhães que o Ministério dos Negócios Estrangeiros começou a
interessar-se pela parte económica dos acordos internacionais. Já antes de ser
Secretário-Geral do MNE, logo no início da sua carreia, Calvet teve uma ação
muito importante na intervenção do MNE nos acordos económicos. Conseguiu
reunir uma equipa de diplomatas com formação económica e com isso criou o
alfobre daquilo que veio a ser a diplomacia económica do MNE que passou a
tomar a seu cargo a parte económica dos acordos internacionais. Até então, os
Embaixadores não se interessavam pela parte económica. Esta era designada, nos
corredores do Palácio das Necessidades [sede do MNE], como cascalho. Aliás,
na minha opinião, esta foi uma das duas razões que tornou a ação de Calvet
de Magalhães, enquanto diplomata, excecional. A segunda foi a aproximação e
abertura à Europa que ele proporcionou a Portugal. Nessa área a sua capacidade
negocial oresceu”
4
. (ROSAS, 2010)
O êxito que Calvet de Magalhães teve na execução dos seus objeti-
vos, conseguindo a tão almejada (e quase inexequível) participação portu-
guesa nos movimentos de cooperação que então fervilhavam na Europa é
notório. A sua nomeação, em abril de 1959, para o cargo de representante
de Portugal na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, e para a chea
da delegação portuguesa na maior parte das negociações que, durante o
ano de 1959, deram origem à EFTA, são disso exemplo.
À luz do que foi dito, pode agora explicitar-se como a história da
aproximação/integração portuguesa a estes organismos internacionais
foi marcada pela política de reserva de Salazar, por compromissos reais
e pela ação persistente, de grande acuidade e eciência dos diplomatas
Teixeira Guerra e Calvet de Magalhães que inauguram uma corrente in-
ternacionalista e pró-europeia no MNE. Na verdade, este facto constitui,
talvez, um dos dados mais interessantes da História Diplomática portu-
guesa do pós-guerra.
É nesta linha que se pode referir que num primeiro momento, ape-
sar de Portugal participar ativamente nas diversas ações destinadas à ela-
boração e concretização do Plano Marshall, o governo português rejeita
a possibilidade de aceitar auxílio nanceiro americano através do Plano
Marshall. No entanto, a decisão de não aceitar o auxílio nanceiro ameri-
cano não implicou qualquer alteração na qualidade que Portugal detinha
enquanto país participante. Portugal continuou a participar nas reuniões
e atividades dos países europeus e foi membro fundador da OECE
5
.
É porta-voz dessa posição portuguesa
6
o Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Caeiro da Matta. Nela, Portugal mostra bem que as con-
vicções políticas e ideogicas do regime prevaleciam sobre as novas rea-
lidades internacionais. Deste modo, o governo pretendia manter o país
autónomo, do ponto de vista económico, mas a verdade é que Portugal
dependia, em grande medida, dos fornecimentos do exterior. Seria esta
grande dependência externa que colocaria limites à autonomia e a auto-
4. Entrevista a João Rosas, Rio de
Janeiro, 20 de junho de 2010.
5. AHD-MNE, 2.º P., A.40, M.238.
6. AHD-MNE, 2ºP., A.39, M.53.
114
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.110 - 128
cracia tão ansiadas por Salazar.
Assim, foi num contexto de potenciais vantagens de cooperação
económica que Salazar aceitou os benefícios do Plano Marshall (24 de
novembro de 1948) e que Portugal integrasse a OCDE e posteriormente a
EFTA. O País começa a beneciar desses fundos a partir do segundo exer-
cício do Plano (1949-1950). Portugal recebe ainda ajuda direta do fundo
durante o terceiro exercício do Plano Marshall (1950-1951).
Pode dizer-se que é notória a correlação entre o agravamento da si-
tuação económica e nanceira de Portugal e a decisão de alterar a posição
inicialmente defendida de dispensar o auxílio nanceiro Marshall.
É óbvio que, perante esta conjuntura, o governo português empe-
nhar-se-ia para que o país fosse contemplado na distribuição dos créditos
americanos. Para tal recorreria aos bons ofícios dos seus representantes
diplomáticos, devendo neste contexto, e nesta primeira fase, sublinhar-se
a importância da ação e dos esforços que Teixeira Guerra envidou junto
do governo norte-americano e da administração do Plano Marshall para
conseguir o máximo de auxílio nanceiro para Portugal.
Por outro lado, a aventura europeia de Portugal contará, neste mes-
mo período cronológico em que se enquadra esta alise, com um ter-
ceiro ator para quem ganhava sentido e particular interesse a política de
liberalização e internacionalização, leia-se europeização do País. Trata-se
de Corrêa d’ Oliveira,
7
então funcionário do Ministério da Economia e
nosso representante no Comité do Comércio, principal órgão da OECE.
Corrêa d’ Oliveira granjeou a admiração e simpatia de Salazar. A conan-
ça que o governo depositava nele, muito em particular em matérias de co-
mércio externo, conjugadas com as relações de conança que Corrêa de
Oliveira desenvolveu com importantes guras da vida política europeia
contribuíram muito para “permitir que os funcionários que se ocupavam
desse sector pudessem dispor do apoio político necessário para o sucesso
das suas diligências” (Magalhães, 1981, p. 41) durante um período em que,
como sabemos, a vertente atntica e fundamentalmente o ultramar ga-
nham peso na condução da política externa portuguesa.
A Circular sobre a Integração Europeia para as Missões Diplomáticas do
Conselho de Ministros
8
, de 6 de março de 1953, é disso exemplo.
No entanto, “nos assuntos europeus a Inglaterra continuará a ser
a referência fundamental. De tal modo que Portugal seguirá de perto as
posições britânicas nesta matéria até à entrada na EFTA como membro
fundador” (Teixeira e Pinto, 2007, p. 17).
Assim, quando em 1956 os britânicos propuseram na OECE a cria-
ção de uma Zona de Livre Câmbio europeia e informaram Portugal, de
forma unilateral, que apenas os países industrializados da organização
participariam desta zona e que o país, devido ao seu atraso
9
, não pode-
ria fazer parte deste projeto, o governo português reage com “desusada
energia à atitude britânica que, diga-se de passagem, foi um tanto prepo-
tente e sobretudo inábil” (MAGALHÃES, 1991, p. 138).
Ora, é neste contexto histórico, político e económico que Cal-
vet de Magalhães, enquanto chefe da delegação portuguesa junto da
OECE,
10
travará ‘uma dura batalha’ contra a atitude britânica que pre-
tendia excluir Portugal de uma Zona de Comércio Livre
11
onde esta-
7. José Gonçalo Corrêa de Oliveira
(1921-1976) foi Secretário de Estado do
orçamento e do comércio (de 21 de julho
de 1955 a 4 de maio de 1961). Ministro
da Presidência (de 22 de junho de 1961
a 19 de março de 1965). Ministro da
Economia de Salazar e Marcello Cae-
tano (de 19 de março de 1965 a 27 de
março de 1969). Foi um dos principais
peritos em comércio português de
1944 a 1955. Esteve ligado a todas
as principais negociações da OECE e
foi responsável pela coordenação das
negociações que levaram à constituição
da EFTA.
8. AHD, PEA-M 309.
9. AHD-OECE, 2º Piso ARM7M.294.
10. Como escreve Nicolau Andresen
Leitão em Estado Novo, Democracia
e Europa. 1947-1986, “José Calvet de
Magalhães foi, a seguir à guerra, o
diplomata mais importante nas negocia-
ções europeias” (Leitão, 2007).
11. AHD-MNE, 2.º P., A.6, M.439.
115
Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
riam incluídos os países que constituíam os nossos principais mercados
de exportão.
Na sequência da proposta britânica foi criado um grupo de traba-
lho n.º 17 (em junho de 1956) para estudar a viabilidade da iniciativa, sen-
do o País representado por Calvet de Magalhães. As posições tomadas
12
pelo delegado português durante a reunião e consubstanciadas no seu
primeiro relatório
13
constituíram o guião de atuação do governo portu-
guês durante as negociações para a criação da Zona de Comércio Livre.
A argumentação é pertinente: Portugal pretende a sua entrada na zona de
comércio livre ao abrigo de um regime especial pois considerava-se um
país em vias de desenvolvimento.
É conveniente lembrar, a propósito, a criação (já depois do relatório
do grupo 17 estar concluído, mas não difundido) de uma “comissão en-
carregada do estudo dos problemas relativos à criação e funcionamento
da zona de comércio externo, de 5 de dezembro de 1956, que teve como
Presidente Corrêa de Oliveira, então Subsecretário de Estado do Orça-
mento, e como vogais o Embaixador Teixeira Guerra, Director-Geral dos
Negócios Económicos, Tovar de Lemos, Presidente da Comissão Técnica
de Cooperação Económica Externa, Fernando Alves Machado, Presiden-
te da Comissão de Coordenação Económica, Carlos Câmara Pestana, Di-
rector-Geral das Alfândegas e Isabel Magalhães Collaço () elaboraram
um relatório que cou ultimado em 28 de janeiro seguinte. Este trabalho
serviu de base à atuação portuguesa nas negociações iniciadas no seio da
OECE” (MAGALHÃES, 1991, p. 138-139).
Torna-se necessário, sem dúvida, referir que a alise desenvolvida
no relatório de Calvet de Magalhães, fornece os principais argumentos
da posição portuguesa e, muito concretamente, do discurso da delegada
portuguesa no grupo de trabalho n.17, Isabel Magalhães Collaço, a 26 de
novembro de 1956
14
.
Em 17 de outubro de 1957 foi criada a Comissão Intergovernamen-
tal ou Comissão Maulding para dar execução às conclusões dos grupos de
trabalho. Portugal faz-se representar por Corrêa de Oliveira e perante a
posição rme e bem fundamentada de Portugal a comissão viu-se forçada
a criar um grupo de trabalho para estudar o caso português.
Os membros desta comissão e alguns técnicos acompanhados por
Calvet de Magalhães e pelo grupo de trabalho português, visitaram Por-
tugal
15
, nalizando o seu relatório, que cou conhecido por ‘Relatório
Melander”, a 22 de outubro de 1958. Nesse relatório aceitavam-se todas
as pretensões portuguesas, no entanto, não chegou a ser discutido na Co-
missão Maulding porque os seus trabalhos foram adiados sine die, a partir
de 14 de novembro, em consequência do veto de De Gaulle à continuação
das negociações.
Ora, este relatório viria a ter uma imporncia vital nas negocia-
ções que se seguiram ao fracasso da Comissão Maulding e que estariam
na base da criação da EFTA e da integração portuguesa, enquanto mem-
bro fundador desta pequena Zona de Comércio Livre.
Neste quadro não deixa de ser importante sublinhar as palavras de
Luís Figueira a este propósito: “Quando as negociações da Zona Mau-
dling se goraram e surgiu a iniciativa britânica de, perante a existência
12. Relembre-se que, uma vez mais, Lis-
boa não deu nenhuma indicação precisa
de como proceder nesse fórum. Atitude
que era, aliás, muito frequente.
13. AHD-MNE, OECE, 2ºP, 61, M.295, P.3.
14. AHD-MNE, 2.º P.A. 56, M.296.
15. AHD-MNE, 2.ºP., A. 7, M.550.
116
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já efetiva da CEE, criar uma pequena zona de comércio livre dos restan-
tes seis países desenvolvidos (), da qual era intenção excluir-nos dado o
nosso atraso económico, viemos anal participar nas reuniões mais ou
menos secretas ou informais que então tiveram lugar (de cuja realiza-
ção nem sequer, aliás, nos fora dado conhecimento) em resultado da ação
conjugada dos Embaixadores Calvet de Magalhães, então nosso Repre-
sentante Permanente na OECE, e Ruy Teixeira Guerra, director geral dos
Negócios Económicos do MNE. () Foi-nos possível, mercê de uma ação
diplomática atenta e eciente, baseada apenas no prestígio pessoal que
os nossos dois tradicionais representantes haviam sabido granjear, não
car de fora num processo que se antevia importante. É que foi destas
reuniões que veio, sem demora, a resultar o processo de negociação que
conduziu à criação da EFTA” (FIGUEIRA, 2003, p. 46).
Na sequência do veto do governo gaullista anunciado pelo Minis-
tro da Informação francês, Jacques Soustelle, a 14 de novembro de 1958,
é agendada uma reunião, em Genebra, para discutir e analisar as conse-
quências da suspensão das negociações. Uma vez que o relatório Melan-
der não chegou a ser debatido pelo Comité Maudling, Portugal não foi
convidado para esta reunião.
Calvet de Magalhães ao ter conhecimento desta situação alerta, de
imediato, Corrêa dOliveira, então Secretário de Estado do Comércio,
para a imporncia vital de Portugal estar presente, em Genebra, pois
corria-se o risco de carmos excluídos dos dois grandes grupos económi-
cos da Europa. O que teria graves consequências para as nossas expor-
tações e para a economia portuguesa, em geral. Concordando com os
argumentos do nosso Embaixador, Corrêa d’Oliveira estimula todas as
diligências feitas por Calvet de Magalhães no sentido de contactar direta-
mente os responsáveis suíços.
Assim, Calvet de Magalhães em ação concertada com o Director-
-Geral dos Negócios, Teixeira Guerra, pressiona o Ministro Suíço, Hans
Shaner, para que Portugal participe na reunião de 1 de dezembro de
1958. Perante esta pressão, a presença portuguesa é aceite e cabe a Cal-
vet de Magalhães e a Teixeira Guerra comparecerem na reunião, em
Genebra
16
.
Neste contexto, o Embaixador Siqueira Freire, questiona se “te-
ríamos sido admitidos na EFTA se não tivéssemos estado presentes na
OECE? Teríamos podido alcançar os termos em que assimos o Acordo
de 1972 com a CEE se não estivéssemos na EFTA? Teríamos podido pe-
dir já a adesão como membros de pleno direito às Comunidades se não
tivéssemos adquirido a imagem e a longa experiência da integração euro-
peia adquiridas na EFTA e na vivência do Acordo Portugal-CEE de 1972?”
(FREIRE, 1981, p. 21).
Na verdade, a importância do conhecimento adquirido nos dois
anos de negociações para a ZCL bem como a participação de Portugal
no Plano Marshall e, por via disso, nas organizações e nos organismos
económicos que se foram sucedendo, como por exemplo, a OECE, UEP,
OCDE, foram determinantes na modernização da economia portuguesa
e na aproximação do país à Europa e fundamentais para o êxito da entra-
da de Portugal na EFTA.
16. AHD-MNE, 2.º P., A. 7, M49.
117
Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
Deve acentuar-se, porém, que as negociações não foram fáceis para
Portugal e sem o Relatório Melander, como escreveu Calvet de Maga-
lhães, o País “teria fracas hipóteses de se tornar membro da EFTA” (MA-
GALHÃES,1988, p. 46).
Calvet de Magalhães cheou a delegação portuguesa em todas as
reuniões, a nível de funcionários, que se realizaram em Estocolmo e Salt-
sjöbaden, entre 17 de março e 1 de outubro de 1959. Sendo substituído
pelo Embaixador Teixeira Guerra na última reunião desta natureza que
teve lugar em novembro desse ano, por ter sido chamado a Paris no âm-
bito da transformação da OECE na atual OCDE.
As posições e pretensões portuguesas concretizam-se na última
ronda negocial de 1959, em Estocolmo. Nela, Portugal alcança a vitória
em todas as frentes. Segundo Corrêa dOliveira, “fazemos parte de um
grupo de países que lidera a política europeia com direitos iguais, mas
sem obrigações iguais”
17
.
Na verdade, na Convenção de Estocolmo, assinada a 4 de janeiro
de 1960, Portugal integra, como membro de pleno direito, o conjunto de
países fundadores da EFTA, mas com um estatuto especial – Anexo G,
decalcado do relatório Melander. O referido Anexo G elencava todos os
benefícios que Portugal usufruiria bem como estabelecia que cavam ex-
cluídos da EFTA os territórios ultramarinos. Deste modo, Portugal conti-
nua a poder participar na construção económica em curso na Europa Oci-
dental sem colocar em perigo a sua relação privilegiada com as colónias.
Ora, este argumento é utilizado com êxito pela comissão intermi-
nisterial, presidida pelo Secretário de Estado para o Comércio Externo
Corrêa dOliveira e coadjuvada pelos diplomatas Teixeira Guerra e Calvet
de Magalhães para conseguir a anuência ou a compreensão do Chefe de
Governo de Portugal. Assim, o compromisso alcançado salvaguardava
os princípios defendidos pelo regime de Oliveira Salazar e reduzia o e
isolamento internacional de Portugal.
Decididamente, a ideia de que a pertença à EFTA seria a solução
ideal para Portugal, pois permitiria um compromisso entre a via da Euro-
pa e a da África, deixando a salvo o Ultramar, veio a revelar-se o ponto de
viragem fundamental do eixo da política externa portuguesa. Compreen-
de-se, assim, que em 18 de maio de 1962, o governo português solicitaria
a abertura de negociações com a CEE.
Apesar de todas as dúvidas e hesitações, o facto é que Portugal ini-
ciara a sua caminhada em direção à Europa Comunitária.
Em breve, essa aproximação tornar-se-ia inevitável numa Europa
dividida em dois grupos separados. Criaram-se na Europa dois vastos es-
paços de comércio livre de produtos industriais, a CEE e a EFTA. Estes
dois espaços obtiveram enorme sucesso comercial e económico demons-
trando, desse modo que, as teorias liberais e a liberdade deveriam preva-
lecer sobre a losoa que preconizava o isolamento e o protecionismo.
Em 9 de agosto de 1961, a Grã-Bretanha solicita a abertura de nego-
ciações para adesão às Comunidades
18
. Decisão esta que é seguida pela
Dinamarca e em abril do mesmo ano pela Noruega. Muitos outros mem-
bros da EFTA, os designados por ‘neutros’, solicitaram também abertura
de negociações embora não visassem nessa altura a adesão às Comunida-
17. ANTT, AOS/CO/EC-17-A, Pt 4, p.136.
18. AHD-MNE, EOI 207.
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des.
É o caso de Portugal que não poderia correr o risco de isolamento.
Faz, então, a sua opção de fundo consciente das enormes diculdades de
natureza política, mas também de natureza económica. Por isso, man-
teve sempre uma posição de exibilidade quanto à fórmula de ligação
jurídica a propor à CEE.
Assim, em carta endereçada ao Presidente da CEE (18 de maio de
1962), e entregue pelo Embaixador Calvet de Magalhães, Portugal solicita
a abertura de negociações com vista a “établir les termes de la collabora-
tion entre les deux parties sous la forme considérée la plus adéquate”
19
.
No âmbito desta temática, é legítimo referir que o diplomata Calvet
de Magalhães, após ter participado ativamente na ampliação e remodela-
ção da OECE em OCDE, assume aí o lugar do nosso Representante Per-
manente. Cerca de um ano depois, em 13 de abril de 1962, já com o título
honoríco de Embaixador, é nomeado primeiro Embaixador de Portugal
acreditado junto da CEE e da Agência Internacional de Energia Atómica
20
.
Neste quadro não deixa de ser indispensável realçar a importância
desta nomeação. Tratava-se de um diplomata bem aceite e conceituado
nos círculos europeus, um europeísta convicto que percebeu, desde muito
cedo, que o sucesso do projeto europeu radicava na matriz civilizacional
europeia, na coesão dos povos da Europa e na almejada paz mundial. Mais,
que Portugal, velho país europeu, não podia ser alheio a esse movimento.
O discurso proferido por Calvet de Magalhães aquando da entrega de cre-
denciais ao então Presidente da CEE, Walter Hallstein, é disso elucidativo
Assim, o Presidente do Conselho da CEE, por carta datada de 19
de dezembro de 1962, agenda a audição do caso português para 11 de
fevereiro de 1963.
Lembre-se uma vez mais que continuavam as difíceis negociações
entre a Grã-Bretanha e as Comunidades com vista à adesão deste país à
CEE. As tentativas da Grã-Bretanha foram, porém, vetadas por De Gaul-
le. O afastamento de De Gaulle da presidência francesa, em abril de 1969,
permitiu o renovar do pedido da Grã-Bretanha, tendo sido assinados os
acordos de adesão em janeiro de 1972.
Neste contexto, o Governo português, agora cheado por Marcello
Caetano, solicita ao Presidente da Comissão da CEE, através de Memo-
rando datado de 28 de maio de 1970, o início de negociações com a CEE
no sentido de se encontrar uma forma de ligação adequada a ambas as
partes.
Sublinhe-se que para a preparação de tais negociações, criou-se,
por despacho conjunto do Presidente do Conselho, Marcello Caetano, do
Ministro das Finanças e da Economia, João Dias Rosas e Ministro dos
Negócios Estrangeiros, Ruy Patrício, datado de 23 de março de 1970, uma
Comissão de Estudos sobre a Integração Económica Europeia. A esta Co-
missão foi atribuída a incumbência de proceder “ao estudo da situação
presente e das possibilidades futuras no que respeita aos processos de
participação do país nos movimentos que têm por objetivo a integração
económica da Europa”
21
.
A comissão foi presidida pelo Embaixador Teixeira Guerra e pelos
seguintes vogais: Calvet de Magalhães, que foi o Vice-Presidente, Alberto
Nascimento Regueira, Álvaro Ramos Pereira, Carlos Lourenço, Ernesto
19. Archives Commission CCE, BAC
3/1978 n. 853/3 1957/1971.
20. Consulte-se: Archives Commission
CCE, BAC 3/1978 n. 102/1 1959-
1970; Archives Commission CCE, BAC
118/1986 N. 2033; Archives Commission
CCE, CEAB 5 n.º 1420/1 1958/1964.
21. Diário do Governo, nº 69, II Série, de
23 de março de 1970.
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Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
Fervença da Silva, Eugénio de Castro Caldas, Ilídio Barbosa, João Cravi-
nho, Joaquim Mexia, José da Silva Lopes que também exerceu as funções
de Vice-Presidente assistido por Raquel de Bethencourt Ferreira,
Luís Fi-
gueira, Rui dos Santos Martins e por João Vieira de Castro, que exerceu
funções de Secretario da Comissão.
A supracitada comissão elabora, no decurso de 1970, um extenso e
fundamentado relatório. Na verdade, tratava-se de um documento técni-
co do maior interesse como estudo rigoroso sobre as negociações com a
CEE, que viriam a ser encetadas em novembro seguinte. Nele se analisam
e discutem os mais diversos problemas que se colocariam a Portugal du-
rante a sua aproximação ao Mercado Comum. Foi considerado um relató-
rio ‘revolucionário’ para a época pois reconhecia, de forma muito explícita
e, ao contrário da doutrina do Estado Novo, que a CEE e as suas institui-
ções representam “o caminho mais apropriado para atingir uma razoável
organização do espaço europeu [fora da órbitra soviética] possivelmente
como primeira etapa duma mais demorada evolução para atingir o mais
ambicioso objectivo da formação dos Estados Unidos da Europa
22
. Mais:
considerava que as Comunidades tinham sido fruto da ação de um “grupo
de europeus de larga visão, orientados pelo primeiro Comissário do Plano
francês, Jean Monnet, que começou uma corajosa campanha tendente à
criação de instituições dotadas de órgãos centrais habilitados a formar e
a fazer executar programas para inteligente e ordenado aproveitamen-
to dos recursos existentes na inteira área dos territórios associados”
23
. O
relatório considerava, também, que a Comunidade seria o mais ativo e
vigoroso elemento do conjunto europeu, em contraponto à EFTA
24
.
Ora, esse Relatório serviria de trave – mestra a todas as negociações
que se desenrolariam, em Bruxelas, com vista a estabelecer um acordo
entre Portugal e a CEE. Nele, de forma muito clara, arma-se que no
âmbito das relações económicas de Portugal com a Europa, com a saída
do Reino Unido da EFTA e com o consequente enfraquecimento ou de-
saparecimento da mesma, impunha-se a Lisboa equacionar uma forma
ecaz de aproximação à CEE.
Assim, a opção mais provável seria o acordo comercial, mas seria
fundamental que Portugal pugnasse por um acordo de associação. Re-
leva-se, uma vez mais, a preservação da hipótese de uma futura adesão.
Pelo que a moderação e a exibilidade nas negociações, muito em parti-
cular no que respeitava à questão colonial, deveria ser a atitude a adotar
pelo Governo português.
O enquadramento de todas as diligências exploratórias entre Portu-
gal e a CEE, iniciadas em 24 de novembro de 1970, bem como as negocia-
ções propriamente ditas que começaram em 1971 e que se prolongaram
pelo primeiro semestre de 1972, tendo culminado com a assinatura do
Acordo Comercial entre Portugal e a CEE, tiveram o referido Relatório
como substrato negocial.
Parece-nos interessante acentuar que apesar de todo este proces-
so ter sido protagonizado publicamente pelo Ministro dos Negócios Es-
trangeiros, Rui Patrício, cuja carreira até então fora feita como Secretário
de Estado do Fomento Ultramarino, todo o trabalho preparatório, todos
os contactos exploratórios, toda a argumentação teórica e discursiva, ou
22. AHD-MNE/EOI/686.
23. Cf. Relatório da Comissão de
Estudos sobre a Integração Económica
Europeia, setembro de 1970. AHD-MNE/
EOI/686, p. 3.
24. Cf. Relatório da Comissão de
Estudos sobre a Integração Económica
Europeia, setembro de 1970. AHD-MNE/
EOI/686, p. 4.
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seja, todo o trabalho substancial coube a Calvet de Magalhães
25
. No en-
tanto, já a maior parte das negociações esteve a cargo do Ministro das
Finanças e Economia, João Augusto Dias Rosas, e da sua equipa.
Registe-se ainda que o pensamento e o discurso de Dias Rosas dei-
xam transparecer, ainda que de forma difusa, uma perspetiva de Europa
que não apenas económica. Foi durante a sua gestão da pasta das Finan-
ças e Economia que se iniciou e concluiu o último ato formal de aproxi-
mação à CEE durante o Estado Novo.
Este é, com efeito, um texto fundamental, mesmo pelos reexos
e consequências que teve na política externa portuguesa, em que o di-
plomata Calvet de Magalhães refere e proclama o ideal de uma adesão
plena de Portugal à CEE. Nele, refere de forma explícita que as condições
económicas e a própria natureza do regime não permitiam, então, que
Portugal solicitasse a adesão, mas que o governo português aceitaria um
acordo de associação que implicasse uma futura adesão
26
.
É oportuno ainda, referir que essa posição seria ocialmente reco-
nhecida pelo Secretário de Estado do Comércio, Alexandre Vaz Pinto.
Consideramos as suas palavras: a associação “é encarada pela CEE ()
como uma mera fase transitória de preparação para uma posterior adesão,
retardada por razões de atraso económico ou de objecções políticas”
27
.
Expostas e aceites, assim, as pretensões portuguesas, aqui mera-
mente enunciadas, xou-se o dia 17 de dezembro de 1971 para início das
negociações, com vista ao estabelecimento de um acordo comercial, o
qual veio a ser concluído em Bruxelas, a 22 de julho de 1972 e entrou em
vigor a 1 de janeiro de 1973. Para tal, foi criado, a 4 de janeiro de 1971, um
Grupo de Trabalho Especial para o Estudo dos Problemas Relativos às
negociações entre Portugal e a CEE do qual Calvet de Magalhães, então
Director-Geral dos Negócios Económicos, foi designado Vice-Presidente
e Teixeira Guerra, Presidente.
As negociações com a CEE foram dirigidas a nível político pelo
Ministro dos Negócios Estrangeiros, Ruy Patrício. Como já referimos a
equipa negocial foi cheado pelo Embaixador Teixeira Guerra e a coor-
denação dos trabalhos, a nível técnico, esteve a cargo de Silva Lopes e a
componente industrial foi da responsabilidade de João Cravinho.
Em suma, a aproximação portuguesa às instituições europeias no
período de Salazar e de Marcello Caetano constituiu, com efeito, um pro-
cesso longo em que as etapas se foram sucedendo e abrindo caminho para
uma integração numa Europa que se queria evitar, mas que viria a ser a
trave-mestra da política externa portuguesa do pós 25 de Abril de 1974.
O MNE nas negociações de adesão à CEE
No que diz respeito ao MNE, contudo, “o advento da democracia
não teve, no imediato, consequências positivas” (CORREIA, 2006, p. 36),
com a condução de diplomacias paralelas por vários sectores da vida po-
lítica, militar e religiosa nacional aquando do período de transição e nem
mesmo logo imediatamente após a entrada em vigor da Constituição de
1976. No entanto, após a tomada de posse do I Governo Constitucional,
a 23 de julho de 1976, este estipulou a adesão à CEE como algo a prosse-
25. Entrevista a João Rosas, Rio de
Janeiro, 20 de junho de 2010.
26. Déclaration d’ouverture du Ministre
des Affaires Etrangères du Portugal, M.
Rui Patrício, au Conseil des Commu-
nautés Européennes, Bruxelles, le 24
novembre, 1970, pp. 9-13. Archives
Commission CCE, BAC 3/1978 n. 853/3
1957/1971, pp. 9-10.
27. AHD-MNE, EOI M. 684.
121
Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
guir
28
, iniciando-se na vigência desse Governo toda uma série de movi-
mentações nesse sentido, como a preparação de viagens pelas capitais dos
Estados-membros (tour europeu), com vista à recolha de apoios para as
pretensões portuguesas e a posterior apresentação do pedido de adesão.
Nesta fase de preparativos para solicitar a adesão tudo passou pelo MNE
e pelo ministro José Medeiros Ferreira que, num contexto de incerteza e de
indenições dos Estados-membros e da opinião dos técnicos nacionais, tomou
o comando da nau da adesão, traçou “toda a estratégia diplomática da qual
resultou a apresentação e a aceitação do pedido português”, não se vislum-
brando, nessa altura que fosse feito de modo diferente, na medida em que a di-
plomacia portuguesa era quem “podia ter uma apreciação realista, para além
dos aspetos tecnocráticos, da posição de Portugal na Europa e das posições de
cada país comunitário relativamente a Portugal
29
. Todavia, após a entrega
do pedido de adesão à CEE, pelo embaixador António de Siqueira Freire, a 28
de março de 1977, as negociações seriam conduzidas longe do MNE.
As implicações da adesão para os serviços apenas poderiam ser
justamente avaliadas com o decurso das negociações e com a efetivação
da adesão. Contudo, o fator logístico era importante numa operação tão
especíca, única e multiforme, pelo que deveriam ser criados os meios
mínimos indispensáveis. Havia que ter em consideração nessa equação o
fraco nível de desenvolvimento do país, assim como a fragilidade das suas
estruturas administrativas, existindo a necessidade de congregar recur-
sos humanos, com meios nanceiros e instalações materiais adequadas,
assim como de formar adequadamente técnicos. A adesão era, assim, con-
siderada como “uma operação cuja envergadura ultrapassa de longe tudo
aquilo que estamos habituados a improvisar e que requere o exercício
permanente, activo e promocional da autoridade”
30
.
Embora a teoria da integração regional tenha negligenciado a po-
lítica de alargamento da União Europeia como um tópico de interesse
generalizado e permanente, conduzindo inclusive a uma escassez teórica
sobre o assunto, com o alargamento de 2004 o processo de alargamento
tornou-se num ponto de convergência dos interesses de investigação, in-
clusive na história da integração europeia, área na qual se insere o pre-
sente artigo que, por sua vez, se debruça sobre as escolhas racionais dos
atores, dentro de um contexto político determinado, onde se pretende
capitalizar os benefícios e minorar as perdas.
Em 1979, já as negociações de adesão haviam formalmente come-
çado, o então Chefe da Missão de Portugal junto das Comunidades Eu-
ropeias, António de Siqueira Freire, diplomata de carreira, era de opinião
que, independentemente do esquema de organização das negociações a
adotar do lado nacional, “haverá sempre que assegurar ao Ministério dos
Negócios Estrangeiros uma função especíca, visto ser esse Ministério
que tem a seu cargo a coordenação da política externa em geral com a
política europeia e vice-versa”
31
, sendo que esse entendimento vingou
na parte da atribuição de “uma função especíca”, que sempre iria tendo
no decorrer das negociações, mas não na parte da condução das mesmas.
Nesse sentido, durante os quase sete anos nos quais decorreriam as
negociações (17 de outubro de 1978 a 12 de junho de 1985) foi criada toda
uma estrutura de condução e de apoio às mesmas. A estrutura negocial
28. Programa do I Governo Constitu-
cional. Disponível em: http://www.
portugal.gov.pt/media/464012/GC01.
pdf. Acesso em: 12 ago. 2018.
29. CDE-UCP, Espólio ERL, Pasta
IV, “Integração europeia e política
externa”, Ministério dos Negócios
Estrangeiros – Direcção-Geral dos
Negócios Económicos, não datado, nem
assinado [a assinatura sugere que seja
do ministro João Freitas da Cruz, que
ocupou o cargo nos IV e V governos
constitucionais], p. 9.
30. CDE-UCP, Espólio ERL, Pasta X., “As
implicações do processo de adesão às
Comunidades Europeias para a orgânica
dos serviços – Nota para Sua Excelência
o Presidente da República”, assinado
por António de Siqueira Freire, Chefe da
Missão de Portugal junto das Comuni-
dades Europeias, datado de 19 de março
de 1979, p. 3.
31. CDE-UCP, Espólio ERL, Pasta X., As
implicações…, cit., p. 6.
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era bastante simples: no topo da hierarquia negocial estavam o Conselho
de Ministros e um ministério responsável, que delegavam na Comissão
para a Integração Europeia (CIE) a preparação das negociações, sendo que,
na sua base, a prestar-lhe o apoio técnico necessário, estava o Secretariado
para a Integração Europeia (SIE), e em cada ministério existia um “Gabine-
te de Integração Europeia”, criados pelo ministro Manuel Jacinto Nunes.
Para se evitar a descoordenação das negociações, era necessário
apresentar um único interlocutor por parte de Portugal. Nesse contexto,
havia sido instituída, após o Conselho ter aceitado iniciar negociações, na
dependência da Presidência do Conselho de Ministros, a CIE, antecessora
da atual Direcção-Geral dos Assuntos Europeus, e que foi a interlocutora
e coordenadora entre os diferentes ministérios, sendo da sua competência
global “preparar e dirigir as negociações com vista à adesão de Portugal
às Comunidades Europeias
32
. No mesmo decreto no qual é constituída a
CIE surge também o Secretariado para a Integração Europeia, outro dos
elementos que pertencia à estrutura das negociações, e cuja nalidade é
a de “apoiar a Comissão nas suas funções, nos planos técnico e adminis-
trativo”, sendo das suas competências iniciais realizar estudos indispen-
veis à preparação das negociações, colaborar com os serviços envolvidos
nos trabalhos de preparação das negociações, e acompanhar a execução
dos acordos celebrados com a CEE, de modo a garantir o seu ecaz fun-
cionamento e o melhor aproveitamento das potencialidades respetivas
33
.
Dada a sua natureza essencialmente técnica e logística, tanto a CIE
como o SIE, foram sempre relativamente autónomos e independentes do
poder político, o que permitiu que os seus elementos não mudassem mui-
to no decurso das negociações ao contrário do que sucedeu a nível gover-
namental, com a sucessão de governos e respetivos responsáveis políticos
pelas negociações. Assim, se a parte técnica foi mais estável, embora não
isenta de vicissitudes, a condução política das negociações, com implica-
ções para a estrutura que suportava, conheceu várias nuances, onde nunca
o MNE esteve em destaque (Tabela 1.).
Tabela 1- Responsáveis políticos pelas negociações
Governo Responsável político pelas negociações Tutela da CIE
IV
Vice-Primeiro-Ministro para os
Assuntos Económicos e Integração
Europeia, Manuel Jacinto Nunes
Manuel Jacinto Nunes
V
Ministro da Coordenação Económica
e do Plano, Carlos Corrêa Gago
Carlos Corrêa Gago
VI
Vice-Primeiro-Ministro,
Diogo Freitas do Amaral
Secretário de Estado para a
Integração Europeia, Rui de
Almeida Mendes
VII
Ministério da Integração Europeia,
Álvaro Barreto
SEIE, Joaquim Ferreira do Amaral
VIII
Ministro de Estado e das Finanças
e do Plano, João Salgueiro
SEIE, José da Cruz Vilaça
IX
Ministro das Finanças e do Plano,
Ernâni Lopes
MFP, Ernâni Lopes
Fonte: Cunha, 2012, p. 94.
32. Decreto-lei n.º 306/77 de 3 de
agosto. In Diário da Assembleia da
República, n.º 178, I Série, de 3 de
agosto de 1977.
33. Decreto-lei n.º 185/79 de 20 de
junho. In Diário da Assembleia da
República, n.º 140, I Série, de 20 de
junho de 1979.
123
Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
No IV GC, era competência do Vice-Primeiro-Ministro para os As-
suntos Económicos e Integração Europeia, Manuel Jacinto Nunes, os as-
suntos relacionados com a integração europeia, cargo que será extinto no
governo seguinte
34
, passando a coordenar esta área o Ministro da Coor-
denação Económica e do Plano, Carlos Corrêa Gago. Esse Governo altera,
assim, o pendor da direção política das negociações para a área económi-
ca, sendo que introduz, paradoxalmente, através da aprovação do Decre-
to-Lei n.º 185/79, de 20 de Junho, que substitui o supracitado Decreto-Lei
n.º 306/77, a criação do Conselho de Ministros para a Integração Europeia,
órgão ao qual passou a competir a denição das directrizes para as ne-
gociações com as Comunidades Europeias, bem como a responsabilidade
por assegurar a harmonização dos diversos interesses em jogo com os ob-
jectivos visados com a integração europeia” (Correia, 2006, p. 41), estando
subjacente à sua criação a urgência de se acentuar a credibilidade externa
do empenhamento do Governo Português na negociação, sendo que este
deveria “ser um Conselho especial, restritivo, e não – como se disse – uma
nova versão do Conselho de Ministros, com nome diferente”
35
.
Com o primeiro governo da Aliança Democrática, será conferi-
do não só um novo impulso e uma nova determinação nas negociações,
o que se vericará também a nível dos arranjos na estrutura negocial,
nomeadamente com a criação da gura de Secretário de Estado para a
Integração Europeia (SEIE). Diogo Freitas do Amaral, na qualidade de
Vice-primeiro ministro, passa a estar responsável pela integração euro-
peia
36
, se bem que acumulava esse cargo com o de Ministro dos Negócios
Estrangeiros, o que lhe permitia uma visão integrada das negociações, as-
sim como maior visibilidade das questões de integração europeia no pró-
prio MNE. Por essa altura, de resto, no sentido em que quer a integração
europeia lato sensu e a adesão stricto sensu se enquadravam na denição
global dos objetivos de política externa, o MNE já havia também adap-
tado a sua estrutura interna, com a criação da Repartição da Integração
Europeia
37
em 1978 e nele se preconizava igualmente a necessidade da
diplomacia portuguesa dispor de instrumentos capazes de responder às
novas solicitações que tem de enfrentar”, assim como a premência em se
organizar “em termos humanos e institucionais, os seus meios de acção
no âmbito do processo de integração”
38
.
Como não tinha existido até então um Secretário de Estado encar-
regado das negociações, sendo essa responsabilidade em geral do ministro
das Finanças e do Plano, o verdadeiro negociador tinha sido o presidente
da CIE
39
. A grande novidade, embora sem efeitos práticos, surgiria no
governo seguinte com a criação não de uma secretaria de Estado, mas de
um ministério dedicado, em exclusivo, às questões europeias, facto que
teve, porém, pouco relevo e não vingou, não se repetindo essa modalida-
de desde então. Foi escolhido para esse novo ministério, o da Integração
Europeia, Álvaro Barreto. Conta-nos o próprio que essa não foi uma deci-
são de conferir maior imporncia às negociações, mas sim pelo facto do
Primeiro-ministro, Francisco Pinto Balsemão, o querer como ministro e
não como secretário de Estado
40
. Já o próprio Francisco Pinto Balsemão
considera, todavia, que a adesão era “uma prioridade de tal maneira que
teria que ser um ‘full time job’”
41
, daí a necessidade de ter um ministro.
34. Lei Orgânica do Governo Consti-
tucional IV, 30 de dezembro de 1978,
publicado no Diário da República
nº. 299/78 Série I 5º Suplemento,
Art. 3.º - 1; Lei Orgânica do Governo
Constitucional V, 19 de setembro de
1979, publicada no Diário da República
nº. 217/79 Série I, art. 19.º.
35. CDE-UCP, Espólio ERL, Pasta III.,
“Informação n.º 32/79” sobre o novo
Conselho de Ministros para a Integração
Europeia, não datada [será posterior ao
envio do decreto-lei para o Conselho de
Ministros, mas anterior à publicação do
mesmo], nem assinado, pp. 1-2.
Esta análise vem no seguimento da
pretensão do Ministro da Justiça,
do dos Transportes e Comunicações,
assim como das Regiões Autónomas,
quererem ser incluídos nesse Conselho
de ministros, juntando-se ao Primei-
ro-ministro, vice-primeiro ministro,
Ministro das Finanças e do Plano, MNE,
Agricultura e Pescas, Indústria e Tecno-
logia, Comércio e Turismo, Trabalho, e
dos Assuntos Sociais, o que preconizava
que o aumento do número de membros
diminuiria, inevitavelmente, a sua
operacionalidade e eficácia.
36. Lei Orgânica do Governo Constitu-
cional VI, 7 de fevereiro de 1980, Diário
da República nº. 32/80 Série I-2, art.
3.º - 1.
37. CDE-UCP, Espólio ERL, Pasta IV.
“Repartição da Integração Europeia”,
Ministério dos Negócios Estrangeiros –
Direcção-Geral dos Negócios Económi-
cos, não datado, nem assinado.
38. CDE-UCP, Espólio ERL, Pasta IV,
Integração europeia…, cit., p. 14.
39. Vítor Constâncio, José da Silva
Lopes, Vítor Constâncio de novo, Pedro
Pires Miranda.
40. Entrevista a Álvaro Barreto, Lisboa,
12 de janeiro de 2012.
41. Entrevista a Francisco Pinto Balse-
mão, Lisboa, 21 de julho de 2011.
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Ao Ministério da Integração Europeia (MIE), instituído ocialmen-
te através do decreto-lei 28/81 de 12 de fevereiro, competia “orientar e
coordenar, sem prejuízo da competência do Ministro dos Negócios Es-
trangeiros e das competências próprias dos restantes Ministros, os tra-
balhos visando a adesão próxima de Portugal à Comunidade Económica
Europeia, que se considera uma das prioridades essenciais da acção go-
vernativa”
42
. No entanto, houve alguns desentendimentos iniciais entre
membros do governo. André Gonçalves Pereira, então ministro dos Ne-
gócios Estrangeiros, reagiu de forma adversa a esta distribuição de com-
petências, pois entendia que deveria ser ele e o MNE a representarem
o país nas reuniões do Conselho, mantendo-se o esquema do governo
anterior
43
. Esta posição, contudo, nem vingou nesse governo nem nos se-
guintes, que agregaram a integração europeia às Finanças, apenas regres-
sando aos Negócios Estrangeiros, onde se tem mantido, após a adesão.
Ainda as negociações estavam praticamente a começar e já tinham
ocorrido todas estas alterações, que continuariam a suceder-se. Nesse
aspeto, as negociações de adesão provocariam “uma alteração progres-
siva mas substancial nos quadros institucionais clássicos da denição e
execução da política externa portuguesa” ao concentrar no Conselho
de Ministros essa competência, subalternizando o MNE, e também ao
criar estruturas administrativas autónomas no que diz respeito à po-
lítica de integração europeia (SOUSA, 1981, p. 147). No entanto, com
exceção da curta e efémera existência do MIE, com o motivo que lhe
está na origem, não houve vontade política em criar um ministério au-
tónomo, que conduzisse as negociações, alternando as mesmas entre
os Negócios Estrangeiros e sobretudo as Finanças, de acordo com as
prioridades selecionadas: “quando a ênfase era diplomática, a solução
gica era conceder ao MNE o papel principal; quando a urgência das
adaptações internas era considerada mais importante, o Ministério das
Finanças assumia esse papel” (Vilaça, 2000, p. 81); se bem que, ao lon-
go dos sete anos de negociações propriamente ditas, a adesão foi sendo
vista “quase exclusivamente como um projecto político – e aí sobretudo
como um projecto da diplomacia ou da política externa” (QUADROS,
1985, p. 121), embora tal não se tivesse demonstrado efetivamente a ní-
vel da condução das negociações pelo MNE.
No governo seguinte, há um retrocesso esperado, com a extinção
do MIE, pelo que a integração europeia volta a estar enquadrada numa
secretaria de Estado, dependente não do MNE, como no passado, mas do
Ministro de Estado e das Finanças e do Plano, com o argumento de “in-
corporar na estrutura económica interna, a curto e médio prazos, todas
as transformações da economia portuguesa que é necessário empreender
para tornar bem sucedida a adesão de Portugal à CEE”
44
, sendo a opção
que fazia mais sentido para o então Primeiro-ministro, dado que “sendo
problemas económicos faria mais sentido ser o Ministério das Finanças
a dirigir as negociações em ligação com o MNE”
45
. Caberia assim a João
Salgueiro, ministro, e a José da Cruz Vilaça, Secretário de Estado, a con-
dução das negociações durante este período.
O último dos governos responsável pelas negociações, o do Blo-
co Central, cheado por Mário Soares, mantém a coordenação das
42. Lei Orgânica do VII Governo Consti-
tucional, 12 de fevereiro de 1981, Diário
da República, nº 36/81 Série I.
43. Entrevista a Álvaro Barreto, Lisboa,
12 de janeiro de 2012.
44. Orgânica do VIII Governo Constitu-
cional, 14 de outubro de 1981, Diário da
República, n.º 236/81 Série I, art. 6.º.
45. Entrevista a Francisco Pinto Balse-
mão, Lisboa, 21 de julho de 2011.
125
Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
negociações no Ministério das Finanças e do Plano, superentendidas
pelo ministro Erni Lopes, mas extingue a Secretaria de Estado da
Integração Europeia
46
. Sobre a questão da rivalidade dos ministérios
quanto à chea das negociações, o próprio Jaime Gama, ministro dos
Negócios Estrangeiros desse governo, esclarece que, na realidade “a
máquina das negociações era do MNE, que tinha toda a actividade
circum-negocial de pressionar e convencer os governos dos Estados-
-membros a avançar com as negociações, enquanto o Ministério das Fi-
nanças detinha a coordenação técnica
47
, não existindo assim qualquer
fricção de competências.
Por sua vez, Erni Lopes salienta que “a organização do Governo,
no que respeita à competência política para a condução das negociações,
conheceu, praticamente, todas as modalidades possíveis (desde logo, atri-
buída ao primeiro-ministro, ou ao ministro dos Negócios Estrangeiros
com um secretário de Estado próprio; seguidamente, a um ministro es-
pecíco, da integração europeia; por m, ao ministro das Finanças e do
Plano)” (LOPES, 2010, p. 28), o que, ao contrário de expectativas adversas
que se pudessem ter, “não teve nenhum grande reexo em matéria de
atrasos”
48
nas negociações.
Preparadas as posições negociais no país através da CIE, ganha-
va destaque e reconhecimento a Missão de Portugal junto das Comu-
nidades Europeias, que servia de interligação entre o governo por-
tuguês e as instituições da CEE (Comissão, Conselho), e também as
embaixadas nos Estados-membros, sendo que a primeira estava em
contacto permanente com as segundas, das quais recebia e para as
quais enviava informações acerca da evolução das negociações e sobre
a perspetiva da adesão nas suas várias vertentes, evidenciando-se nes-
te âmbito mais a participação do MNE nas negociações. Deste modo,
embora não tivesse cabido ao MNE a tutela das negociações, este ia
sendo informado regularmente do andamento das mesmas e exercia
sobretudo a sua influência perante a Missão, que estava na sua depen-
dência e dele recebia instruções, o que lhe permitia salvaguardar a sua
participação a um nível não técnico mas político, de acordo, de resto,
com a sua própria natureza.
Paralelamente, o MNE também providenciava a organização de
visitas de Estado, de encontros de trabalho e de vários contactos diplo-
ticos bilaterais, de modo a prosseguir o objetivo da adesão fora do âmbito
estritamente comunitário, expandindo-o para a esfera do relacionamento
individual com cada Estado-membro.
Em todo o processo negocial destacaram-se, assim, dois ministé-
rios, o dos Negócios Estrangeiros e o das Finanças e do Plano que, em-
bora com diferentes atribuições e mesmo com a subalternização do pri-
meiro em relação ao segundo na condução política das negociações, par-
tilharam uma mesma responsabilidade: a da adesão do país à CEE. Neste
processo, não contaram com muito apoio dos seus colegas ministros, na
medida em que estes “não estavam muito sensibilizados para esta ques-
tão, permanecendo bastante indiferentes”
49
. De resto, também o próprio
MNE “não negociava com muito entusiasmo, pois os velhos embaixado-
res não viam com bons olhos a integração europeia”
50
.
46. Lei Orgânica do Governo Constitu-
cional IX de 25 de julho de 1983, Decre-
to-Lei n.º 344-A/83, Diário da República,
n.º 169/83 Série I, 1º Suplemento.
47. Entrevista a Jaime Gama, Lisboa, 26
de maio de 2011.
48. Entrevista a Diogo Freitas do Ama-
ral, Lisboa, 21 de junho de 2011.
49. Entrevista a José Luís da Cruz
Vilaça, Lisboa, 3 de agosto de 2011;
Entrevista a José Medeiros Ferreira,
Lisboa, 26 de novembro de 2011.
50. Entrevista a Diogo Freitas do Ama-
ral, Lisboa, 21 de junho de 2011.
126
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Conclusão
Depois do exposto, as evidências sugerem que a aproximação de
Portugal aos movimentos europeus entre 1945 e 1974 foi motivada, em
grande parte, por razões e motivações de carácter económico, ou seja, o
governo português e a sua política rejeitaram sempre a Europa política e
todo e qualquer modelo de integração ou de supranacionalidade. Na ver-
dade, a participação de Portugal nos movimentos de cooperação e inte-
gração no pós II Guerra Mundial resultou de condicionantes económicas
e comerciais mais do que resultado de um pensamento político ocial
sobre a questão da construção europeia.
Saliente-se que a história da aproximação portuguesa a esses orga-
nismos resultou também, em grande medida, do papel de certos diplo-
matas e funcionários, com enraizadas convicções europeias, que durante
o Estado Novo desempenharam funções em lugares-chave e puderam,
desse modo, inuenciar o rumo dos acontecimentos bem como contri-
buir para o aparecimento no MNE de uma corrente internacionalista,
anti isolacionista e pró-europeia.
Ora, estes funcionários do Estado português e da administração
pública desejavam que a opção europeia fosse feita por Portugal, mas tal
só viria a ocorrer com a Revolução de 25 de Abril de 1974 que derruba o
último governo do Estado Novo dando-se a vitória da democracia e do
pluralismo partidário. A consolidação da democracia e a adesão de Portu-
gal à CEE passaram a ser os novos desígnios de Portugal.
Em termos práticos, enquanto a preparação do pedido de adesão se
desenrolou no MNE, sob a alçada do ministro, a “pasta” das negociações
não vai ser constante ao longo do tempo, existindo várias fórmulas distin-
tas de coordenar as negociações, tendo a responsabilidade pelas mesmas
passado pelo MNE, Ministério das Finanças e do Plano, Ministério da
Integração Europeia, com o apoio da omnipresente CIE. Deste modo,
enquanto na fase da preparação e da entrega do pedido de adesão, o MNE
teve uma intervenção de destaque, nomeadamente no contacto com as
instituições europeias e com os Estados-membros individualmente, o
início das negociações irá determinar uma subalternização da sua posi-
ção, desde logo devido à sua particular apetência para uma vertente mais
política, enquanto as negociações careciam de especialistas, de técnicos
superiores, de diversas áreas, sendo remetida a sua coordenação para o
Conselho de Ministros para a Integração Europeia.
De facto, nesta constelação, o papel desempenhado pelo MNE vai
ser caracterizado no desenrolar das negociações por uma limitação dos
seus poderes, sendo que a sua área de intervenção se manteve prepon-
derante nos contactos diplomáticos a nível bilateral e com a Missão de
Portugal junto das Comunidades Europeias. Após a assinatura do Acto
de Adesão, a 12 de junho de 1985, iniciou-se um outro movimento, este
de adaptação das estruturas negociais nacionais aos desaos da adesão,
sendo disso exemplo a extinção da CIE e do SIE, assim como projetos de
criação da REPER, da Comissão Interministerial de Coordenação para os
Assuntos das Comunidades Europeias, da Direcção-Geral das Comunida-
des Europeias, no geral sobre a reorganização do MNE
51
.
51. CDE-UCP, Espólio ERL, Pasta XIII.
127
Alice Cunha; Isabel Maria Freitas Valente O Ministério dos Negócios Estrangeiros Português e a Integração Europeia (1951-1986)
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Entrevista a José Luís da Cruz Vilaça, Lisboa, 3 de agosto de 2011, realizada por Alice Cunha
Entrevista a José Medeiros Ferreira, Lisboa, 26 de novembro de 2011, realizada por Alice Cunha
Entrevista a Francisco Pinto Balsemão, Lisboa, 21 de julho de 2011, realizada por Alice Cunha
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129
Resenha do livro: China and Africa: building
peace and cooperation on the continent
Recebido em: 30 de junho de 2018
Aprovado em: 12 de julho de 2018
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2019v7.n1.p129
Marcos Valle Machado da Silva
1
Organizado por quatro acadêmicos oriundos da China, África e
Reino Unido, China and Africa: Building Peace and Cooperation on the Con-
tinent reúne artigos de pesquisadores de outros oito países e contribui
para preencher uma lacuna acerca do engajamento da China no conti-
nente africano, dentro de uma perspectiva de questões econômicas e
de segurança.
O livro é dividido em três partes, perfazendo um total de dezoito
capítulos. A primeira parte congrega sete capítulos que apontam, em con-
junto, para os fatores causais do envolvimento da China em questões de
segurança no continente africano. Os autores – um africano e seis chine-
ses – evidenciam a principal característica desse envolvimento: o envio de
contingentes militares sempre sob a égide das Nações Unidas. A própria
capa do livro reforça, sutilmente, essa característica, apresentando um
militar chinês, com o capacete azul das forças a serviço da ONU, coloca-
do em primeiro plano, tendo como fundo um céu igualmente azul.
A segunda parte é constituída por seis capítulos, com Estudos de
Caso, analisando os interesses e o envolvimento da China no Sudão,
Mali, Libéria e Congo. A terceira e última parte do livro apresenta cinco
capítulos nos quais os autores apontam e discutem os desaos que a Chi-
na enfrenta e enfrentará como decorrência do seu crescente engajamento
nas questões de segurança de Estados africanos.
Um dos eixos analíticos do livro é a mudança da postura da China
em relação ao seu envolvimento na África. A tradicional política exter-
na da China é baseada no princípio da não intervenção nas questões do-
mésticas dos Estados com os quais Pequim busca garantir seus interesses
econômicos. Os autores apontam, de forma recorrente, para uma altera-
ção dessa política externa que passa a ter um expressivo engajamento nas
questões de segurança da África, por meio da participação das suas forças
armadas em missões da ONU naquele continente.
Ao longo dos capítulos, são enfocados os principais fatores que le-
varam a essa alteração na postura chinesa nas questões africanas: os ris-
cos negativos à imagem da China decorrentes da associação do governo
chinês com regimes ditatorias e corruptos; os riscos aos investimentos fei-
tos pela China em países com regimes instáveis; e os riscos de segurança
1. Doutor em Ciência Política
(UFF - 2016). Mestre em Relações
Internacionais (UERJ - 2010) e em
Estudos Estratégicos (UFF - 2011).
Atualmente é professor da Escola de
Guerra Naval (EGN). Rio de Janeiro/
Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-
0003-0367-8899
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 7, n. 1, (abr. 2019), p.129 - 131
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dos cidadãos chineses que trabalham em países africanos assolados por
instabilidade política, violência e, no limite, guerra civil.
O livro permite uma compreensão dos desaos vivenciados pela
China em seu engajamento no continente africano. A percepção de que
a política de não intervenção nos assuntos domésticos de outros Estados
não mais poderia ser sinônimo de não envolvimento, ou indiferença, vai
sendo sedimentada ao longo de cada capítulo. Assim, apesar de a não in-
tervenção permanecer como um dos “Cinco Princípios da Coexistência
Pacíca” que nortearam a política externa chinesa desde os anos 1950, ca
evidente que a China passa a ter uma abordagem mais ampla e exível
quanto a sua participação nas questões de segurança dos seus parceiros
africanos. Essa participação se dá por meio das missões de paz sob a égide
das Nações Unidas.
A leitura sequencial dos capítulos permite que o leitor perceba
como a China ajustou sua postura em relação à África de forma coinci-
dente com a avaliação da expansão dos seus interesses econômicos, bem
como com a sua crescente capacidade de projeção militar.
É pertinente observar que as alises feitas pelos autores, apontan-
do para a mudança em relação ao princípio da não intervenção, são con-
vergentes com o Defence White Paper divulgado pelo governo chinês em
2015, no qual não existe uma única menção aos outrora basilares “Cinco
Princípios da Coexistência Pacíca”.
Fica também evidenciado que a atual postura da China em relação
à África está alinhada tanto com os interesses econômicos e comercias
chineses, quanto com as crescentes responsabilidades assumidas pela
China como potência global emergente. Tal como analisado no capítulo
sete da primeira parte do livro, o caso da participação da China nas ope-
rações de combate à pirataria no Golfo de Aden sintetiza essa nova postu-
ra. Essa missão sob a égide das Nações Unidas, iniciada em 2008 e ainda
ativa, conta com a signicativa participação de meios navais e aeronavais
da Marinha do Exército Popular de Libertação (PLAN).
As operações em terra, desenvolvidas no Sudão, Mali, Libéria e Con-
go, analisadas nos capítulos da segunda parte do livro, também evidenciam
o envolvimento da China nas questões de segurança africana, de forma
consonante com seus interesses econômicos, comerciais e com a crescente
responsabilidade como potência global. Nesse contexto, vale observar que,
desde 2013, a China é o membro permanente da ONU com o maior núme-
ro de militares engajados nas missões de paz das Nações Unidas.
A cooperação militar dos Estados africanos também é analisada em
diversos capítulos. Sudão, Tannia, Angola, Zimbábue, África do Sul e
Namíbia, por exemplo, são Estados que têm acordos militares com a Chi-
na abordados ao longo do livro.
A grande reexão proporcionada em China and Africa: Buiolding
Peace and Cooperation on the Continent se encontra na ideia da articulação
de uma política externa que concilia a defesa dos seus interesses com uma
projeção de força militar, respaldada pelo direito internacional, e aplicada
sob mandato da Organização das Nações Unidas.
Vale observar que o número de publicações acadêmicas sobre a
China cresce tão rápido quanto a própria China. No entanto, existe uma
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Marcos Valle Machado da Silva Resenha do livro: China and Africa: Building Peace and Cooperaon on the Connent
lacuna acerca do crescente envolvimento da China nas questões de segu-
rança presentes no continente africano. Essa lacuna é preenchida, ainda
que parcialmente, com os capítulos que constituem China and Africa: Buil-
ding Peace and Cooperation on the Continent.
Em síntese, a atualidade das questões abordadas, aliada a uma ar-
gumentação direta e de fácil compreensão, faz da obra em pauta uma
leitura obrigatória para aqueles interessados em ampliar o conhecimento
acerca das relações de poder e de política externa protagonizadas pela
China, decorrentes da sua crescente participação na economia e nas ques-
tões de segurança do continente africano.
Referências:
ALDEN, Chris; ALAO, Abiodun ; BARBER, Laura; CHUN, Zhang. China and Africa: Building
Peace and Cooperation on the Continent. USA: Palgrave Macmillan, 2018, 403 p.