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Mateus Webber Matos, Eduardo Ernesto Filippi “Pátria e Liberdade”:
projeto políco de Simón Bolívar e disputas de poder no âmbito das independências hispano-americanas do século XIX
“Pátria e Liberdade”: projeto político de
Simón Bolívar e disputas de poder no
âmbito das independências hispano-
americanas do século XIX
“Pátria e Liberdade”: Simón Bolívar’s political project
and power disputes within the Hispanic-American
independences of the 19th century
“Patria y Libertad”: el proyecto político de Simón
Bolívar y las disputas de poder en las independencias
hispanoamericanas del siglo XIX
Mateus Webber Matos 1
Eduardo Ernesto Filippi 2
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2023v11n1p7-24.
Recebido em: 1º de fevereiro de 2022
Aprovado em: 03 de julho de 2023
R
No começo do século XIX, revoluções por independência irromperam em
muitas colônias espanholas nas Américas. Um dos líderes e maiores expoentes
desse período foi Simón Bolívar, militar venezuelano que idealizava um projeto
político particular para a região. Dessa maneira, a pergunta que este trabalho
pretende responder é: em que medida as disputas de poder dentro das elites
locais interferiram no projeto político de Simón Bolívar durante as independên-
cias hispano-americanas do século XIX? O objetivo geral é analisar o projeto
político de Simón Bolívar em meio à expulsão dos espanhóis das Américas e às
disputas por poder subsequentes. Trata-se de pesquisa com abordagem quali-
tativa. Quanto aos procedimentos, caracteriza-se como pesquisa documental e
bibliográca. Para isso, foram acessadas fontes em espanhol, inglês e português.
Os resultados indicam que, no decurso dos conitos, prevaleceram forças centrí-
fugas contrárias ao idealismo de Bolívar, cabendo às elites locais o emprego do
autoritarismo antes desempenhado pelos espanhóis.
Palavras-chave: Simón Bolívar; Independências; Projeto Político; Poder.
A
In the early 19th century, revolutions for independence broke out in many Spanish
colonies in the Americas. One of the leaders and greatest exponents of this period was
Simón Bolívar, a Venezuelan military ocer who conceived a particular political project
1. Doutorando e Mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Estudos Estraté-
gicos Internacionais (PPGEEI/UFRGS).
Especialista em Estratégia e Relações
Internacionais Contemporâneas (UFRGS,
2019). Bacharel em Relações Interna-
cionais (UNIVALI, 2017). Graduando em
História pela UFRGS (2023- ). E-mail:
mateus.webber@hotmail.com
2. Professor Titular - UFRGS/DERI
(Departamento de Economia e Relações
Internacionais). Doutor em Economia
Política [Université de Versailles - Sain-
t-Quentin-en-Yvelines, França, 2004],
Mestre em Economia Rural [UFRGS,
1997], Bacharel em Ciências Econômi-
cas [UFRGS, 1993]. Professor perma-
nente nos Programas de Pós-Graduação
em Estudos Estratégicos Internacionais
[PPGEEI] e em Desenvolvimento
Rural [PGDR]. Coordenador do PPGEEI
[2023/2024]. E-mail: edu_292000@
yahoo.com.br
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for the region. Thus, the question this paper seeks to answer is: to what extent did power
disputes within local elites interfere with Simón Bolívar’s political project during the
Spanish American independences of the nineteenth century? The general objective is to
analyse Simón Bolívar’s political project amidst the expulsion of the Spanish from the
Americas and the subsequent power disputes. This is research with a qualitative approa-
ch. As to the procedures, it is characterized as documentary and bibliographical research.
For this, sources in Spanish, English and Portuguese were accessed. The results indicate
that, during the conicts, centrifugal forces contrary to Bolívar’s idealism prevailed,
and it was up to local elites to employ the authoritarianism previously performed by the
Spaniards.
Key words: Simón Bolívar; Independencies; Political Project; Power.
R
A principios del siglo XIX, estallaron revoluciones independentistas en muchas colonias
españolas de América. Uno de los líderes y máximos exponentes de este periodo fue
Simón Bolívar, un militar venezolano que concibió un particular proyecto político para
la región. Así, la pregunta que este trabajo pretende responder es: ¿hasta qué punto las
disputas de poder en el seno de las élites locales interrieron en el proyecto político de
Simón Bolívar durante las independencias hispanoamericanas del siglo XIX? El objetivo
general es analizar el proyecto político de Simón Bolívar en medio de la expulsión de los
españoles de América y las posteriores disputas por el poder. Se trata de una investiga-
ción con un enfoque cualitativo. En cuanto a los procedimientos, se caracteriza por ser
una investigación documental y bibliográca. Para ello, se accedió a fuentes en español,
inglés y portugués. Los resultados indican que, en el transcurso de los conictos, prevale-
cieron las fuerzas centrífugas contrarias al idealismo de Bolívar, y a las élites locales les
correspondió emplear el autoritarismo que antes ejercían los españoles.
Palabras clave: Simón Bolívar; Independencias; Proyecto político; Poder.
INTRODUÇÃO
A porção sul do continente americano enfrentava, no início dos
anos 1800, conitos sociais que eram fruto, em grande medida, da colo-
nização espanhola. A exploração econômica do governo espanhol através
da cobrança de impostos e a estraticação social representavam alguns
dos obstáculos enfrentados pelos hispano-americanos. Ao menos um dos
interesses das oligarquias da região coincidia com os de Simón Bolívar, na
medida que vislumbravam uma América livre da dominação espanhola,
capaz de produzir e comercializar suas commodities de maneira autôno-
ma (Cardoso; Brignoli, 1983). As semelhanças parecem limitadas, uma
vez que o projeto político e a ideologia de Bolívar eram muito mais abran-
gentes e inclusivos do que os idealizados pelas elites locais.
Tendo em vista o exposto acima, pergunta-se: em que medida as
disputas de poder dentro das elites locais interferiram no projeto políti-
co de Simón Bolívar durante as independências hispano-americanas do
século XIX? Dessa maneira, o objetivo geral desse trabalho é analisar o
projeto político de Simón Bolívar em meio à expulsão dos espanis das
Américas e as disputas por poder subsequentes. Em seguida, os objetivos
especícos são segmentados em: 1) Contextualizar o projeto político de
Simón Bolívar no cenário das independências hispano-americanas no sé-
culo XIX; 2) Relacionar esse projeto e a ideologia de Bolívar às disputas
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Mateus Webber Matos, Eduardo Ernesto Filippi “Pátria e Liberdade”:
projeto políco de Simón Bolívar e disputas de poder no âmbito das independências hispano-americanas do século XIX
por poder durante as revoluções independentistas; 3) Compreender os re-
sultados (políticos, econômicos e sociais) dessa relação para o desenrolar
e encerramento dos conitos.
Trata-se de pesquisa com abordagem qualitativa. Quanto aos pro-
cedimentos, caracteriza-se como pesquisa documental e bibliogca.
Procedimentos de análise dos dados: em relação aos documentos, como
procedimento, houve a organização das informações a priori (conforme
método dedutivo), posterior análise e elaboração de sínteses. Essas infor-
mações, depois de organizadas, foram confrontadas com a literatura. No
que diz respeito ao referencial teórico, este trabalho foi baseado em algu-
mas obras de autores e autoras seminais das seguintes áreas: Antropologia
(Ribeiro, 2017), História (Stein, S.; Stein, B. 1977; Donghi, 1980; Mora,
2008) e Economia Política (Marx, 2006). Para além disso, será utilizado o
conceito de “luta de classes” apresentada por Marx e Engels (2005) para
melhor compreensão das disputas que permeavam as sociedades no con-
texto das independências.
Esse trabalho se justica na medida que procura entender a ideolo-
gia de Sin Bolívar e seu projeto dentro de um ambiente de disputa por
poder que, em última instância, moldaram, mais tarde, a formação das
novas repúblicas e a perpetuação de desigualdades políticas e econômicas
na América Latina. Por m, os resultados deste estudo indicam que pre-
valeceram forças centrífugas contrias ao idealismo de Bolívar, cabendo
às elites locais o emprego do autoritarismo antes desempenhado pelos
espanhóis. O anseio de Bolívar por uma integração regional foi suplanta-
do por interesses fragmentários que acabaram por afastar (mais do que
aproximar) as novas repúblicas sul-americanas.
O PROJETO POLÍTICO E A IDEOLOGIA DE SÍMON BOLÍVAR
EM MEIO AOS PRIMEIROS FOCOS REVOLUCIONÁRIOS NA
AMÉRICA ESPANHOLA
¡Juro delante de usted; juro por el Dios de mis padres; juro por ellos; juro por
mi honor, y juro por mi Patria, que no daré descanso a mi brazo, ni reposo a mi
alma, hasta que haya roto las cadenas que nos oprimen por voluntad del poder
español! (BOLÍVAR, 2009, p. 4).
As palavras, com características messiânicas, foram proferidas por
Simón Bolívar em 1805, tendo a cidade de Roma como cenário e seu mes-
tre Simón Rodríguez como ouvinte. Abalado por sua prematura viuvez e
descrente quanto ao seu futuro, Bolívar enxergou na liberdade dos povos
hispano-americanos uma razão para voltar à Venezuela – sua terra natal
– e lutar pela independência da América do Sul frente à dominação espa-
nhola. O momento histórico se mostrava propício. Em paralelo, Bolívar
aproveitou sua aventura europeia para aperfeiçoar seus conhecimentos
políticos a partir do contato com leituras de pensadores clássicos como
Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Montesquieu e Voltaire (Lynch,
2006).
Mais a oeste, os Estados Unidos haviam iniciado a ruptura das anti-
gas colônias com a Inglaterra em 1776. Alguns anos mais tarde, em 1791,
eclodiu a Revolução Haitiana que logrou a emancipação denitiva da
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França no começo do século XIX. Além disso, Napoleão Bonaparte ocu-
pava a Espanha em 1808, evento que enfraqueceu a capacidade espanhola
de manter suas possessões ultramarinas. Com maior ou menor grau de
inuência, tais disrupções apresentaram um horizonte favorável às inde-
pendências idealizadas por Bolívar. O alvorecer do século XIX foi carac-
terizado como o começo da Era Moderna na América do Sul, período de
convulsões sociais que teria seu m somente com a eclosão da Primeira
Guerra Mundial (1914-1918) (Brignoli, 2018).
O projeto político de Bolívar tinha muito de suas leituras e expe-
riências europeias sem, no entanto, emular quaisquer ideais passados.
Condições hisricas diferentes, interesses sociais conitantes, estruturas
econômicas defasadas e, principalmente, anseios libertários mais amplos
eram características que tornavam a revolução de Bolívar ímpar. Bolívar
era um revolucionário sem amarras, sejam elas liberais, conservadoras,
étnicas, religiosas ou culturais (Collier, 1983; Zeuske, 2018). Esses pro-
cessos emancipatórios tiveram como estopim não somente o desejo pela
soberania continental, mas também o iminente perecimento do sistema
colonial e as contradições sociais internas às colônias (Mora, 2008).
O domínio do Antigo Regime sobre os territórios hispano-america-
nos estava ruindo. As autonomias política e econômica, sobretudo, eram
as reivindicações mais prementes. Conceitos como hierarquia, submis-
são e costumes estavam sendo sobrepostos pelas lógicas iluministas de
virtude e liberdade individual (Lynch, 2006). Em 1815, o próprio Bolívar
(2009, p. 75) – em sua “Carta da Jamaica” – relatou o tratamento con-
cedido ao seu povo pelos colonizadores: “Os americanos, neste sistema
espanhol que está em vigor, [...] não ocupam outro lugar na sociedade
que o de servos próprios para o trabalho, e quando muito, o de simples
consumidores”3.
Seus planos para uma América pós-independência iam além da li-
teratura europeia que Bolívar consumia. Em outras palavras, os clássicos
não davam conta de sua amplitude revolucionária. Seja no campo ideoló-
gico, social, político ou econômico as transformações exigiam caminhos
e destinos distintos daqueles tomados por outros líderes revolucioná-
rios. É certo que a independência dos Estados Unidos (1776), a Revolução
Francesa (1789) e a Revolução Haitiana (1791) serviram de inspiração para
Bolívar. No entanto, é necessária cautela na alise das inuências de
Bolívar, na medida que
A precisão no rastreamento de inuências ideológicas e causalidade
intelectual é notoriamente enganosa, não menos em um líder como
Bolívar, cujas ideias eram meios para ação e cujas ações eram baseadas
em muitos imperativos: políticos, militares e nanceiros, bem como
intelectuais. Insistir demais nas origens intelectuais da revolução de
Bolívar e enfatizar demais a inuência do passado é obscurecer sua ver-
dadeira originalidade. Bolívar não era escravo dos exemplos franceses ou
norte-americanos. Sua própria revolução foi única e, ao desenvolver suas
ideias e políticas, ele não seguiu os modelos do mundo ocidental, mas as
necessidades de sua própria América4 (Lynch, 2006, p. 29).
A despeito das lacunas que ainda pairam sobre alguns posiciona-
mentos políticos de Bolívar, parece razvel armar que sua identica-
ção era mais com um possível bloco de territórios hispano-americanos do
3. Traduzido do original pelo autor: “Los
americanos, en el sistema español que
está en vigor, [...] no ocupan otro lugar
en la sociedad que el de siervos propios
para el trabajo, y cuando más, el de
simples consumidores”.
4. Traduzido do original: “Precision
in tracing ideological influences and
intellectual causation is notoriously
elusive, not least in a leader like Bolívar,
whose ideas were a means to action
and whose actions were based on
many imperatives: political, military
and financial, as well as intellectual.
To insist too much on the intellectual
origins of Bolívar’s revolution and to
overemphasize the influence of the past
is to obscure his real originality. Bolívar
was not a slave to French or North
American examples. His own revolution
was unique, and in developing his ideas
and policies he followed not the models
of the Western world but the needs of
his own America”.
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Mateus Webber Matos, Eduardo Ernesto Filippi “Pátria e Liberdade”:
projeto políco de Simón Bolívar e disputas de poder no âmbito das independências hispano-americanas do século XIX
que com qualquer bandeira nacionalista. Ainda em sua carta redigida da
Jamaica, Bolívar refutou a viabilidade dos regimes federalista, monárqui-
co e democrático por acreditar que a América ainda não estaria pronta
para tais modelos. Bolívar (2009, p. 81) tentou ainda uma previsão: “Vou
arriscar o resultado de minhas reexões sobre a sorte futura da América:
não a melhor, mas a que seja a mais acessível5 . Os padrões políticos de
Bolívar, portanto, podem ser considerados uídos. Isso signica dizer que
o local no qual ele se encontrava, as circunstâncias nas quais ele se colo-
cava e as condições (políticas, econômicas e sociais) apresentadas eram
alguns dos fundamentos de seus ideais (Lynch, 2006).
O conceito de “centralismo” foi, gradativamente, ganhando espa-
ço no ideário de Bolívar (Castillo, 2009; Zeuske, 2018). Ao contrário de
Napoleão, Bolívar não buscava construir um império ou uma hegemonia
nas Américas, senão formar uma grande nação autônoma, apta a recha-
çar ameaças externas e coordenar suas dimicas domésticas. Pode-se
acreditar, desse modo, que “(...) seus ideais iam muito além da esfera do
nacionalismo puro e simples, e bem na esfera do que veio a ser denomina-
do ‘supranacionalismo’”6 (Collier, 1983, p. 48). Para isso, Bolívar contava
com seu carisma e com o tom personalista aos quais foi recorrendo.
Bolívar considerou a viabilidade de mesclar o centralismo, o per-
sonalismo e a aristocracia com conceitos e estruturas republicanas. Sua
tarefa inicial – lograr a independência – era considerada complexa. Os
passos seguintes, entretanto, seriam ainda mais complicados. Engendrar
a união de territórios que – apesar de partilharem heranças coloniais –
possuíam poucos vínculos econômicos e políticos requeria uma postura
ortodoxa. Bolívar entendia isso e sonhava com esta forma de governo que
(...) estava destinada a ser autoritária; a autoridade ali dominante se dis-
tinguiria do puro arbítrio porque estaria guiada pela virtude”7 (Donghi,
1980, p. 118).
Em realidade, havia duas forças em disputa. De um lado estavam
as elites hispano-americanas que temiam o enfraquecimento de suas po-
sições de privilégio. Em sintonia com essas classes, estavam os membros
da Igreja Católica que instigavam a manutenção dos valores tradicionais
da sociedade, sua estraticação e a autoridade como meio de controle
social (Lynch, 2006). Por outro lado, Bolívar pregava a liberdade e a igual-
dade em seus discursos. Para além de políticas liberais ou conservadoras,
Bolívar queria libertar a América e construir uma forma particular de
governo.
Com o objetivo de aprofundar o debate sobre esses conitos, é in-
teressante notar como Marx e Engels (2005) armam que a transição do
feudalismo para a sociedade moderna não eliminou os “antagonismos
de classe”. Ainda que a América Latina não tenha vivenciado o feuda-
lismo de moldes europeus e que a teoria marxista tenha surgido para
compreender uma realidade especíca e diferente das que existiam nas
colônias hispano-americana, é importante notar que as relações de classe
aqui seguiam tendências semelhantes às narradas pelos dois autores. A
condão sine qua non para a manutenção do poder das elites econômicas e
políticas é a concentração cada vez maior de riqueza (Marx; Engels, 2005)
e a negação da mais valia às massas.
5. Traduzido do original: “Voy a arries-
gar el resultado de mis cavilaciones
sobre la suerte futura de la América: no
la mejor sino la que sea más asequible”.
6. Traduzido do original: “(…) his ideals
went well beyond the sphere of nationa-
lism pure and simple, and well into the
sphere of what has come to be termed
“supranationalism’””.
7. Traduzido do original: “(…) estaba
destinada a ser autoritaria; la autoridad
allí dominante se distinguiría del puro
arbitrio porque estaría guiada por la
virtud”.
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Ao fazer uma interpretação do pensamento de Montesquieu,
Bolívar acreditava em instituições que fossem alicerçadas nos valores,
costumes e identidades dos povos. Seriam ainda locais de expressão das
demandas sociais e dentro dos quais a política cotidiana se desenrolaria
(Lynch, 2006). Ainda que com traços paternalistas8 , Bolívar (2009, p. 80)
armava que esses espaços teriam o potencial de curar “(...) as chagas e as
feridas do despotismo e da guerra”9 .
Em consonância com a lógica de disputas de classes, Bolívar tinha
de lidar com a dispersão geográca da população venezuelana, caracte-
rística comum da era colonial. Não obstante a ascensão de Caracas como
um dos focos do império espanhol nas Américas, as comunicações entre
o campo e as cidades eram precárias (Morse, 1990). Essas duas questões –
conitos de classe e dispersão geográca – se inter-relacionavam. Caracas
abrigava elites que, na tentativa de se distanciarem ao máximo das outras
parcelas da sociedade, se comportavam de maneira a reforçar a posição
de superioridade.
Essa conduta se tornava mais perigosa à medida que a população
aumentava. De acordo com Iturrieta (2018), a Caracas dos anos iniciais do
século XIX abrigava cerca de 700 mil habitantes, dos quais 500 mil eram,
majoritariamente, escravos, indígenas e pardos. O problema residia no
fato de as identidades entre esses grupos serem frágeis, muito em virtude
do projeto dos colonizadores em demover as expressões culturais dos po-
vos originais (Ríos, 2018). A estratégia de “dividir para conquistar”, dessa
maneira, não foi utilizada pelos espanhóis somente em âmbito regional
entre as várias colônias, como também nas esferas internas das socieda-
des, estabelecendo preconceitos e exclusão entre as diferentes classes.
OS ANOS FINAIS DO IMPÉRIO COLONIAL ESPANHOL
NA AMÉRICA DO SUL
O objeto que permeava os debates e o clima pré-independência era,
basicamente, um: o poder. No decorrer da década de 1810, a questão não
girava tanto em torno da viabilidade da revolução, senão das dimicas
de poder que seriam originadas após a expulsão dos espanhóis. Essa era
uma das razões pelas quais Bolívar, em princípio, idealizou um governo
centralista que, desde cima, produziria um sentimento nacional (Zeuske,
2018). As camadas populares, por sua vez, também enxergavam essas con-
vulsões sociais como possibilidades de melhoria de vida. O sistema colo-
nial estava prestes a desmoronar. A situação da região no período ime-
diatamente às independências era tal que “(...) tínhamos lósofos como
chefes, lantropia como legislação, dialética como tática, e sostas como
soldados. [...] A ordem social se sentiu extremamente comovida, e logo o
Estado foi se encaminhando para uma dissolução universal, que, rapida-
mente, foi realizada”10 (Bolívar, 2009, p. 11).
Percebe-se, desse modo, que o objetivo era substituir o poder colo-
nial pelos poderes aristocráticos locais. Os primeiros passos revolucioná-
rios foram dados pelos criollos, haja vista suas queixas recorrentes quanto
às barreiras impostas pelo governo espanhol para a venda e o escoamento
de suas produções (Albert, 1983; Acosta, 2006). De fato, percebe-se que
8. O paternalismo pode ser entendido
como uma “política social orientada ao
bem-estar dos cidadãos e do povo, mas
que exclui a sua direta participação:
é uma política autoritária e benévola,
uma atividade assistencial em favor do
povo, exercida desde o alto. [...] Para
expressar tal política, nos referimos
então, usando de uma analogia, à ati-
tude benevolente do pai para com seus
filhos “menores”” (Bobbio; Matteucci;
Pasquino 1998, p. 908).
9. Traduzido do original: “(...) las
llagas y las heridas del despotismo y la
guerra”.
10. Traduzido do original: “(...) tuvimos
filósofos por jefes, filantropía por
legislación, dialéctica por táctica, y
sofistas por soldados. (...) El orden social
se sintió extremadamente conmovido,
y desde luego corrió el estado a pasos
agigantados a una disolución universal,
que bien pronto se vio realizada”.
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Mateus Webber Matos, Eduardo Ernesto Filippi “Pátria e Liberdade”:
projeto políco de Simón Bolívar e disputas de poder no âmbito das independências hispano-americanas do século XIX
(...) a maioria dos movimentos independentistas começaram como a
rebelião de uma minoria contra uma minoria ainda menor, de criollos
(espanis nascidos na América) contra peninsulares (espanhóis nascidos
na Espanha)”11 (Lynch, 2001, p. 118). Assim, não surpreende que Bolívar
tenha sido uma gura relevante na organização dessas insurreições. Ao
lado dos latifundrios estavam intelectuais hispano-americanos, encar-
regados de elaborar as bases legais e políticas das futuras repúblicas.
De uma maneira geral, os estratos da população mais explorados
no transcorrer do antigo regime se mostraram reticentes em apoiar a luta
independentista em um primeiro momento (Acosta, 2006; Mora, 2008).
Indígenas, escravos e pequenos comerciantes temiam não tanto pela luta
libertária em si, senão pela possível manutenção – ou piora – de suas con-
dições econômicas e políticas com uma eventual administração criolla.
Sobretudo os escravos ingressaram no exército patriota dispostos a ajudar
na derrocada do domínio europeu. As burguesias urbanas e portrias
buscavam expandir seus mercados consumidores ultramarinos, notada-
mente com a Inglaterra industrializada (Kohan, 2014). Já a Igreja Católica,
como mencionado, matinha um posicionamento alinhado aos interesses
da coroa espanhola, não obstante diversos padres tenham apoiado a causa
revolucionária (Mora, 2008).
Em 1808, quando da ocupação da Espanha por Napoleão, tanto
os espanhóis quanto os moradores de suas colônias – em um primeiro
momento – se opuseram à dominação francesa e iniciaram planejamen-
tos para restaurar o status quo ante (Rodríguez, 1998). Na Europa, havia
um descontentamento com os desmandos de José Bonaparte, irmão de
Napoleão e escolhido para governar a Espanha. A reivindicação popular
era o retorno do rei Fernando VII e a saída das tropas francesas do terri-
tório ibérico. Os americanos, por seu turno, logo após sinalizarem posi-
tivamente a um retorno da monarquia espanhola, viram esse momento
como favorável ao início de um processo emancipatório.
Em algumas regiões hispano-americanas foram criados conselhos,
compostos por criollos, que assumiriam o controle político enquanto a
estabilidade não fosse restaurada na Europa. Em Quito, por exemplo,
malgrado o insucesso de uma primeira iniciativa, em 10 de agosto de
1809 foi estabelecido um “Conselho Soberano” presidido pelo Marquês de
Selva Alegre e que possuía intenções separatistas mais profundas (Mora,
2008). Após a libertação e o posterior regresso de Fernando VII ao tro-
no espanhol em 1814, houve acentuação das insatisfações sociais nas co-
lônias, o que levou à radicalização dos movimentos de independência a
partir de então.
Mesmo antes de se tornarem independentes, as diversas cidades –
que por m se reuniriam sob o nascente Estado do Equador – não parti-
lhavam conceitos culturais, tampouco tinham grandes anidades comer-
ciais e produtivas. Quando, em 1809, a elite quiteña (residentes em Quito)
se insurgiu, o posicionamento tanto das províncias da porção amazônica
quanto da costeira foi de oposição e manutenção dos laços coloniais com
a Espanha (Bushnell, 1985; Moreno, 1998; Mora, 2002). Essas divergên-
cias, futuramente, reetiriam em uma instabilidade social quando da for-
mação do Estado do Equador em 1830.
11. Traduzido do original: “(...) la
mayoría de los movimientos indepen-
dentistas comezaron como la rebelión
de una minoría contra una minoría aun
más pequeña, de criollos (españoles
nacidos en América) contra peninsulares
(españoles nacidos en España)”.
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 11, n. 1, (fev. 2023), p. 7-24
A busca por unidade sociopolítica – particularmente entre as maio-
res cidades equatorianas: Quito, Guayaquil e Cuenca – se mostrou intrin-
cada e incerta desde o início (Andrien, 1995; Mora, 2002). A animosidade,
especialmente entre as duas primeiras, era antiga. Quito fora o centro
político da audiência12 sob o governo espanhol, enquanto Guayaquil –
por ser uma cidade portuária – cumpria a função de escoar a produção
interna. Cuenca se encontrava distante geogracamente e, desse modo,
exercia funções periféricas nesse contexto. Essas diferenças foram apro-
fundadas no decorrer dos conitos, intensicando as hostilidades entre as
três cidades.
Nas questões produtivas também não foi diferente. Não houve al-
terações substantivas no curto e médio prazo (Deas, 1985; Mora, 2002;
Acosta, 2006). A diversicação de culturas fez com que, no decorrer dos
anos 1800, Guayaquil assumisse participação relevante na economia re-
gional, tanto por suas plantações de cacau quanto pela presença do porto.
Segundo Deas (1985), mesmo no período posterior à emancipação, a ex-
portação de cacau de Guayaquil continuou representando de 50% a 65%
do total de exportações. O incremento demogco foi resultado, assim,
do crescimento natural mais rápido e da migração advinda da serra”13
(Deas, 1985, p. 513).
Já Quito, possuía um histórico na confecção de têxteis de lã e, em
menor medida, no forjamento de ferrarias e na mineração (Cardoso;
Brignoli, 1983). Ao longo da década de 1810, a serra manteve certo po-
der político e administrativo, mas viu sua representatividade econô-
mica ser suplantada, em especial, por duas razões: o fortalecimento
do mercado exportador de cacau da costa, impactado pelas medidas
liberais do nal do século XVIII; e pelo distanciamento da agora au-
tônoma porção sul da Colômbia, principal parceira dos comerciantes
quiteños (Moreno, 1998). Não obstante a crise econômica local, isso
não signicou que Quito tivesse se tornado inexpressiva do ponto de
vista comercial, senão que voltara seus produtos para o abastecimento
do mercado doméstico.
No que se refere aos movimentos revolucionários hispano-ameri-
canos, foram ts os focos iniciais: Caracas, Buenos Aires e Cidade do
México. A primeira, especialmente, se tornou um dos núcleos, visto que
experimentou um crescente apreço por parte da coroa à época colonial,
dados seu clima propício à agricultura e sua posição estratégica privilegia-
da (Morse, 1990). Essa estima se transformou na constituição de Caracas
como um dos centros políticos e burocráticos das colônias hispano-ame-
ricanas. Na segunda metade da década de 1800, todavia, os interesses de
colônias e metrópole chegaram a um impasse denitivo. Para alguns
autores, esse curto espaço temporal foi o mais importante para a Ibero
América desde sua conquista (Stein, S.; Stein, B. 1977).
Para além da ocupação napoleônica à Espanha, o ano de 1808 é
paradigmático também para as economias e trocas comerciais das colô-
nias hispânicas na América. Com o bloqueio naval imposto por Napoleão,
à Inglaterra coube a tarefa de procurar novos mercados fornecedores e
consumidores. As então colônias hispano-americanas foram alguns dos
alvos que, há algum tempo, já comercializavam com os ingleses, mesmo
12. As Reais Audiências foram institui-
ções criadas pelos espanhóis no século
XIV e relacionadas ao cumprimento da
Justiça em seus territórios europeus
e em suas possessões ultramarinas.
Conforme Rodríguez (1998, p. 7) “as
unidades territoriais mais duradouras
foram aquelas áreas administradas
pelas audiências (altas cortes),
frequentemente chamadas de reino.
[...] As outras audiências da América
Espanhola consistiam em Guatemala
(América Central), Santa Fé de Bogotá
(Nova Granada), Caracas (Venezuela),
Quito, Charcas (Alto Peru), Lima (Peru),
Santiago (Chile), Buenos Aires (Rio de
la Plata), e Santo Domingo (o Caribe)”.
No que diz respeito, especificamente, à
Audiência de Quito é interessante notar
que “Foi somente em 1563 que a coroa
estabeleceu uma alta corte (audiên-
cia) na cidade de Quito para chefiar a
recém implantada burocracia imperial”
(ANDRIEN, 1995, p. 15).
13. Traduzido do original: “from faster
natural increase and from migration
from the sierra”.
15
Mateus Webber Matos, Eduardo Ernesto Filippi “Pátria e Liberdade”:
projeto políco de Simón Bolívar e disputas de poder no âmbito das independências hispano-americanas do século XIX
que de maneira tímida e sob a repressão espanhola. A partir da ocupação
napoleônica à Espanha estes intercâmbios se intensicaram.
Em uma alise preliminar, percebe-se que as características frá-
geis das economias hispano-americanas, no transcorrer do período colo-
nial, eram consequência das diretrizes da metrópole. Muito embora esta
armação não seja absurda, ela não está de todo correta. Ao considerar
que as congurações política e econômica seguiam um padrão em to-
dos os territórios coloniais espanis, outros aspectos deveriam ser os
responsáveis pelas disparidades de desenvolvimento nas Américas. Prova
disso é a proporção de 3:1 no valor dos bens totais produzidos (PIB) no
ano de 1800 entre Cuba e Peru, por exemplo (Coatsworth, 2006). Isso
mostra como tanto as variantes geogcas quanto a diversicação da
pauta produtiva podem reetir nos resultados econômicos.
O cenário estrutural peruano – assim como o sul-americano em ge-
ral – não dispunha de transporte de qualidade e seguro – essenciais para
investimento – e mão de obra qualicada (Albert, 1983). Além dos novos
produtos que foram incorporados à realidade das colônias, os métodos
ingleses de negociar – tais como rapidez, preços mais baixos e pagamen-
tos em dinheiro – também exigiram certa adaptação por parte dos ame-
ricanos (Donghi, 1991). É importante ressaltar que não só essas condições
não foram satisfeitas como a entrada crescente de mercadorias inglesas
gerou uma crise no já debilitado setor manufatureiro hispano-americano,
sendo, dessa maneira, determinante para a desagregação das novas socie-
dades autônomas (Furtado, 1970).
Um dos casos em que a relação comercial com a metrópole espa-
nhola alcançou níveis irreconciliáveis foi a Venezuela, o que evidenciou
sua imporncia como um dos locais origirios dos movimentos revo-
lucionários. Reconhecidos pela produção de cacau, café, algodão e couro
os latifundrios venezuelanos atribuíram à Inglaterra uma parceria mais
conável e politicamente estável do que os espanis (Lynch, 1985). O
pacto colonial14 , que vigorava desde o século XVI, estava se tornando
insustentável. Am da diversicação dos mercados consumidores, as
perspectivas para a concessão de crédito internacional também era um
elemento de otimismo entre os latifundiários da região (Escosura, 2006).
Sob um olhar produtivo, Caracas caracterizava-se como uma cida-
de cuja diversicação era reconhecida no início do século XIX. Itens como
tabaco, café, açúcar e corantes naturais – como o índigo (anil) –, pou-
param a economia caraqueña de uma “cacaupendência”, sem, contudo,
desbancá-lo de sua liderança como item mais cultivado (Mckinley, 1985).
A incorporação de novos itens na pauta produtiva foi capitaneada pelas
elites latifundrias que viram essas novas colheitas como oportunidades
de maiores rendimentos e abertura de novos mercados consumidores.
Através de canais legais, foi possível comercializar todos estes gêneros
– excetuando o cacau, cujo uxo era direcionado quase que exclusiva-
mente à metrópole – com as colônias caribenhas e com os Estados Unidos
(Mck inley, 1985).
Como consequência dessa maior variedade e ampliação de cultu-
ras, intensicou-se o comércio escravista dentro da colônia. Para cultu-
ras como o açúcar e o café foram empregados essencialmente escravos,
14. Regime comercial que obrigava as
colônias a comercializarem somente
com suas respectivas metrópoles. Na
visão de Fausto (1995, p. 56) “Tra-
tava-se de impedir ao máximo que
navios estrangeiros transportassem
mercadorias da colônia, sobretudo para
vender diretamente entre outros países
da Europa. Inversamente, procurava-se
também impedir que mercadorias, em
especial as não produzidas na metró-
pole, chegassem à colônia em navios
desses países. Em termos simplificados,
buscava-se deprimir, até onde fosse
possível, os preços pagos na colônia
por seus produtos, para vendê-los com
maior lucro na metrópole”.
16
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 11, n. 1, (fev. 2023), p. 7-24
tendo em vista os altos custos das contratações de mão de obra. Segundo
Mckinley (1985), de 11 fazendas pesquisadas nos arredores que produ-
ziam açúcar, nove tinham escravos que representavam entre 35% e 50%
do valor total dos meios de produção; esta porcentagem em relação às
duas restantes girava em torno de 27%.
De qualquer modo, o que se percebe é que para as elites cara-
queñas, os ideais abolicionistas – bem como a exibilização da estrati-
cação social e a liberdade de culto – eram assuntos tratados com cautela
(Bushnell, 1985; Iturrieta, 2018). Isso pode ser entendido a partir da cons-
tatação de que brancos (espanis e criollos) representavam somente 20%
da população venezuelana no começo dos anos 1800, contrastando com
os 80% predominantes de negros, mestiços, indígenas e outros grupos
marginalizados (Ríos, 2018). No que diz respeito à cidade de Caracas par-
ticularmente, a tabela abaixo pode elucidar algumas dessas discrepâncias
de raça e demograa:
Tabela 1 – População de Caracas por raça, em milhares de habitantes (1785/7-
1800/9)
Raça 1785/7 % 1800/9 %
Castas15 147 44 197 46
Brancos 79 24 108 26
Escravizados 53 16 64 15
Indígenas 53 16 56 13
Fonte: Adaptado de Mckinley (1985, p. 10).
Em contrapartida, em virtude de sua localização mais afastada dos
centros insurgentes e sua relativa autossuciência em termos econômicos
e políticos, o território do Alto Peru (atual Bolívia) foi uma das últimas
a receber a chegada do exército patriota. Enquanto isso, a população ini-
ciou sua própria revolução em 1809. Em realidade, como na maioria das
colônias espanholas, as revoltas partiram de grupos pertencentes às elites
criollas, insatisfeitas com o governo monarquista. Inicialmente, a adesão
de camadas populares ao movimento foi restrita (Klein, 2011), dadas as
incertezas que acompanhavam esses eventos.
A ECLOSÃO DAS REVOLTAS
Ninguém faz revolução porque quer e ninguém deixa de evitá-la porque gosta
(Ribeiro, 1983, p. 219).
Após o insucesso expansionista de Napoleão, o rei espanhol
Fernando VII reassumiu o trono em 1814. Decidido a retomar o controle
de suas colônias americanas, o monarca se apoiou em uma política au-
tocrática e repressiva (Mora, 2008). Este foi mais um elemento que exa-
cerbou as disputas entre hispano-americanos e espanis. Os primeiros
– em especial, as elites – se viram, uma vez mais, alijados das posições de
poder em suas próprias pátrias. Por mais fracionada que tenha se tornado
a autoridade espanhola desde 1808, aos povos colonizados da América
eram concedidos unicamente pequenos espaços de poder.
15. Segundo Mckinley (1985, p. 9,
tradução nossa) “A composição racial
dessa população pode ser dividida em
em quatro grandes categorias: brancos,
mestiços ou negros descendentes de
negros (os castas), escravos negros e
índios”.
17
Mateus Webber Matos, Eduardo Ernesto Filippi “Pátria e Liberdade”:
projeto políco de Simón Bolívar e disputas de poder no âmbito das independências hispano-americanas do século XIX
Diante dessa situação, em 1815, Bolívar (2009, p. 75) retratou a do-
minação espanhola, argumentando que aos hispano-americanos não
eram atribuídos cargos como “vice-reis ou governadores, senão por cau-
sas muito extraordirias; [...] militares, apenas como subordinados; no-
bres, sem privilégios reais; em suma, não éramos magistrados, nem -
nancistas e quase nem mesmo comerciantes: tudo em violação direta de
nossas instituições”16.
As independências hispano-americanas vieram e com elas a pre-
carização das condições políticas, sociais e econômicas dos, agora, po-
vos livres (Furtado, 1970; Stein, S.; Stein, B. 1977; Albert, 1983; Bushnell,
1985; Bulmer-Thomas, 2003; Coatsworth, 2006; Escosura, 2006; Klein,
2011). Sobretudo no interregno de 1810 a 1830, as mudanças – quando
existentes – se mostraram negativas: a estraticação social permaneceu
inexível; houve grande diculdade de abertura de novas linhas comer-
ciais (Furtado, 1970); as cadeias produtivas locais foram prejudicadas pelo
crescente uxo de mercadorias inglesas; e, enm, o vácuo de poder deixa-
do pela ruína da dominação espanhola foi responsável por um ambiente
político de guerra civil, como por exemplo na Colômbia.
Nos casos do Alto Peru e do Peru, esse intervalo também foi repre-
sentativo do declínio da atividade mineradora, haja vista o estancamento
dos uxos comerciais com a Europa – em razão das guerras napoleôni-
cas – e a eclosão dos focos revolucionários na América (Bulmer-Thomas,
2003). Parece haver um consenso na literatura quanto à deterioração da
atividade mineira nessas regiões a partir dos anos de 1810 (Stein, S.; Stein,
B. 1977; Tandeter, 2006; Klein, 2011). De acordo com a tabela 2, nota-se
que o recuo da produtividade mineira na região de Potosí (em especial, de
prata) foi de mais de 50% em um intervalo de cerca de 30 anos:
Tabela 2 – Média da produção de prata em Potosí (em marcos por ano)
Década 1790 1800 1810 1820
Potosí 385,000 300,000 200,000 150,000
Fonte: Elaborada com base em Klein (2011, p. 103).
Uma das causas, como já citado, para a queda da produção de mi-
nérios foi a perda de mão de obra. A supressão de regimes de trabalhos
forçados, como por exemplo a mita17, contribuiu para o esvaziamento
produtivo da região, especialmente em Potosí. Por ser a atividade comer-
cial básica do Alto Peru, os efeitos sociais e econômicos no governo fo-
ram sentidos rapidamente. Além de ter se tornado um produto escasso,
o preço do mercúrio, essencial para a mineração, dobrou entre o começo
da década de 1790 e 1810 (Tandeter, 2006). Quanto ao número de minas
ativas, estima-se que em Cerro Rico (Potosí) tenham se reduzido de cen-
tenas, por volta de 1803, para 50 em 1825 (Klein, 2011).
Estes eventos podem ter inuenciado as relações externas dos go-
vernos da região. Apesar de alguns deles – tais como Bolívia, Colômbia,
Equador, Panamá, Peru e Venezuela – terem em comum a gura de
Bolívar como líder revolucionário, suas diferenças de ordem cultural, eco-
nômica e social parecem ter sido fundamentais para a escolha de rumos
16. Traduzido do original: “virreyes ni
gobernadores, sino por causas muy
extraordinarias;[…] militares, sólo en
calidad de subalternos; nobles, sin
privilegios reales; no éramos, en fin, ni
magistrados, ni financistas y casi ni aun
comerciantes: todo en contravención
directa de nuestras instituciones”.
17. Sistema de trabalhos forçados que
consistia “em um determinado tempo
de trabalho obrigatório que os indígenas
homens adultos tinham que realizar. A
Coroa distribuía esse tempo de trabalho,
reservando-se parte dos mitayos para
obras públicas e entregando os demais
aos colonos espanhóis que necessita-
vam de mão de obra. Apesar de ser um
trabalho forçado, eram pagos salários,
os quais garantiam ao Estado que os
indígenas disporiam de recursos para o
pagamento do tributo” (MORA, 2008, p.
16, grifos nossos).
18
estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 11, n. 1, (fev. 2023), p. 7-24
distintos. As ambições iniciais de Bolívar de reunir tais populações em
uma grande nação esbarraram na negativa das respectivas elites locais.
Na visão de Escosura (2006, p. 480) “O modo como a independência foi
alcançada e o grau anterior de comprometimento com o mercantilismo
colonial condicionaram a performance das novas repúblicas. A indepen-
dência não nivelou as disparidades regionais”18.
Nem a unanimidade, tampouco a homogeneidade eram caracte-
rísticas das incipientes revoluções da América espanhola no transcorrer
do decênio de 1810. O primeiro aspecto a ser considerado é que, mesmo
dentro das próprias elites, havia discordância sobre a busca pela inde-
pendência ou o retorno aos laços coloniais. Esses grupos se opunham à
instalação das Juntas Governativas19, cujo objetivo era dar mais autono-
mia política às colônias. É signicativa a menção de que todas as colônias
hispano-americanas da parte sul do continente – excetuando somente o
Peru –, instituíram tais Juntas para preencher o vácuo de poder deixado
pela ausência da monarquia.
Há um segundo fator relevante: a não unanimidade entre cidades
e regiões rurais sobre as direções a serem seguidas. O resultado foi o de-
sencadeamento de guerras civis que faziam não só as elites rivalizarem
entre si, como também as áreas urbanas enfrentarem as massas interio-
ranas (Rodríguez, 1998). Os frágeis elos que uniam estas oligarquias são
fundamentais para entender a construção dos Estados americanos pós
1830 (Furtado, 1970; Coatsworth, 2006), uma vez que foram agentes im-
portantes na estruturação social.
Adicionalmente, as questões geográcas e climáticas devem tam-
bém ser ressaltadas. A vastidão da América do Sul, a precariedade e até
inexistência de infraestrutura de transporte e as diferentes condições cli-
máticas impactaram os processos revolucionários. Tais aspectos favorece-
ram, por exemplo, regiões como Buenos Aires e Caracas a serem precur-
soras das rebeliões (Rodríguez, 1998). Outro exemplo foi a lentidão com
a qual as notícias dos levantes independentistas americanos atingiram
Lima, cidade voltada ao Pacíco. Cidades como La Paz, Quito e Santa Fé
de Bogotá, por se encontrarem em altitudes signicativas, sofriam com
isolamentos temporários. Sendo assim, além dos conitos civis, os fatores
topográcos e as condições climáticas foram aspectos que prejudicaram
o ritmo das revoluções.
Por gozar de vantagens como clima propício à agricultura e loca-
lização próxima ao porto de La Guaira – principal rota de saída das ex-
portações – Caracas se consolidou na liderança produtiva regional, com
destaque para as produções de cacau, café e anil. Por concentrar, na dé-
cada de 1810, quase 800 mil pessoas – praticamente metade de toda a po-
pulação venezuelana – e ter maior dinamicidade comercial, Caracas era
responsável por quase 80% da produção de cacau, número que aumenta
para quase 100% quando se trata de café e anil (Ríos, 2018).
Outros dois gêneros que merecem ser citados são o açúcar e o ta-
baco. Assim como o café, o açúcar exigia altos investimentos em mão de
obra e infraestrutura, ao mesmo tempo que apresentava um complexo
ciclo produtivo. Apesar destes fatores e de ser relativamente negligen-
ciado, o açúcar era um dos itens essenciais para o comércio interno da
18. Traduzido do original: “The way
independence was achieved and the
previous degree of commitment to colo-
nial mercantilism conditioned the new
republics’ performance. Independence
did not level off regional disparities”.
19. Assembleias compostas por
hispano-americanos que, em teoria,
assumiam uma posição de lealdade e
dependência em relação ao rei espanhol
Fernando VII, mas, na prática, operavam
com autonomia.
19
Mateus Webber Matos, Eduardo Ernesto Filippi “Pátria e Liberdade”:
projeto políco de Simón Bolívar e disputas de poder no âmbito das independências hispano-americanas do século XIX
Venezuela (Mckinley, 1985). Comparativamente ao café e ao açúcar, o
tabaco era uma cultura mais barata e mais rentável, com a vantagem de
causar dependência no usuário, ensejando o aumento da demanda. Muito
embora fosse considerado item de exportação, havia certa procura inter-
na pelo tabaco. De acordo com Mckinley (1985), Caracas centralizava por
volta de dois terços da produção, reunindo, em 1808, um grupo de até
oito mil trabalhadores no Vale do Arágua.
Além disso, os vínculos comerciais entre as regiões não apresen-
taram resultados positivos imediatos. É certo que, mesmo no decur-
so colonial, essas relações não se mostravam promissoras. Entretanto,
havia uma expectativa de que a complementariedade das economias
fomentasse maior uxo comercial. A princípio, não foi o que ocorreu.
Prioritariamente às trocas comerciais estavam os investimentos para a
manutenção/expansão dos exércitos patriotas e em assegurar um mí-
nimo de ordem institucional (Escosura, 2006). Mesmo porque as dis-
tiões, em termos produtivos, de disponibilidade de recursos e de
capital entre as colônias não permitiu esboçar um modelo econômico
padronizado.
Parte dessas disparidades, bem como as infraestruturas de trans-
porte, podem ser consideradas heranças das restrições e repressões co-
loniais. Juntamente com todas estas condições, as rivalidades internas
podem ter sido um dos aspectos que refrearam os focos revolucionários
no Equador, por exemplo. O que não parece atrair tanta atenção é como
as rivalidades interclasses dentro das maiores cidades inuenciaram no
adiamento da independência. Havia um hiato considerável entre as cama-
das mais pobres e as oligarquias. Estas últimas, além de estarem afastadas
dos centros intelectuais, não demonstraram um ímpeto inicial para lide-
rar sua emancipação (Bushnell, 1985).
Gerado esse ímpeto, as elites criollas amargaram derrotas iniciais.
Os rebeldes vindos de Guayaquil – cuja emancipação foi anunciada em
1820 – acreditaram poder libertar outras partes da antiga audiência, o que
não ocorreu. Passadas essas primeiras derrotas, o quadro da guerra esta-
va prestes a ser alterado. Dois foram os fatores principais para o êxito das
lutas posteriores: incorporação das reticentes parcelas da população que
tratavam com desconança as posturas inclusivas das classes mais ricas
e a chegada do reforço enviado por Bolívar e comandado pelo general
Antonio José de Sucre (Mora, 2008). A chegada de Sucre foi o gatilho para
a virada revolucionária e a derrota nal do exército monarquista em 1822
na batalha de Pichincha.
Há, contudo, aqueles que assumem um posicionamento mais
positivo desses eventos e enfatizam o sentimento de unidade regional
resultante (Castillo, 2009). Haveria, portanto, uma identicação dos po-
vos rebeldes em prol de uma supranacionalidade. Para Castillo (2009),
os fatores operacionais e militares da guerra foram suplantados em im-
portância pelo desejo de rompimento das repressões políticas às quais
os revolucionários estavam submetidos. Isso se comprovaria, em parte,
pelas modestas condões dos pequenos exércitos e pelas circunstâncias
geográcas e climáticas enfrentadas. Ele argumenta, nalmente, que as
vitórias patriotas se deram, em grande medida, graças aos “enormes erros
20
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de Fernando VII e dos governos absolutistas e liberais em Madri desde
1815 em diante”20 (Castillo, 2009, p. 443).
O que se pode constatar, todavia, é que, muito embora as revolu-
ções tenham tido em comum ideais antimonarquistas e autonomistas,
as demandas e os anseios divergiam nas variadas sociedades. Muito da
instabilidade política advinda dos movimentos independentistas foi fruto
da inabilidade das elites criollas em conduzir os assuntos públicos, tendo
em vista a transferência improvisada das instituões e ordenamentos le-
gais espanhóis pela Coroa para suas colônias (Coatsworth, 2006). Esses
grupos tinham como ideais o liberalismo econômico adotado na Europa
e a tentativa de desligamento do passado colonial. Uma outra vertente,
mais inclusiva e heterogênea, buscava a inserção dos povos indígenas
nas estruturas sociais e a construção de um imagirio cultural próprio
(Furtado, 1970).
Em meio à saída de capitais estrangeiros, ao colapso scal em
algumas economias, à limitação do comércio exterior e à redução da
renda per capita, os movimentos revoluciorios presenciaram um
aprofundamento das ssuras entre seus comandantes (Bulmer-Thomas,
2003). Em 1815 – quando ainda guardava alguma ilusão em formar uma
grande nação no subcontinente sul-americano, integrado por uma só
língua, uma religião, um governo e uma origem histórica – Bolívar
(2009, p. 84) já vislumbrava as disputas que irromperiam no seio de seu
exército, considerando que “climas remotos, situações diversas, inte-
resses opostos, caracteres diferentes, dividem a América”21. A tabela 3
mostra a contração (quase pela metade) das exportações latino-ameri-
canas para a Inglaterra, precisamente no período em que se iniciam os
levantes revolucionários:
Tabela 3 – Exportações latino-americanas para a Inglaterra, em milhares de libras
(1794/6-1834/6)
Período 1794/6 1804/6 1814/6 1824/6 1834/6
Exportações AL-ING 275 1270 6227 3109 3380
Fonte: Adaptado de Escosura (2006, p. 494).
A despeito de (ou por causa de) algumas vitórias patriotas e do re-
cuo do exército monarquista, as rupturas surgiram entre as alas dos altos
ociais e de burocratas que pretendiam manter as bases socioeconômi-
cas das antigas colônias (Zeuske, 2018), com a diferença que não haveria
mais a intervenção espanhola. Francisco de Paula Santander foi um dos
generais que Bolívar encarregou de administrar a Grã-Colômbia (união
dos atuais Panamá, Colômbia, Venezuela e Equador) desde Santa Fé de
Bogotá. Santander foi um desses líderes que, cerrado em seu gabinete
e privado do campo de batalha, deu início a reformas de cunho liberal,
cujos resultados a curto prazo foram a piora da qualidade de vida da po-
pulação e o afastamento dos ideais de Bolívar.
Esse distanciamento aumentou ao longo dos anos 1820, à medi-
da que Santander se colocou ainda mais em oposição às diretrizes de
Bolívar. Ambos, que nos primeiros anos revolucionários participaram de
20. Traduzido do original: “enormes er-
rores de Fernando VII y de los gobiernos
absolutistas y liberales en Madrid desde
1815 en adelante”.
21. Traduzido do original: “climas
remotos, situaciones diversas, intereses
opuestos, caracteres desemejantes,
dividen a la América”.
21
Mateus Webber Matos, Eduardo Ernesto Filippi “Pátria e Liberdade”:
projeto políco de Simón Bolívar e disputas de poder no âmbito das independências hispano-americanas do século XIX
importantes batalhas, compartilhavam agora poucos valores. O primeiro
era el à lei, de conduta liberal na economia, extremamente religioso e
dotado de uma perspectiva restrita, local; Bolívar, por seu turno, não se
guiava por nenhum dogma religioso em especíco, era sensível às ne-
cessidades sociais e vislumbrava seu projeto de um prisma mais amplo e
integrativo (Kohan, 2014).
O que se viu imediatamente após a conquista das independências
hispano-americanas foi um quadro crítico. Além da manutenção da rígi-
da estraticação social, a precarização das condições de trabalho, o vácuo
político e a crise econômica foram elementos que atingiram, principal-
mente, os indígenas e os escravos (Ribeiro, 2017). Com exceção da Bolívia
(1826) e do Chile (1823), todos os territórios analisados só aboliram a es-
cravidão perto da metade do século XIX (Escosura, 2006). O que se per-
cebe é que ao invés de conduzirem à uma nova realidade e a transforma-
ções estruturais nas sociedades, as guerras de libertação foram sucedidas
por sistemas que conservaram heranças coloniais (Stein, S.; Stein, B. 1977;
Andrien, 1995).
Em âmbito regional, ainda havia uma tendência pela fragmentação
da hispano-américa em repúblicas menores e autônomas, o que frustrou
o plano de Bolívar. Não por acaso, os processos de rompimento se deram
a partir de 1830, ano de sua morte. Nesta data, a antiga Grã-Colômbia foi
desmembrada em Nova Granada (atuais Colômbia e Pana), Equador
e Venezuela. Peru e Bolívia, por sua vez, se separaram depois de uma
rápida união entre 1836 e 1839. O que fora concebido para ser uma só
nação, em poucos anos, se transformou em várias pequenas repúblicas,
cujas despesas administrativas advindas da atomização geogca e da
ampliação de entidades políticas (Escosura, 2006) foram absorvidas pela
população por meio de impostos.
CONSIDERÕES FINAIS
No transcurso desse estudo, buscou-se investigar o projeto político
de Simón Bolívar em meio à expulsão dos espanhóis das Américas e as
disputas por poder subsequentes. Para tanto, foram abordadas as revolu-
ções que deram origem aos processos de independência das colônias es-
panholas nas Américas nos primeiros 30 anos do século XIX. A atuação de
Bolívar nesses conitos foi indissociável de seus desfechos, o que poderia
apontar para um possível prosseguimento de seu projeto após a formação
das novas repúblicas hispano-americanas. Em seguida a sua morte em
1830, todavia, o que se percebeu foram confrontos por poder e a conser-
vação de antigas estruturas sociais.
Muito desse projeto de Bolívar era composto por ideais de arran-
jos de integração latino-americana, de emancipação dos povos coloniais e
melhor equalização das riquezas entre as classes sociais. Acima de tudo, a
palavra que unia muitos dos hispano-americanos e era repetida incansa-
velmente por Bolívar era liberdade. As repressões políticas, sociais e eco-
nômicas durante séculos haviam sido suportadas pelos povos colonizados
que, quando muito, intentavam uma revolta que logo era reprimida com
violência. Sob a liderança de Bolívar o cenário fora diferente.
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Para lograr a libertação desses territórios, Bolívar dispunha de um
perl carismático, centralizador e autoritário. A liderança fora outro fator
que contribuíra para a consecução das independências. A eloquência com
a qual discursava foi um elemento importante para os levantes e a ade-
são da população ao seu exército patriota. É difícil negar que as guerras
de independência, em geral, resultaram em economias abatidas, setores
produtivos em decadência e disseminação da pobreza. Percebeu-se que
as disputas por poder entre as elites locais dentro da lógica das indepen-
dências enfraqueceram a capacidade dessas regiões executarem o projeto
político supranacionalista de Simón Bolívar.
Este trabalho pretendeu contribuir com estudos da história econô-
mica, política e social da América Latina a partir do projeto integrativo
de um dos maiores símbolos da liberdade e autonomia do subcontinente,
Simón Bolívar. Essa perspectiva é carente de pesquisas na literatura bra-
sileira, tendo em vista que não se partilha aqui de muitos dos elemen-
tos históricos e culturais em relação aos vizinhos latino-americanos. Foi
possível constatar, contudo, que muito do que Bolívar idealizou e logrou
(sobretudo no que diz respeito ao sonho de integração regional) perma-
nece, ainda hoje, vivo em discursos e políticas de líderes da região. Desse
modo, acredita-se que a pergunta de pesquisa foi respondida consideran-
do que as elites criollas locais, logo após as independências, participaram
ativamente da reconstrução das novas repúblicas e, de maneira geral,
mantiveram as posições de poder deixadas pelos espanhois após sua fuga.
Quanto às questões econômicas, cou evidente que a América
Latina contemporânea carrega um legado que data do período imedia-
tamente após as independências. Tendo em vista os prejuízos causados
pelas guerras de emancipação às atividades produtivas e a retração econô-
mica desse momento histórico na quase totalidade do subcontinente, as
novas repúblicas foram formadas com o desao de retomar o crescimen-
to econômico do nal do século XVIII e início do XIX. Esse crescimento
deveria ter em conta as novas congurações sociais, a autonomia política
frente à Espanha e o novo arranjo político regional de ex-colônias recém-
-emancipadas. Tal fragmentação territorial foi de encontro ao projeto bo-
livariano e enfraqueceu a capacidade das novas repúblicas de fazer frente
às grandes potências.
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