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Os desafios humanitários e novas práticas
de great power management: uma
comparação entre as posições da França e
da Alemanha frente à “crise de refugiados”
Humanitarian challenges and new practices of great
power management: a comparison between French and
German positions towards the so-called refugee crisis
Los desafíos humanitarios y nuevas prácticas de great
power management: una comparación entre las posiciones
de Francia y de Alemania frente a la “crisis de refugiados”
Cláudia Alvarenga Marconi
1
Anna Paula Ramos
2
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2020v8.n1.p107
Recebido em: 14 de maio de 2019
Aceito em: 05 de novembro de 2019
R
O presente artigo visa entender como se dá a gestão das grandes potências,
França e Alemanha, frente à assumida crise de refúgio atual no contexto euro-
peu. Para tanto, partimos da noção mais ampla de “instituições primárias”, parte
do léxico da denominada Escola Inglesa (EI) de Relações Internacionais (RI), e,
mais especicamente, da candidata a instituição primária que parece ter maior
poder de constranger as demais – o great power management. A partir da com-
paração entre duas importantes potências europeias – Alemanha e França – a
primeira fora, no que tange ao poder de veto, da institucionalidade internacional
core de great power management – o Conselho de Segurança da ONU (CSONU) - e
a segunda inserida nessa mesma institucionalidade -, busca-se vericar de que
forma ambas traduzem o denominado “novo humanitarismo” como meca-
nismo de gestão internacional ao responderem, ainda que diferentemente, à
percepção crescente de que a Europa enfrenta contemporaneamente uma crise
de refugiados.
Palavras-chaves: Instituições primárias. Great power management. Novo humani-
tarismo. França. Alemanha.
A
This article aims at understanding how France and Germany articulate a great
power management strategy while facing the contemporary refugee crisis
1. Doutora em Ciência Política pela USP
(2013). Professora da Graduação e do
Mestrado Profissional em Governan-
ça Global e Formulação de Políticas
Internacionais (GGFPI) da PUC-SP.
Professora Colaboradora do Programa
de Pós-Graduação San Tiago Dantas
(UNESP/UNICAMP/PUC-SP). É também
professora e titular da Cátedra Jean
Monnet de Estudos Europeus na FECAP.
Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-
9394-6724
2. Bacharel em Relações Internacionais
pela FECAP. Orcid iD: https://orcid.
org/0000-0003-1924-8500
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 107 - 124
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involving the European context. In this sense, we depart from the general
concept of primary institutions, part of the vocabulary of the English School of
International Relations, and, more specically, we adopt the candidate of prima-
ry institution capable of constraining others: the great power management in
this analysis. Through the comparison between two central European powers
– Germany and France – the former an outsider in terms of veto power of the
main international institutionality of great power management – the United
Nations Security Council (UNSC) and the latter inserted in such an institution-
ality, we strive to verify how both of them translate the so-called new humani-
tarianism as a great power management mechanism to the extent they respond,
even though dierently, to the rising perception that Europe has been facing a
contemporary refugee crisis.
Keywords: Primary Institutions. Great power management. New Humanitari-
anism. France. Germany.
R
El presente artículo pretende comprender como ocurre la gestión de las grandes
potencias, Francia y Alemania, frente a la asumida crisis de refugio actual en
el contexto europeo. Para ello, iniciamos de la noción del más amplia de las
“instituciones primarias”, parte del léxico de la nombrada Escuela Inglesa (EI)
de Relaciones Internacionales (RI), y, más especícamente, del candidato a la
institución primaria que parece haber mayor poder de restringir las demás – el
great power management. Basado en la comparación entre las dos potencias euro-
peas más importantes – Alemania y Francia – la primera fuera, acerca del poder
de veto, de la institucionalidad internacional core de great power management – el
Consejo de Seguridad de la ONU (CSNU) - y la segunda insertada en la misma
institucionalidad -, busca vericarse a cual molde los dos traducen el denomi-
nado “nuevo humanitarismo” como mecanismo de gestión internacional al
respondieren, aunque de manera diferente, la creciente percepción de que la
Europa enfrenta contemporáneamente una crisis de refugiados.
Palabras clave: Instituciones primarias. Great power management. Nuevo humani-
tarismo. Francia. Alemania.
Considerações iniciais
O presente artigo procura dar conta do conceito “instituições pri-
rias” apresentando a denição dada pela literatura da Escola Inglesa
(EI)
3
e analisando especicamente a instituição great power management
(GPM), pois numa lógica assimétrica entre os Estados, as denominadas
grandes potências sempre tentaram controlar os movimentos e a expan-
são da sociedade internacional, constituindo-se no que Hedley Bull (2002),
principal expoente dessa abordagem, determina de o “gerenciamento” ou
gestão das grandes potências”.
Essa gestão é constantemente colocada em xeque por movimen-
tos que escapam do controle dos Estados, como por exemplo, a crise dos
refugiados
4
que atinge a Europa desde 2014, ocasionada por conitos em
regiões como a do Grande Oriente Médio, principalmente na Síria e sua
realidade de guerra civil, e que forçou milhões de pessoas a se descolarem
para a Europa em busca de refúgio
5
.
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Re-
fugiados (ACNUR) (EUROPARL, 2018), em 2014, a chegada de refugiados
3. É uma abordagem de via média das
RI que trabalha com a ideia de que há
uma sociedade de Estados caracterizada
pela existência de interesses comuns e
valores compartilhados entre os insiders
dessa mesma sociedade inter-estatal.
Ademais, a EI valoriza três formas
complementares de se debruçar sobre o
internacional: uma que valoriza o estudo
da história, outra que confere zoom a
aspectos normativos e outra ainda que
enaltece a dimensão empírica dessa for-
ma de organização social internacional.
Para mais detalhes, Cf. Dunne, 1998.
4. Há o questionamento por parte de
alguns estudiosos de que o fato desse
fenômeno ter se hipervisibilizado na me-
dida em que incidiu sobre a Europa faz
com que não seja um critério suficiente
para determiná-lo como “crise”. Exem-
plos de contribuições que levantam
esse aspecto são: Sohlberg; Esaiasson;
Martinsson (2018) e Gregurovic; Zupari-
c-Iljic (2018).
5. Faz-se importante salientar que a
Europa enquanto destino dos migrantes
também é explicada pelo saturamento
de vários países vizinhos da própria
região do Grande Oriente Médio. O
caso do Líbano, por exemplo, ilustra
bem a questão dos limites intraregio-
nais. De acordo com dados da Anistia
Internacional (online), “Lebanon hosted
more than 1 million refugees from Syria,
in addition to several hundred thousand
long-term Palestinian refugees and
more than 20,000 refugees from other
countries. The authorities maintained
restrictions that effectively closed Leb-
anon’s borders to people fleeing Syria”
(AMNESTY INTERNATIONAL, 2018).
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Cláudia Alvarenga Marconi e Anna Paula Ramos Os desaos humanitários e novas prácas de great power management:
uma comparação entre as posições da França e da Alemanha frente à “crise de refugiados”
quadruplicou, com um total de 280 mil. Em 2015, quando a crise atingiu
aparente o ápice, com a estagnação da guerra na Síria e a deterioração das
condições de vida nos campos de refugiados, foram mais de um milhão
de solicitações de refúgio. Estima-se ainda que dos 175.800 cidadãos sírios
que receberam proteção internacional na União Europeia, mais de 70%
se concentrou apenas na Alemanha, país que mais acolheu os refugiados
(EUROPARL, 2018).
Dada a centralidade do espaço europeu na questão, o artigo se
propõe a comparar de que forma a Alemanha e a França, que na con-
juntura internacional são as duas grandes potências europeias que mais
se pronunciam acerca da crise, estão utilizando-se do discurso do “novo
humanitarismo”, uma concepção atualizada da ajuda humanitária e
que visa ao imperativo político sobre o humanitário, como uma nova
prática da sociedade internacional que se traduz sob o GPM frente à
questão migratória.
A comparação será feita a partir de um mapeamento das propostas
em relação às políticas de acolhimento desses dois Estados frente à aná-
lise dos documentos das reuniões do Conselho de Segurança da ONU
(CS), instituição secundária central e responsável por traduzir a primária
great power management no âmbito institucional internacional. Buscou-se
levantar e organizar os registros de todas as reuniões do CS entre os anos
de 2015 e 2016, período em que se registraram os maiores índices de re-
fugiados chegando na Europa, e observando como se deu a abordagem
desse tema nas discussões, assim como levantando as medidas tomadas
pelos demais membros para auxiliar as vítimas e os países atingidos.
Mais adiante, o artigo levanta a hipótese de se a presença da França como
membro permanente do CS– com poder de veto – e a ausência da Alema-
nha neste órgão interfere nas posições adotadas por esses Estados no dito
contexto, já que o Conselho é visto como monopolizador da tomada de
decisão internacional das grandes potências.
A m de cumprir com o que se propõe, o artigo está estrutura-
do em três seções. Em uma primeira seção, é contemplada a discussão
teórica acerca das instituições primárias e secundárias, revelando as con-
cepções clássicas e contemporâneas dessas concepções e como a Escola
Inglesa articula a relação entre essas institucionalidades. Aqui, o objetivo
será explorar esse conceito com ênfase na instituição primária denomina-
da de great power management, pois é a partir da crença e controle sobre
os meios do GPM que as grandes potências desenvolvem as diretrizes de
suas políticas.
Na segunda seção, será tratado brevemente o agravamento da “cri-
se dos refugiados”, apresentando de que forma a concepção de novo hu-
manitarismo
6
aparece como resposta das grandes potências a esse dilema.
Aqui, assumimos o novo humanitarismo como uma espécie de prática
emergente da sociedade internacional, dotado de muitas das caracterís-
ticas associadas às instituições primárias. A m de sustentar empirica-
mente esse argumento, faz-se a análise das políticas francesa, alemã e do
posicionamento do Conselho de Segurança frente a esse fenômeno, en-
fatizando como fazem uso do discurso do “novo humanitarismo” como
forma de gerenciamento da questão.
6. Mark Duffield é o teórico crítico que
conceitua o novo humanitarismo a
partir do nexo entre desenvolvimento
e segurança. Para maior conhecimento
em relação a esta noção, central no
desenrolar do argumento do presente
artigo, ver DUFFIELD, 2001.
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A partir dos conceitos apresentados, expõe-se, na terceira e última se-
ção, a relação entre as instituições primárias e secundárias a partir da referida
temática e da argumentação de que se tem no novo humanitarismo a criação
de uma nova instituição, e que o Conselho de Segurança exerce uma inuên-
cia direta e excessiva sobre as decisões de seus membros e não membros.
Bull e a lógica de poder na sociedade internacional: o conceito de
instituições internacionais.
Instituições primárias e secundárias
O conceito de “instituições primárias” constitui um elemento cen-
tral na Escola Inglesa, sendo entendidas como práticas sociais compar-
tilhadas entre os membros da sociedade internacional
7
e denidoras do
caráter básico e dos padrões de comportamentos legítimos estatais. Mar-
tin Wight
8
(2002), o primeiro autor dessa teoria a dar contorno a essa no-
ção, dene as instituições pririas como representações das relações
habituais dos Estados no cenário internacional, trazendo, como exemplo
delas, o comércio, a diplomacia, a guerra, a neutralidade, a arbitragem, o
equilíbrio de poder, o direito internacional e a soberania.
Posteriormente, Hedley Bull expandiu essa discussão buscando trazer
uma formulação do que seriam propriamente ditas as instituições primárias:
Podemos chamar de “instituições da sociedade internacional”: o equilíbrio de po-
der, o direito internacional, os mecanismos diplomáticos, o sistema administrativo
das grandes potências, a guerra. Por “instituição” não queremos referir-nos neces-
sariamente a uma organização ou mecanismo administrativo, mas a um conjunto
de hábitos e práticas orientados para atingir objetivos comuns. (BULL, 2002, p. 88)
De acordo com esse autor, as instituições são “[...] uma expressão do
elemento de colaboração entre os Estados no desempenho de suas fun-
ções e, ao mesmo tempo, um meio de sustentar essa colaboração” (BULL,
2002, p. 163). Mais do que apenas ser uma organização formal, Bull (2002)
argumenta que as instituições são os elementos que tornam a sociedade
internacional possível, oferecendo práticas padronizadas, conjuntos de
ideias e crenças num sentido de reetir as normas e regras presentes nes-
se meio. Em outras palavras, as instituições não têm o sentido de retirar a
soberania dos Estados e sim de ordenar e sustentar suas relações, expres-
sando a existência de uma sociedade internacional.
Barry Buzan (2004, p. 164), um dos principais autores contemporâ-
neos da Escola Inglesa, faz uma releitura dos signicados mais clássicos
desse conceito armando que as instituições possuem as características
de serem fundamentais e duráveis legitimando as relações estatais, além
de assumirem também as peculiaridades de serem dimicas e maleáveis
a essas instituições, o que na visão do autor permite se adequarem aos
novos movimentos internacionais. Essas duas últimas particularidades
são sustentadas por Buzan pela falta de clareza presente na concepção
clássica desse conceito. Para o autor (BUZAN, 2012), Bull, ao estudar esse
fenômeno, não expressa uma preocupação em descrever com precisão o
que são as instituições primárias e quais são critérios necessários para que
se possa considerar algo como se enquadrando ou não como tal.
7. Sociedade internacional é entendida
por um grupo de estados, conscien-
tes de certos interesses e valores
semelhantes, que se interligam por
um conjunto de regras e instituições
comuns. (BULL, 2002)
8. Martin Wight foi o grande prercursor
da Escola Inglesa, tendo Hedley Bull como
o seu “constant borrower”, já que foi
professor desse autor e responsável por
apresentar a visão inicial dessa teoria.
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Cláudia Alvarenga Marconi e Anna Paula Ramos Os desaos humanitários e novas prácas de great power management:
uma comparação entre as posições da França e da Alemanha frente à “crise de refugiados”
A consequência direta dessas lacunas está reetida na enorme va-
riedade
9
de candidatas a essa colocação, variando somente de acordo com
o sentido e hierarquização dados por cada autor. Com isso, o autor descri-
mina alguns pontos que necessitam de uma maior reexão, pois há uma
diferença no tratamento que recebem de cada Estado, o que gera uma
pluralidade nas interpretações das políticas adotadas por esses atores.
Outro conceito importante para se compreender a dimica das ins-
tituições primárias na sociedade internacional é o de instituições secundá-
rias, vistas como as apoiadoras das primárias (BUZAN, 2004). A Escola In-
glesa parece, então, assumir que elas são simplesmente manifestações orga-
nizacionais concretas e projetadas conscientemente para lidar com questões
especícas e colocar em prática as preocupações das pririas, não se tendo
assim um interesse dentro dessa literatura de analisá-las como autônomas.
Com isso, as instituições primárias são especícas porque apontam
os atores da sociedade internacional e as relações entre eles, enquanto
que as secundárias são constitutivas porque fornecem papeis diferen-
ciados aos atores, fortalecendo o engajamento entre eles e denindo as
identidades, interesses e capacidades no âmbito empírico, além de serem
responsáveis por traduzir o contexto em que as primárias existem, dan-
do-lhes forma e substância (SPANDLER, 2015).
A relação entre a instituição primária, great power management, e a
secundária, Conselho de Segurança, é um típico exemplo de como uma
secundária é essencial para a manutenção de uma primária. Hoje, os
membros permanentes do CS sustentam os seus poderes na conjuntura
internacional por meio do fato de estarem nessa posição. Dessa forma, o
status de grande potência e o gerenciamento desse poder são dependentes
da posição de serem membros permanentes do Conselho de Segurança.
Great power management
O conceito de grandes potências é apresentado por Hedley Bull
(2002) como a instituição primária que limita a autonomia relativa dos
demais Estados, pois são essas as responsáveis por controlar o nível de
desigualdade entre as instituições e os atores estatais, e são sustentadas
a partir de três elementos: a existência de duas ou mais potências de
status comparável que formam um “clube fechado” com todos os mem-
bros ocupando o mesmo plano de capacidade militar; a existência de
alguns direitos e obrigações concebidos por seus povos e vistos como
válidos pelos outros Estados; e o reconhecimento de que possuem certa
responsabilidade de modicarem as suas políticas para se adequarem
as suas obrigações de gerenciar o meio internacional. Dessa forma, o
fato de haver certos direitos e obrigações implícitos no papel das gran-
des potências faz com que a existências dessas só se dê em uma socie-
dade internacional em que haja o compartilhamento de regras, valores
e instituições em comum.
Com essa desigualdade sistemática, a contribuição das grandes po-
tências para a ordem internacional ocorre em dois sentidos: o primeiro é
administrando suas relações bilaterais de acordo as suas intenções peran-
te a ordem internacional e quando exploram sua preponderância em re-
9. Por exemplo: não intervenção,
comércio, direito internacional, direitos
humanos, colonialismo e soberania
(BUZAN, 2004, p. 174).
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lação aos outros Estados, respeitando as esferas de inuência e agindo em
conjunto em um sentido de concerto ou condomínio de grandes potências
(BULL, 2002). Porém, esses movimentos das grandes potências em função
de sustentar a ordem, não proporcionam, tal como Bull (2002) arma, uma
justiça entre os Estados, ou seja, tudo é orientado a partir de uma distribui-
ção desigual de poder, já que demais Estados reconhecem a necessidade de
se ter atores superiores que detenham uma capacidade de manter a ordem
internacional. E é justamente a partir desse reconhecimento e aceitação que
o papel das grandes potências se torna legítimo na sociedade internacional.
A legitimidade do papel das grandes potências recebe ênfase tam-
bém nos estudos de Barry Buzan e Shunji Cui (2016). Para esses autores,
devido ao fato de os Estados calcularem suas ações a partir do compor-
tamento dos outros, a instituição primária “equilíbrio de poder” se torna
o princípio-chave na regulação das relações estatais, pois permite que as
grandes potências detenham um nível maior de poder sem que ocorra
um excesso de domínio destas. Vale dizer que a GPM (Great Power Mana-
gement) é considerada distinta de uma hegemonia por possuir um caráter
legítimo, pois todos os Estados são membros da sociedade internacional,
logo concordam com a desigualdade para manter a ordem.
Outro ponto fundamental para a compreensão do papel das gran-
des potências é a abrangência desse gerenciamento sobre os demais Es-
tados. Tendo como exemplo os movimentos gerados pela “crise de refú-
gio, especicamente a conduta da França e da Alemanha, faz-se possível
desenvolver uma análise de como esses Estados gerenciam o seu poder
sobre suas zonas de inuência.
A França por ser um membro permanente do Conselho de Seguran-
ça, exerce sua inuência em um sentido global com as suas decisões impac-
tando na sociedade internacional como um todo e não somente a sociedade
internacional europeia, como é a gestão da Alemanha. O Estado alemão por
ter como peça chave de seu GPM a Uno Europeia, exerce o mesmo em
um sentido primeiramente regional, pois o domínio ocorre diretamente
sobre os Estados europeus que compõem esse bloco e aqueles com quem se
relacionam. Mas vale ressaltar que essa classicação é referente à primeira
expressão dessas gestões no ambiente internacional, ou seja, tanto a França
quanta a Alemanha exercem as duas formas de GPM, mesmo que em graus
diferentes. Entretanto, por participarem destas instituições secundárias que
traduzem estes modelos de gerenciamento - CS expressando um GPM glo-
bal e a UE um GPM regional - a análise que se faz em primeira instância é
partindo desse sentido articulado das instituições primárias e secundárias.
O desafio humanitário: great power management reformulado?
Crise dos refugiados
O gerenciamento das grandes potências europeias sobre as suas zo-
nas de inuência foi colocado em xeque com a profunda crise humanitá-
ria que se percebeu como real pela Europa e desaou os mecanismos das
políticas migratórias e de refúgio da UE e a sua competência em atender
a essa demanda tão alarmante.
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Cláudia Alvarenga Marconi e Anna Paula Ramos Os desaos humanitários e novas prácas de great power management:
uma comparação entre as posições da França e da Alemanha frente à “crise de refugiados”
A dita mobilidade internacional vem sofrendo profundas e rápidas
alterações nas rotas migratórias da bacia do Mediterneo, onde se cru-
zam os trajetos vindos da África e do Oriente Médio e que provocaram a
crise dos refugiados atual, como apontado por Ferreira (2016, p. 88):
Os conitos no Oriente Médio e Norte de África desestabilizam a região e poten-
ciam a mobilidade Sul-Sul e Sul-Norte. O conito na Síria, com a guerra civil e
a organização terrorista do autoproclamado «Estado Islâmico» (Daesh), está na
origem da maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial, com mais
de 4,8 milhões de refugiados, a maioria dos quais procurou abrigo nos países
vizinhos. [...] Também a contínua violência no Iraque e Afeganistão e os constan-
tes abusos na Eritreia potenciam migrações forçadas oriundas destes territórios.
Esses movimentos zeram com que milhões de pessoas procuras-
sem abrigos em países vizinhos, ocasionando uma superlotação na Tur-
quia e no Líbano, que com a falta de estrutura e graves problemas inter-
nos, não tiveram a capacidade de responder a essa demanda. Os países
que são porta de entrada da Europa, Itália e Grécia
10
, também começaram
a sofrer graves consequências com o alto uxo de refugiados e passaram
a clamar por assistência aos demais Estados europeus para que pudessem
juntos compartilhar os encargos desse deslocamento sem precedentes e
buscar uma melhor solução para ajudar essas pessoas (FERREIRA, 2016).
Em adição, Trauner (2016, p. 321) arma, de parte da UE, a existên-
cia de uma abordagem de centralização do “ônus” nos hotspots que, se
“[...] fully accepted and implemented, may therefore increase the respon-
sibility of states such as Greece and Italy to provide refugee protection,
while the new relocation scheme risks providing them with only a limit-
ed amount of relief.
Paralelamente, faz-se importante destacar que países europeus, tais
como Hungria e Áustria, mostram-se relutantes em compartilhar qual-
quer política pró-acolhimento dos uxos de refugiados que alcançam o
espaço europeu a partir dos supracitados países do Sul do continente. Se-
guindo os passos norte-americanos, esses países esvaziam esforços mul-
tilaterais em torno da proteção aos migrantes, tal como o Global Compact
for Safe, Orderly and Regular Migration (online), que entrou em vigor re-
centemente – 2018 - no âmbito do Sistema ONU de proteção aos direitos
humanos e inaugurou um primeiro framework integrado para as questões
relativas à migração. Contrariando, por exemplo, certo viés solidarista
atribuído, por vezes de forma não reetida, tanto à Alemanha quanto,
em alguma medida, à UE em relação à migração, Hungria e Áustria
11
reengendram e revigoram o sentido, na contramão do aprofundamento
da globalização, do Fortress Europe (Europa Fortaleza) e de seu poder sim-
bólico e concreto de estabelecer cercas, muros e zonas de contenção.
Nas palavras de Fromm, Jünemann e Sherer (2017, p. 1):
Europe nds itself at a crossroads: Nationalist, anti-migrant parties from Slovakia
over Germany to the UK are gaining increasing support among the electorate,
challenging not only the political “establishment”, but also ideas of an open and
humanitarian society. The political mainstream is under pressure and in search of
viable and durable solutions. While the search for solutions has not yet ended, a
pattern seems to be emerging.
As propostas de soluções desenhadas e articuladas a partir do novo
humanitarismo são as que aqui serão debatidas ao se eleger Alemanha e
10. Ver Trauner (2016).
11. A matéria a seguir do The Indepen-
dent (online) é ilustrativa de muitas
que estamparam os jornais cobrindo
o comportamento de países que são
reconhecidos e também se reconhecem
como anti-imigrações: https://www.
independent.co.uk/news/world/europe/
austria-un-migration-global-pact-agree-
ment-us-hungary-sebastian-kurz-free-
dom-party-a8610161.html.
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França, comparando ambos os Estados a partir de suas atuações no CSO-
NU, como expressões do GPM e de seu potencial para produzir novos
signicados ou ensejar novas práticas da sociedade internacional.
Novo humanitarismo: uma nova prática da sociedade internacional?
A resposta das grandes potências frente a essa crise migratória veio
traduzida a partir do mais recente paradigma da ajuda humanitária: o
novo humanitarismo” (NASCIMENTO, 2013), que ora pode ser traduzi-
do apenas como um instrumento desses Estados para manter um geren-
ciamento ecaz, ora é visto como um forte candidato a instituição pri-
ria por desempenhar um novo perl de comportamento das grandes
potências ao lidarem com a paz e o conito.
A possibilidade de se ter o “novo humanitarismo” como uma ins-
tituição primária parte da noção de que este é um novo elemento de
colaboração entre Estados - vinculado a um âmbito de normas e valores
da sociedade internacional - para responder aos constrangimentos im-
postos. Em outras palavras, surgiu na sociedade internacional a neces-
sidade de atender as emergências humanitárias e para isso os Estados,
especicamente a Alemanha e a França, passaram a utilizar esse discur-
so como um novo comportamento a ser praticado em prol de mante-
rem efetivo seu GPM, já que essa concepção atual da ajuda humanitária
permite um caráter vinculado diretamente com os interesses estatais
e não somente com um imperativo moral-humanitário como em sua
concepção clássica se vericava.
A noção de humanitarismo, em sua formulação clássica, é caracte-
rizada por uma base normativa que garante à ação humaniria um foco
na proteção das vidas daqueles que não fazem parte do conito direto
com o imperativo humanitário justicando a intervenção, como aponta
Daniela Nascimento (2013, p. 96).
Na sua abordagem mais clássica existem, portanto, algumas condições subjacen-
tes à concretização de atividades humanitárias, tais como a provisão de assis-
tência e proteção sem qualquer tipo de distinção de raça, cor, pertença religiosa
ou étnica. Neste sentido, torna-se fundamental que tal ação seja guiada pelo
princípio de imparcialidade, de modo a assegurar que todos são assistidos de
igual modo e apenas com base na sua necessidade imediata. [...].
O nal da década de 90, principalmente devido às limitações im-
postas pela Guerra Fria, foi marcado por mudanças e as novas interpreta-
ções dessa ação. O aspecto de neutralidade foi colocado em xeque com o
surgimento das chamadas “emergências complexas”, que envolviam um
leque de dimensões - política, econômica e social - e exigiam uma solução
que abrangesse todos esses quesitos. As intervenções deixaram de ter um
foco somente em salvar vidas e passaram a ter uma maior preocupação na
reconstrução da sociedade pós-conito (NASCIMENTO, 2013).
E é nesse contexto que se fundamenta a nova abordagem da ajuda
humaniria, denominada de “novo humanitarismo”, em que a interven-
ção no conito passou a ter um caráter político com o apoio dos governos
doadores e de Organizações Não Governamentais. Como arma Nasci-
mento (2013), a ideia central dessa visão é ter a ajuda fundamentada a
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Cláudia Alvarenga Marconi e Anna Paula Ramos Os desaos humanitários e novas prácas de great power management:
uma comparação entre as posições da França e da Alemanha frente à “crise de refugiados”
partir de diretrizes e estratégias de médio e longo prazo visando a prote-
ção dos direitos humanos e projetos de reconstrução pós-guerra nas áreas
de educação, saúde, administração pública e, em última instância, da paz.
Dessa forma, e tal como defende Mark Dueld (2001), em con-
textos de conito e pós-conito a promoção do desenvolvimento se
tornou semelhante ao sentido de segurança. O que é levado em conta
não é mais o imperativo humanitário e sim os processos que se instala-
rão a m de atingir os objetivos estabelecidos pelos Estados doadores.
Portanto, a ajuda humaniria passa a estar condicionada a uma ética
consequencialista: “The consequentialist ethics of the new humanitar-
ianism, however, in holding out the possibility of a better tomorrow
as a price worth paying for suering today, has been a major source
of the normalisation of violence and complicity with its perpetrators”
(DUFFIELD, 2001, p. 106-7).
O foco recai sobre os governos doadores, pois serão eles que de-
cidirão quem receberá a ajuda, retirando das organizações o papel de
mobilização e fazendo com que sejam esquecidos os princípios que guia-
vam o humanitarismo clássico, substituindo-os por objetivos de desen-
volvimento e de resolução do conito, sucedendo em um tipo de política
que desvaloriza as normas dos direitos humanos em nome de objetivos
relevantes (NASCIMENTO, 2013) e tangíveis para o gerenciamento do
âmbito internacional. Além de colocar em xeque também o princípio da
imparcialidade, já que agora não é mais respeitado o imperativo da neces-
sidade humana e sim são considerados os interesses dos Estados (DUF-
FIELD, 2001).
Com esse novo conteúdo, as grandes potências passaram a ver o
novo humanitarismo” como uma ferramenta de resgate da capacida-
de de gerenciar as situações em que a sua administração está em risco,
como a crise dos refugiados, pois a interferência dos agentes nesse con-
ito muda de um caráter pontual para um vinculado com a noção de
se instalar no país alvo. Dessa forma, Dueld (2001) arma que a ajuda
humaniria passou a ter uma dimensão assumidamente política, com
vistas a estimular processos políticos e sociais e não apenas ir ao encontro
de atender as necessidades e o sofrimento das vítimas.
Em complementaridade ao teor crítico introduzido por Dueld,
Zetter (2005), em interessante debate sobre as normas internacionais de
proteção relativas às diferentes categorias da mobilidade, reconhece uma
paisagem normativa fragmentada nessa matéria, apontando que: “[...] pro-
tection space and the quality of protection [...] have diminished, and that
international norms and standards have been sacriced to operational
and political imperatives, creating a fragmented landscape of protection”.
Nessa mesma tônica crítica, o autor arma muito mais a existência de
uma gestão da proteção (protection management) do que o robustecimento
de uma norma internacional protetiva (ZETTER, 2005). Argumenta-se
aqui que a gestão da proteção pode soar e por vezes parecer despolitizada.
Entretanto, ela colabora justamente na produção de novos espaços – in-
clusive institucionais - para os sentidos mais verticais do político se reco-
locarem desde o internacional.
116
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 107 - 124
Conselho de Segurança da ONU e a ajuda humanitária: aproximações
preliminares entre França e Alemanha
Devido a esse contexto, a pressão sobre Alemanha e França no que
cabe à responsabilidade de acolher os refugiados que chegam à Europa,
traduziu-se no fato de que são na conjuntura do equilíbrio de poder os
grandes players europeus, e necessitam atender as reivindicações impos-
tas pela sociedade internacional mais abrangente em função de manter
suas gestões fortes e legítimas.
Contudo, com vistas a compreender como ocorre a articulação
desses Estados perante a esse fato, devem ser levadas em consideração
não somente as semelhanças que elas apresentam entre si - como o nível
de desenvolvimento e aspectos culturais e econômicos - mas principal-
mente a diferença de se ter a França como membro permanente do Con-
selho de Segurança e a Alemanha
12
fora da condição tanto de membro
permanente quanto de membro não permanente do referido órgão no
período aqui recortado
13
.
O Conselho de Segurança é o órgão responsável pela manutenção
da paz e segurança internacional, formado por quinze membros: sendo
cinco permanentes, que possuem o direito a veto e são Estados Unidos,
Rússia, Reino Unido, França e China e dez membros não permanentes,
eleitos pela Assembleia Geral por dois anos. Esse órgão é o único da ONU
que possui poder decisório, ou seja, todos os membros das Nações Unidas
devem aceitar e cumprir as decisões do CS. Por esse motivo, o veto é visto
como uma regra que formaliza e explicita o GPM.
Partindo da estrutura desse órgão e de como se dá os seus mo-
vimentos, para se defender a hipótese de que a participação da França
como membro permanente interferiu em sua postura no tocante à crise
humaniria, foram analisadas todas as reuniões do CSONU dos anos
de 2015 e 2016
14
- anos em que a crise atingiu o seu ápice - dando ênfase
aos encontros em que se foi discutido como principal o tema das insta-
bilidades derivadas do uxo migratório na Europa. E no sentido de ter
uma compreensão mais harmonizada da percepção internacional frente
a esse dilema e de se ter mecanismos para comparar a postura dessas
duas grandes potências, averiguou-se além da posição francesa, a con-
duta da Alemanha e da União Europeia
15
no mesmo espaço institucional
do Conselho de Segurança da ONU e, portanto, nas reuniões das quais
esses atores participaram.
Com isso, observa-se que mesmo com o agravamento dessa cri-
se, essa não foi uma das questões mais recorrentes nas reuniões durante
os dois anos
16
. Nota-se, então, que quando se discutem os conitos no
Oriente Médio, o foco recai para a tomada de decisões em relação às so-
luções que possam cessar os conitos em si, na proteção dos civis que
estão nesses países e no m das ameaças terroristas que estão fortemente
conectadas pelos atores com esses eventos. Dessa forma, o CS fez movi-
mentos mais preocupados com a segurança dos territórios conituosos e
12. Foi em 2012 que a Alemanha
cumpriu o seu último mandato como
membro não permanente do referido
órgão. Vale ressaltar ainda que o
Estado alemão é um dos principais
atores que reivindica uma restruturação
do Conselho para que novos Estados
possam ter a possibilidade de ocupar o
cargo de membro permanente. Para uma
cronologia completa da participação
alemã no CSONU, ver: https://www.
un.org/securitycouncil/search/country?-
field_member_state_value=DEU.
13. A partir desse contraste entre
Alemanha e França, levanta-se a
hipótese de se é esse o fator crucial
para se compreender o porquê de uma
distinção nas políticas de acolhimento
adotadas pelos dois Estados frente à
crise migratória atual.
14. No ano de 2015 foram realizados
241 encontros, sendo que 10 apresen-
taram a temática da crise migratória
como foco. Já em 2016, o número de
encontros total foi de 255, sendo que
somente 3 apresentaram a questão
migratória como foco. Assim, foram
objeto da análise do presente artigo os
registros de 13 encontros nos dois anos
aqui compreendidos. A documentação
pode ser acessada, por ano, em: http://
research.un.org/en/docs/sc/quick/mee-
tings/2016 e http://research.un.org/en/
docs/sc/quick/meetings/2015.
15. O objetivo aqui não compreendeu
analisar as soluções solidárias da UE e
sim entender como França e Alemanha,
os dois principais Estados desse arranjo
integrativo, buscam no GPM global
do CSONU atenuar os efeitos desse
episódio. Entretanto, vale indicar que
não se negligenciou a UE enquanto
global player. O fato de o artigo não
se debruçar sobre a UE enquanto
instituição secundária da sociedade
internacional não foi impeditivo para
vê-la e reconhecê-la como ator dessa
mesma sociedade. Representativo disso
foi destacar posições da UE no que
tange às reuniões aqui analisadas, cf.
nota de rodapé 13.
16. Pode-se afirmar que as questões
mais recorrentes nas reuniões durante
o período de 2015 e 2016 foram os con-
flitos nas regiões da África e do Oriente
Médio, as operações de peacebuilding
e peacekeeping, a não-proliferação de
armamento nuclear e o combate ao
terrorismo. Para maiores informações,
ver indicações na nota de rodapé 13.
117
Cláudia Alvarenga Marconi e Anna Paula Ramos Os desaos humanitários e novas prácas de great power management:
uma comparação entre as posições da França e da Alemanha frente à “crise de refugiados”
em como conseguir combater o terrorismo do que evidentemente com a
crise humanitária, deixando esse papel para o ACNUR
17
e para a UE.
Duas linhas de pensamento podem ser formuladas para tentar ex-
plicar essa lacuna do órgão. A primeira vai ao encontro de que a maioria
dos membros permanentes não estão localizados nas regiões de entradas
desses refugiados, ou seja, não estavam sendo “afetados” por esse uxo di-
retamente e, desse modo, não tinham interesses nacionais em evidenciar
essa pauta nas discussões. A outra linha se formula baseada na ideia de
que o Conselho atuou de maneira pontual nas regiões de conitos ape-
nas no intuito de evitar um estado de emergência que poderia dicultar
ainda mais as suas ações na região. Em outras palavras, a ajuda humani-
ria vinda do órgão não ocorreu de forma a minimizar o sofrimento dos
indivíduos atingidos por esses conitos - aqui se considera tanto aqueles
que fugiram desses países quanto os que ainda permaneceram nas regiões
conituosas – mas sim, no sentido de ajudar apenas aqueles que estavam
no cessar fogo, pois a condição de insegurança desses impactaria direta-
mente a gestão de seus interesses nacionais na área.
A partir dessa análise, observa-se que há alguma categorização de
prioridades
18
nas ações do Conselho. Ou seja, a intervenção nos coni-
tos era a prioridade máxima do órgão, pois é nesse âmbito que os seus
interesses estavam efetivamente em risco, enquanto a questão migratória
se torna uma questão secundária por não atingir diretamente a gestão
internacional mantida por esses. Com isso, o CS passou a exercer esforços
somente em direção a conter os conitos no Oriente Médio, inuencian-
do diretamente nas respostas dos membros permanentes a esse caos hu-
manitário, como é notado na política de acolhimento francesa.
Política de acolhimento francesa: omissão frente ao caos europeu?
Analisar a postura da França frente à crise dos refugiados traz a
necessidade de observar quatro pontos importantes que, interligados, ex-
plicam como se dá o seu posicionamento frente a essa questão: seu cargo
de membro permanente no Conselho de Segurança, ter que lidar com o
estabelecimento da Alemanha como principal grande potência da União
Europeia, ser um país com alto índice de xenofobia e a insegurança gera-
da pelos ataques terroristas que são associados à chegada de refugiados
19
.
Como um membro permanente do CS, a França possui uma “certa
restrição” no quesito de formular suas políticas num sentido coerente ao
que é prioridade e discutido nesse órgão, o que é comprovado quando
analisada a conduta francesa nas reuniões em que foramdiscutidos assun-
tos ligados à crise dos refugiados nos anos de 2015 e 2016. Nota-se uma
posição francesa muito preocupada com os casos de ataques terroristas
que se alastraram pela Europa - já que entre esses dois anos o país sofreu
cerca de catorze atentados (14 ATENTADOS..., 2017). Em uma das reu-
niões o representante francês, Laurent Fabius, acusou o próprio Conselho
de ser omisso frente a essas barbaridades do Estado Islâmico, o denindo
como “[...] the Council of impotence [...]” (UN, 2015a). Já em outra reunião,
que ocorreu também em 2015, o país chegou a propor uma mudança na
regulamentação do veto em casos de atrocidades humanitárias, arman-
17. Aqui não se pretende tratar o
ACNUR, importante institucionalidade
humanitarista, pois é um órgão de outra
natureza que não traz um protagonismo
para as grandes potências e não se
estrutura de acordo com a lógica do
GPM destas.
18. Nesse sentido, o Conselho parece
sustentar essa categorização de
prioridades a partir da justificativa de
que não é de sua competência atuar
diretamente nas questões humanitárias,
mas tão somente atuar militarmente
nos conflitos ou na administração de
eventuais Missões de Peacekeeping e
Peacebuilding. Por categorização, en-
tende-se aqui o conjunto hierarquizado
de importantes temas da então agenda
do CSONU. Não está no topo da lista de
prioridades, frente a essa categorização,
a assistência às vítimas de conflitos e a
reparação a danos humanitários.
19. De acordo com dados colhidos e
apresentados pela BBC Internacional, no
ano de 2016 eram computados cerca de
dez ataques/dia a imigrantes, e que vão
de incêndios criminosos a alojamentos
específicos até ataques a organizações
que prestam apoio ao grupo vulnerável
em questão. Ver BBC, 2017.
118
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do que o papel de membro permanente lhes dava uma responsabilidade
com a sociedade internacional e não apenas um “[...] symbol of status [...]
(UN, 2015b). Porém, o que se observa é que todas essas críticas são mo-
tivadas pelo objetivo de cessar o conito e os ataques terroristas e não
especicamente medidas que solucionem a crise, o que reforça o caráter
de um discurso humanitário puramente retórico.
Além da questão do terrorismo, a França teve como preocupação
secundária – igualmente como observado no Conselho como um todo -
a resolução do conito na Síria, indicando que a paz no Oriente Médio
traria o m do terrorismo na Europa, conforme se explicita na fala do
representante francês, Laurent Fabius, após os ataques terroristas de 13
de novembro de 2015:
Syria had become the “greatest factory manufacturing terrorists”, he said, asking
stakeholders to launch a political process in which Bashar Al-Assad was not part
of the solution. Finally, the current refugee crisis was one of the most direct
results of the Syrian conict, he said, warning that if it continued, it would
become a major destabilizing force. (UN, 2015c)
E, a despeito da crise ser citada na fala, essa é apresentada em um
sentido secundário em relação ao conito da Síria, além que se arma
que “ainda poderá se tornar uma grande força desestabilizadora” (UN,
2015c), ou seja, o representante desconsiderou os índices alarmantes
20
que
esse uxo de pessoas já tinha atingindo em meados de novembro de 2015
e defendia que o foco deveria continuar recaindo exclusivamente no com-
bate ao terrorismo.
Essa solução que tanto a França como o Conselho defendem está
baseada em implementar uma governança nos territórios de conito que
prevenisse novas hostilidades e promovesse o desenvolvimento. Arma-
vam, portanto, a necessidade de uma resposta desenvolvimentista, indo ao
encontro do conceito de “novo humanitarismo” na tentativa de acabar com
essa guerra e manter o GPM efetivo e não propriamente ajudar as pessoas
que chegavam à Europa, transferindo essa responsabilidade para a ACNUR.
Outro aspecto primordial para se entender a política de acolhimen-
to francesa, é a comparação com a Alemanha. Enquanto o Estado alemão
no ano de 2015 recebeu mais de um terço de todos os requerentes de asilo
na Europa - cerca de 476 510 solicitantes -, a França não teve que enfrentar
o desao, já que apenas cerca de 6% de todos os solicitantes apresentaram
o seu pedido inicial ao país (KOENIG, 2016).
Na opinião dos franceses, essa diferença pode ser explicada devido à
política de acolhimento formulada por Angela Merkel ter um forte incen-
tivo para que os refugiados fossem por vontade própria para Alemanha.
Argumenta-se ainda que essas medidas sejam uma exibição de altruísmo,
mas também um mecanismo de facilitar o desenvolvimento demogco
e melhorar a defasagem da mão de obra barata. Em contra-argumento,
os alemães armam que esse movimento não se justifica somente como
consequência da política adotada pela chanceler, mas também pela situação
econômica favorável que o país apresenta ultimamente (KOENIG, 2016).
Outra diferença que esses dois países apresentam são as percepções
que a população tem sobre as pessoas que chegam em busca de auxílio.
Na Alemanha, os nativos falam sobre uma “crise de refugiados” suge-
20. O ano de 2015 foi aquele em que a
crise teria atingido o seu ápice, com um
total de 1.321.600 pedidos de asilo na
UE (EUROPARL, 2018).
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Cláudia Alvarenga Marconi e Anna Paula Ramos Os desaos humanitários e novas prácas de great power management:
uma comparação entre as posições da França e da Alemanha frente à “crise de refugiados”
rindo uma ligação empática com a situação - sentimento que pode ser
explicado pelo passado alemão com os movimentos de refúgio provoca-
dos pela Segunda Guerra Mundial em 1945. Já os franceses se referem a
uma “crise migratória” englobando diferentes categorias de migrantes
21
,
demonstrando certa relutância em abrigar essas pessoas, pois se tem uma
percepção de risco associada a possível “[...] tomada de empregos [...]” dos
trabalhadores europeus (KOENIG, 2016, p. 3). A partir dessa diferença
é possível notar outro ponto para o entendimento da relação da França
com os refugiados: a questão da xenofobia
22
, muito presente nessa socie-
dade. Alimenta-se ali a crença de que os estrangeiros seriam um “encar-
go” para as autoridades e representariam uma ameaça à população, não
devendo o governo francês ser receptivo.
O foco central francês recaiu então sobre a questão de segurança
devido aos ataques terroristas e a prevalência da defesa de seus nacionais,
justicando que papel ativo em países estrangeiros e política de seguran-
ça -principalmente em relação à luta militar contra o Estado Islâmico- são
a sua contribuição nas causas dos refugiados. Em outras palavras, tem-se
uma tentativa de atender as demandas internacionais sem modicar em
grande escala os seus próprios interesses. É dessa forma que a França se-
gue conectando à manutenção de sua segurança nacional o GPM efetivo.
Política de acolhimento alemã: solidária ou oportunista?
A ascensão alemã como o grande ator da União Europeia pode ser
entendida como um processo que se iniciou após a Guerra Fria com o
surgimento de uma nova dimica de distribuição do poder econômico
e político que reorientou as relações internacionais, gerando, sobretudo,
uma reconguração da ordem europeia no sistema regional, com o pro-
cesso transição da Alemanha como potência central da Europa no novo
cenário mundial.
No comando do Estado alemão, a chanceler Angela Merkel conse-
guiu atender as reivindicações internacionais nos três grandes desaos
de política externa a partir de 2015 - o conito Ucnia, a crise do euro
na Grécia, e a crise dos refugiados - defendendo uma resposta europeia
em conjunto na tentativa de afastar a ideia de que a política externa ale-
tinha um caráter mais unilateral (JANNING; MOLLER, 2015, p. 1).
Contudo, foi durante o último desses eventos que se teve um abalo nessa
postura e começou a estremecer a liderança da Alemanha, pois a política
refugees welcome impediu uma concentração de refugiados nos Estados-
-membros do sudeste, mas causou um colapso no Regulamento Dublin
II (JANNING; MOLLER, 2015, p. 2)
23
, visto que mesmo pedindo solida-
riedade e apoio com essa causa que, deveria ser partilhada por todos os
Estados-membros, Merkel não obteve a assistência necessária tendo que
negociar uma solução com a Turquia, pois a impressão que se tinha era
essa “resposta em conjunto” defendida pela Alemanha era uma tentativa
desse governo de corrigir assimetria de poder presente dentro do bloco
(JANNING; MOLLER, 2015, p. 3).
Poucos membros se opuseram claramente às propostas da Comis-
são Europeia para a solução dessa crise, porém mostraram pouco inte-
21. Imigrantes são pessoas que se
descolam de forma voluntária de seu
país de origem, com intenção de se
estabelecer por algum tempo no Estado
de acolhida. Já os refugiados estão fora
de seu país devido a fundados temores
de perseguição relacionados a questões
de raça, religião, nacionalidade e à gra-
ve e generalizada violação de direitos
humanos e conflitos armados.
22. Essa é uma questão histórica da
sociedade francesa ligada ao processo
de colonização, em que a França foi
uma das grandes colonizadoras do
território africano, fazendo com que a
sua população tivesse um alto índice
de miscigenação, o que acarretou num
sentimento xenofóbico incentivado pelo
nacionalismo extremista presente numa
parte dos cidadãos.
23. Aponta que os refugiados devem
pedir asilo ao primeiro país da UE em
que chegarem. Cf. EUROPEAN COMIS-
SION, 2003.
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resse em executar rapidamente essas decisões, o que tornou mais difícil
a concretização de uma solução mais efetiva. Deste modo, a Alemanha
viu a gestão desse uxo imigratório sendo lidada como uma disputa de
interesses nacionais de cada Estado. Pode-se dizer que até o próprio go-
verno alemão, apesar de toda a sua tentativa de se mostrar totalmente so-
lidário, tentava defender os seus interesses em primeiro lugar- em que os
Estados-membros do Sul e do Oeste insistiam em uma resposta conjunta
(FERREIRA, 2016, p. 92), pois estavam sendo confrontados com o au-
mento de pessoas irregulares em seus territórios; enquanto que os países
destinos resistiam em fornecer mais recursos nanceiros ou em aceitar
um número maior de refugiados.
Por consequência de todas essas contradições em torno da discussão
com os membros da UE, a impotência da Alemanha perante o uxo migra-
tório foi aumentando, o que levou à adoção de um acordo polêmico entre
a UE- que serviu como “peça jurídica” da Alemanha nessa celebração- e a
Turquia
24
, o principal país de tnsito da rota do Mediterneo Oriental. O
acordo celebrado em março de 2016 tinha como objetivo reduzir a intensi-
dade do uxo nesta rota através das seguintes medidas: por cada sírio que
chegasse ilegalmente a Grécia seria devolvido à Turquia, outro sírio vindo
diretamente da Turquia seria reinstalado num Estado-membro, com base
numa regra de um-por-um. Com esse acordo, a Turquia se tornou um
elemento-chave na gestão da crise migratória europeia, comprometendo-
-se a evitar a abertura de novas rotas de imigração enquanto que a UE se
comprometeu a retomar as negociações para adesão deste país no bloco.
Contudo, este acordo não fez mais do que deslocar o problema para um
país vizinho, através da externalização da fronteira europeia, deixando a
questão nas mãos da Turquia (FERREIRA, 2016, p. 94-95).
A inuência do poder alemão na UE é tão grande que ca evidente
até mesmo nos discursos desses dois atores perante o Conselho de Segu-
rança em que se notam as opiniões semelhantes e associadas. Em uma reu-
nião de 2015, os dois se mostram bem críticos ao posicionamento do CS em
relação às atrocidades humanitárias que estavam acontecendo, armando
que embora o papel desse órgão seja especicamente a manutenção da paz
e da segurança internacionais, também tinha a responsabilidade em rela-
ção à proteção dos direitos humanos, não podendo car omisso aos casos
que ocorriam no mundo. O representante alemão foi até mais duro res-
saltando que nesse contexto “[...] the way forward could not be to pursue
national interests only, or simply to ‘close our eyes’” (UN, 2015b).
O posicionamento analítico da UE referente ao Conselho não se
conteve somente na omissão deste em relação às atrocidades aos direitos
humanos, mas também no processo da paz que defendiam, armando
que a prioridade europeia era sempre salvar vidas, mas que sozinha não
iria conseguir solucionar essa crise, havendo a necessidade de se ter um
conjunto de questões” que abordassem além dos países de origem e dos
países de tnsito e acolhimento, para que assim se tivesse uma redução
no uxo dos refugiados na região (UN, 2015d). Nesse mesmo sentido, a
Alemanha armou
25
que era uma obviedade o pensamento do CS de que
a segurança e o desenvolvimento estivessem interligados e que se estives-
sem realmente preocupados em garantir a paz também teriam interesse
24. Cf importantes considerações acerca
do Acordo Turquia-União Europeia em
LEHNER, 2018.
25. Cf o. posicionamento alemão no
documento UNITED NATIONS 7561st
meeting, online.
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Cláudia Alvarenga Marconi e Anna Paula Ramos Os desaos humanitários e novas prácas de great power management:
uma comparação entre as posições da França e da Alemanha frente à “crise de refugiados”
em resolver a crise dos refugiados, que tinha um caráter de desao global
e não somente europeu.
Se Alemanha continuar empenhada com a sua promessa de liqui-
dar a crise migratória na Europa e obtiver sucesso, Merkel terá a imagem
da grande benfeitora, mas se falhar nessa miso terá que arcar com as
consequências além já ter que enfrentar os danos colaterais com a depen-
dência da UE em relação à Turquia e com as críticas de que a Alemanha
fez uso das instituições europeias para perseguir seus interesses nacionais.
Considerações Finais
O intuito do presente artigo foi resgatar dois conceitos chave da
Escola Inglesa - “instituições primárias” e “great power management-, que,
apesar de terem sido formulados na fase clássica da Escola, apresentam
características notórias que se relacionam com o mundo contemporâneo,
como no caso analisado - a crise de refugiados atual- em que foi possível
fazer paralelos entre as posições adotadas por França e Alemanha com
os atributos denidos por Bull em sua formulação de grandes potências,
além de ponderar quanto à criação de uma nova instituição primária que
ressignica o GPM - o “novo humanitarismo” - e analisar os efeitos da
instituição secundária, Conselho de Segurança, nas decisões desses dois
Estados nessa mesma matéria.
O entendimento de que se pode haver a criação de uma nova insti-
tuição primária e das diferentes percepções dos Estados em relação tanto
às primárias já existentes quanto às secundárias em que atuam, pautou-
-se na formulação de Barry Buzan de que é necessária maior clareza na
denição do que são essas instituões e quais características são indis-
sociáveis delas. Justamente por não se tratar de um conceito rígido, mas
sim de um construto teórico com relativa exibilidade, percebemos es-
paço suciente para, a partir de outros movimentos da sociedade inter-
nacional, sustentar o argumento de que as práticas nomeadas de “novo
humanitarismo” poderiam lançá-lo a um candidato a instituição pri-
ria, ainda que não emancipada do GPM. Ademais, dando eco ao fato de
que as instituições secundárias não possuem um efeito homogeneizador
sobre todos os Estados membros ou mesmo não recebem imporncia
igual por parte desses em suas decisões, buscou-se caracterizar tais osci-
lações como interações especícas entre as instituições secundárias elas
mesmas e as pririas a partir das políticas de atores estatais chave na
matéria em questão.
O posicionamento francês perante essa temática migratória atual
se mostrou ainda vinculado com a perspectiva clássica da ajuda humani-
ria, com o foco em minimizar os efeitos da crise em seu Estado a partir
da justicativa central de manter em primeiro lugar a sua segurança in-
terna. Em outras palavras, a França parece utilizar o discurso do “novo
humanitarismo” como um instrumento quando lhe convém para manter
o seu GPM efetivo, mas, na prática, a sua atuação no que concerne a pres-
tar assistência às vítimas que chegam a Europa é repulsiva e baseada num
discurso xenofóbico por parte de sua população e de medidas que restrin-
gem o acesso dos refugiados ao país por parte do governo.
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 8, n. 1, (abr. 2020), p. 107 - 124
A França reforça, assim, a sua gestão com a posição de membro
permanente do CSONU, o que permite se manter como uma das grandes
potências sem ter a necessidade de mudar as políticas para atender a cer-
tas demandas da sociedade internacional. Porém, essa relação reete uma
dependência” dos Estados desse órgão, pois a França parece ter uma res-
trição em como moldar o seu GPM por ter que atender as diretrizes do
Conselho. O caso da crise de refúgio é um exemplo disso: o órgão pouco
se manifestou ou efetuou medidas para ajudar a controlar a matéria, dei-
xando o grosso da questão para a competência da UE e do ACNUR. Com
isso, a França viu a sua gama de recursos minimizados para atuar nessa
questão, e como o fato de ser um membro do Conselho de Segurança
já reforça o seu gerenciamento, não se empenhou ou se envolveu forte-
mente em solucionar esse dilema, tendo o “novo humanitarismo” apenas
como elemento retórico, da mesma maneira que o CS o fez.
A maneira como a Alemanha maneja a instituição primária great
power management difere bastante da francesa. Primeiramente, não com-
por sequer o quadro dos membros não permanentes do CSONU àquela
altura, faz com que esse Estado não esteja ancorado na postura do Con-
selho sobre os fenômenos da sociedade internacional, permitindo que te-
nha mais autonomia em suas decisões. Contudo, a mesma relação que se
estabeleceu para a França com seu GPM sustentado pelo órgão da ONU,
estabelece-se para Alemanha utilizando a União Europeia com instituição
secundária para gerenciar a matéria, ainda que em direções contrárias.
Enquanto o Conselho de Segurança é visto como o grande arquiteto de
como os seus membros irão responder a algumas das demandas interna-
cionais, ou seja, é uma instituição secundária que direciona uma institui-
ção priria, a União Europeia é a peça-chave do great power management
regional da Alemanha, fornecendo a esse Estado o poder de utilizá-la de
distintas formas, inclusive associadas a instituições primárias emergen-
tes, para controlar a sociedade internacional europeia e se mostrar como
uma grande potência mundial. Assim, coloca em xeque até que ponto o
fato de ser parte do CS impõe limites ao exercício de um GPM efetivo.
A Alemanha possui maior exibilidade em sua conduta internacio-
nal tanto que na questão migratória se mostrou como o grande player a
criar e estabelecer medidas que expressavam alguma intenção de alívio
da crise. O discurso do “novo humanitarismo” deixou, nesse caso, de ser
apenas uma retórica instrumental como foi para o Conselho e passou a ser
um comportamento praticado tanto pela Alemanha quanto pela União
Europeia, como por exemplo, no estabelecimento do acordo UE-Turquia.
Com maior enraizamento, o “novo humanitarismo” se mostrou
como uma prática social a orientar os Estados nas questões relativas à paz
e ao conito, surgindo como candidata a nova instituição primária ligada
diretamente com outra priria clássica: o great power management. Em
outras palavras, não houve um esvaziamento do GPM como instituição
primária para Alemanha com a inclusão da prática do “novo humanita-
rismo” e sim a reedição de certos signicados dessa instituição primária
tão tradicional.
Pela pesquisa empreendida, enquanto a França lida com a inuên-
cia do Conselho de Segurança em suas decisões, ancorando-se na clássica
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Cláudia Alvarenga Marconi e Anna Paula Ramos Os desaos humanitários e novas prácas de great power management:
uma comparação entre as posições da França e da Alemanha frente à “crise de refugiados”
perspectiva dessa administração, a Alemanha para se impor cada vez
mais como uma grande potência da Europa, traz novos comportamentos
para sustentar o seu GPM, e com isso ambas se utilizam das inter-relações
entre as instituições primárias e secundárias em prol da manutenção de
seu poder na sociedade internacional.
A ambição do desenho original do artigo era analisar e comparar
a manutenção do great power management francês e alemão frente à crise
dos refugiados, observando tão somente a inuência do Conselho de Se-
gurança nessa dimica. Porém, no desenvolver da pesquisa essa preten-
são foi calibrada, pois a comparação entre esses dois Estados é altamente
complexa e não se esgota na questão da política migratória, fazendo-se
necessário explorar, por exemplo, a inuência da União Europeia sobre o
GPM desses atores estatais.
Ademais, para efeitos de uma agenda de pesquisa sequencial, cre-
mos que explorar mais densamente a literatura sobre a interação entre
variadas institucionalidades secundárias e primárias torna-se essencial
para compreender as respostas dos Estados parte da sociedade interna-
cional frente às questões contemporâneas que exigem a preservação do
GPM: em alguns casos preservando seu sentido original e em outros
atualizando-o em novas dirões.
A comparação aqui empreendida permitiu, assim, observar duas
grandes potências europeias e globais ativando signicados diferentes das
duas instituições primárias aqui exploradas: o GPM e o novo humanita-
rismo. A comparação também permitiu observar o quanto dessa (não)
aproximação se relaciona com a posição da França de membro perma-
nente do CSONU enquanto a Alemanha recorre apenas a uma institucio-
nalidade secundária fortemente regional, a da UE.
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