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Natalia dos Reis Cruz Aleksandr Dugin, o Projeto Neoeurasianista e a Narrava sobre a Nova Ordem Mundial
Aleksandr Dugin, o Projeto
Neoeurasianista e a Narrativa sobre a
Nova Ordem Mundial.
Aleksandr Dugin, the Neo-Eurasianist Project and the
Narrative of the New World Order
Aleksandr Dugin, el Proyecto Neo-Eurasianista y la
Narrativa del Nuevo Orden Mundial
Natalia dos Reis Cruz1
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2023v11n2p53-70
Recebido em: 16 de Maio de 2024
Aprovado em: 19 de Junho de 2024
RESUMO
O artigo estuda o pensamento de Aleksandr Dugin, ideólogo da extrema direita
russa, formulador do projeto neoeurasianista de inserção da Rússia na ordem
internacional. O objetivo é apresentar a trajetória política de Dugin – destacan-
do sua participação no “Círculo Yuzhinsky”, no Pamyat e no Partido Nacional
Bolchevique -, analisar a apropriação do pensamento tradicionalista de Rene
Guenon e Julius Evola, abordar sua reelaboração do eurasianismo dos anos 1920
e do pensamento eslavólo, bem como a concepção duginista de nova ordem
mundial e o uso das teorias geopolíticas clássicas em seu pensamento geopolíti-
co. A metodologia é descritiva e qualitativa, realizando-se uma análise crítica do
conteúdo. O estudo aponta que Dugin defende um projeto imperialista regional
russo, pois a ideia duginista de uma reorganização multipolar do sistema inter-
nacional em contraposição à hegemonia norte-americana coloca a Rússia como
líder de um projeto imperial no “grande espaço” da Eurásia e como a grande
força hegemônica em um futuro Novo Império de dimensões globais.
Palavras-Chave: Neoeursasianismo; Geopolítica; Tradicionalismo.
ABSTRACT
The article studies the thought of Aleksandr Dugin, ideologist of the Russian
extreme right, who has been standing out in the formulation of neo-Eurasia-
nism, a project of inserting Russia in the international order. The objective of
the study is to present Dugins political trajectory - highlighting his participation
in the “Yuzhinsky Group”, in Pamyat and in the National Bolshevik Party -,
analyze the appropriation he makes of the traditionalist thought of Rene Gue-
non and Julius Evola, address his reworking of the 1920s eurasianism and of the
eslavophile thought, in addition to the Duginist conception of the new world
order and the use of classical geopolitical theories in his geopolitical thought.
1. Doutora em História Social pela
Universidade Federal Fluminense e
Docente do Departamento de Relações
Internacionais da Universidade Federal
Fluminense. Contato: natreiscruz29@
gmail.com
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The methodology is descriptive and qualitative, performing a critical analysis of
the content. The study points out that Dugin defends the russian regional impe-
rialist project, then his idea of a multipolar reorganization of the international
system in opposition to North American hegemony places Russia as the leader
of an imperial project in the “greater” of Eurasia and as the hegemonic power
in a future New Empire of global dimensions.
Keywords: Neo-Eurasianism; Geopolitic; Traditionalism.
RESUMEN
El artículo estudia el pensamiento de Aleksandr Dugin, ideólogo de la extrema
derecha rusa, formulador del proyecto neoeurasianista de inserción de Rusia en
el orden internacional. El objetivo es presentar la trayectoria política de Dugin
- destacando su participación en el “Círculo Yuzhinsky”, en Pamyat y en el Par-
tido Nacional Bolchevique-, analizar la apropiación del pensamiento tradiciona-
lista de Rene Guenon y Julius Evola, abordar su reelaboración del eurasianismo
de la década de 1920 y del pensamiento eslavólo, así como de la concepción
duginista de un nuevo orden mundial y del uso de teorías geopolíticas clásicas
en su pensamiento geopolítico. La metodología es descriptiva y cualitativa, rea-
lizando un análisis crítico del contenido. El estudio señala que Dugin deende el
proyecto imperialista regional ruso, ya que la idea duginista de una reorganiza-
ción multipolar del sistema internacional en oposición a la hegemonía nortea-
mericana sitúa a Rusia como líder de un proyecto imperial en el “gran espacio”
de Eurasia y como la gran fuerza hegemónica en un futuro Nuevo Imperio de
dimensiones globales.
Palabras llave: Neoeursasianismo; Geopolítica; Tradicionalismo
1 INTRODUÇÃO
A globalização neoliberal tornou-se a nova ordem mundial refor-
çada pela desintegração da URSS e pelo discurso da “vitória” do capita-
lismo sobre o socialismo. O mundo pós-Guerra Fria foi inicialmente ca-
racterizado pela hegemonia norte-americana calcada no apoio de aliados
tradicionais e novos membros que entraram na aliança político-militar
herdeira da Guerra Fria, a OTAN.
A nova ordem tinha um componente político e cultural – a defesa
dos Direitos Humanos e a transformação da Democracia liberal como
modelo universal e requisito para os países fazerem parte da comunida-
de internacional. Há uma contradição entre o aspecto normativo desta
nova ordem, que impõe modelos de Democracia, e os princípios básicos
do direito internacional, baseados na igualdade soberana dos Estados e
na não ingerência ou intervenção de um Estado em assuntos internos
de outros.
O neoliberalismo globalizado levou a crises nanceiras, exacerban-
do os problemas do capitalismo, como o aumento das desigualdades so-
ciais, da pobreza e da precarização das condições de trabalho e de vida,
acarretando em um mal estar social e contribuindo para a ascensão da
extrema direita em todo o mundo (Cruz, 2023).
Ao mesmo tempo, novos polos de dinamismo econômico surgiam
na Ásia – entre eles, a China e a Índia, integrados aos mercados globais,
com um capitalismo de forte intervenção estatal na economia. Esses
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novos centros expandem suas economias e disputam espaços com os
países ocidentais na conformação da nova ordem mundial, procurando
construir uma arquitetura nanceira e política em contraposição ao po-
der hegemônico norte-americano (Cruz, 2023). Analistas, como Santoro
(2022), armam que o mundo atual transita para uma ordem multipolar,
que ameaça os interesses dos EUA, marcada pela disputa entre grandes
impérios e nações, assemelhando-se à política internacional anterior à
I Guerra Mundial, havendo um bloco formado pelos EUA e pela União
Europeia, e outro pela China e pela Rússia, resultando em um mundo
instável, contrariando as esperanças de paz entre as grandes potências
que muitos acalentaram com o m da Guerra Fria. Os movimentos e
governos de extrema direita levantam bandeiras contra a nova ordem
internacional liberal globalista.
Entre os atores da extrema-direita atual está Alecksandr Dugin,
criador do neoeurasianismo. Suas ideias visam à recomposição do po-
derio da Rússia nas relações internacionais, contestando a ordem do
pós-Guerra Fria. Seu pensamento contribui para o entendimento das
relações internacionais no mundo após o colapso soviético, visto que é
reforçado pelas mazelas da ordem internacional surgidas com o m da
Guerra Fria.
Colocamos então a seguinte questão: o pensamento de Dugin so-
bre geopolítica envolvendo a Rússia representa apenas uma reação à he-
gemonia norte-americana do pós-Guerra Fria ou sustenta uma proposta
de imperialismo russo a nível regional? Como hipótese inicial, defende-
mos que o projeto geopolítico neoeurasiano de Dugin coloca a Rússia
como líder de um projeto imperial no “grande espaço” da Eurásia.
Em um contexto de fortalecimento da extrema direita mundial,
estudar os seus tentáculos é imprescindível à luta pelos valores democrá-
ticos. O pensamento de Dugin inuencia grupos de extrema direita em
várias partes do mundo, inclusive no Brasil, sendo um exemplo o mo-
vimento Nova Resistência, que se inspira em seu legado. Por isso, com-
preender o seu pensamento e conhecer o seu histórico e sua trajetória
política é muito importante.
O artigo tem três objetivos: apresentar a trajetória política de Dugin
até chegar à sua concepção neoeurasianista; analisar a sua apropriação
do Tradicionalismo de Rene Guenon e Julius Evola para basear o proje-
to geopolítico neoeurasiano; e abordar a sua concepção de nova ordem
mundial em correlação com o projeto neoeurasianista e o aporte teórico
da geopolítica clássica utilizada em seu pensamento.
A metodologia usada é a análise crítica de conteúdo, desvendando
o que está encoberto pelo discurso da multipolaridade e do antiociden-
talismo, para que a natureza real do projeto duginista venha à tona. Será
feita também uma contextualização histórica da Rússia no pós-Guerra
Fria, para elucidar o surgimento do neo-eurasianismo de Dugin.
Na primeira parte do artigo, fazemos um breve histórico da trajetó-
ria política de Dugin, abordando o seu processo de chegada ao pensamen-
to neo-eurasiano. Na segunda parte, analisamos o tradicionalismo no
pensamento duginista. E na terceira parte, focamos nas questões geopo-
líticas da Rússia atual e nas ideias de Dugin sobre a nova ordem mundial.
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2 A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE ALECKSANDR DUGIN
Dugin passou a juventude na URSS e teve contato com o “rculo
Yuzhinsky” – sociedade intelectual secreta fundada por Evgenii Golovin
(dissidente do governo soviético) e Iury Stefanov (poeta e tradutor de li-
teratura francesa). O grupo fazia oposição ao regime soviético, se inte-
ressava por Fascismo, Nazismo, misticismo, nacionalismo e ocultismo e
defendia ideias rejeitadas pela intelectualidade dominante, possibilitando
aos seus membros se rebelarem no “mundo oculto de suas psiques”, não
alcançável pelo poder do Estado (Teitelbaum, 2020, p. 47).
Dugin conheceu o Tradicionalismo frequentando a Biblioteca de
nguas Estrangeiras e a Biblioteca Lênin (Sedgwick, 2020, p. 391). Após
o m da URSS, ele se opôs às reformas liberais e fez parte de vários mo-
vimentos. Um deles foi o Pamyat - Frente Nacional Patriótica “Memória”,
organização neonazista e antissemita criada em 1987, que se autoidenti-
cava como “Movimento Cristão-Ortodoxo Nacional-Patriótico do Povo”
e objetivava preservar a cultura russa e defender o reavivamento nacional
e espiritual do povo russo, com base nos valores tradicionais de ortodo-
xia, caráter nacional e espiritualidade (Korey, 2007).
Após as reformas liberais na Rússia, Dugin mudou sua visão do
passado soviético, porque a Rússia havia perdido o status de grande po-
tência e a capacidade de intervir autonomamente no sistema internacio-
nal, enfraquecendo-se diante da hegemonia norte-americana. O desejo de
recuperar o passado de grande potência o levou a se aproximar de lideran-
ças do Partido Comunista da Rússia, como Gennadi Ziuganov, que tam-
bém rejeitavam o capitalismo liberal introduzido no país. Dugin cons-
truiu a Quarta Teoria Política, para superar o Liberalismo, o Fascismo e
o Comunismo, mas apontando para a existência de aspectos positivos a
serem aproveitados nos dois últimos.
Dugin fundou o Partido Nacional Bolchevique (PNB), junto com
Eduard Limonov, poeta e romancista russo. (Sedgwick, 2020, p. 395 e
409).2 O partido era anticomunista e defendia a unidade dos povos eslavos
da Eurásia com base na inuência da Igreja Ortodoxa e em formas comu-
nitárias tradicionais de vida (Vasconcelos, 2022, p. 19).
Os eslavólos foram os primeiros intelectuais russos que deni-
ram uma identidade russa em contraste com a identidade europeia e a
enfatizar que a história russa deveria seguir seu próprio caminho, ha-
vendo uma oposição entre religo e solidariedade social russas e racio-
nalidade e decadência moral europeias. Para os eslavólos, o “nós” eram
todos os eslavos, e “eles” os europeus (a civilização romano-gernica)
(Sedgwick, 2020, p. 399).
Os eurasianos da década de 1920 mantiveram parte do pensamento
eslavólo, armando o “organicismo russo e eurasiano” em oposição à
secularização, à atomização e ao individualismo ocidentais. Assim como
os eslavólos, o “eles” seriam os europeus, mas o “nós” limitavam-se aos
russos e povos de estepe eurasiana (Sedgwick, 2020, p. 400).
A Eurásia seria uma civilização com contornos próprios – histó-
ricos, econômicos, culturais, linguísticos, étnicos e geogcos -, que se
diferenciava da Europa e da Ásia e seria não democrática e não capitalista.
2. Para a compreensão das origens do
nacional-bolchevismo, ver Klemperer
(1951).
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Combatia-se a inuência do Ocidente (livre mercado, individualismo e
imperialismo brinico e francês), defendia-se a identidade dos povos
Orientais, considerados não-europeus, e rejeitava-se o pluralismo político
e a democracia parlamentar (Vasconcelos, 2022, p. 20).
Após sair do Partido Nacional Bolchevique, Dugin fundou o
Movimento Neoeurasiano, reelaborando o pensamento eurasiano origi-
nal à luz do contexto atual da luta geopolítica contra a hegemonia norte-
-americana, fazendo uso da geopolítica clássica e do Tradicionalismo; a
Rússia representaria a luta contra a decadência do Ocidente e a defesa da
Eurásia frente ao ocidentalismo liderado pelos EUA.
Para Dugin, a Rússia adota práticas políticas inadequadas às estru-
turas de sua civilização, como o socialismo marxista e o liberalismo dos
EUA. A teoria neoeurasiana recuperaria a Rússia, livrando-a de “leis uni-
versais exteriores à sua própria identidade” (Camargo, 2018, p. 16). São
valorizadas ideias nascidas da tradição, da hisria e do Estado russos. O
povo russo comporia uma “comunidade eurasiana completamente úni-
ca”, com um caminho histórico próprio e seu programa nacional e estatal
não coincide com o da tradição ocidental europeia” (Dugin, 2014, p. 13).
A perspectiva holista e estruturalista tornaria o eurasianismo es-
pecíco, diferenciando a civilização russa do individualismo ocidental e
opondo-se a universalismos e a perspectivas evolucionistas, que acredi-
tam no progresso inevitável para todas as sociedades, impondo um mo-
delo de desenvolvimento único e desrespeitando as especicidades das
diferentes civilizações (Dugin, 2012).
Dugin usa um conceito de civilização baseado no “Kultur” de
Norbert Elias, que “dá ênfase a diferenças nacionais e à identidade par-
ticular de grupos”, e não o sentido de civilização como algo superior ao
bárbaro. (Elias, 1994 apud Camargo, 2018, p. 19). Com base na ideia
de pluralidade e diversidade, Dugin aproveita do Nazismo a noção de
Ethnos, usando o conceito de Etnocentrismo, valorizando o que perma-
nece intacto na formação social de um povo. Para defender o Ethnos, ele
se baseia, entre outros, na escola alemã de sociologia étnica – incluindo
Wilhelm Mühlmann e Richard Thurnwald (Dugin, 2012, p. 76).
Compartilhamos da visão de Segrillo (2016, p. 287-88), segundo a
qual a visão de mundo tradicionalista é uma grande inuência em suas
obras de geopolítica. Dugin defende que, entre a Geopolítica e a Tradição,
haveria laços sagrados, pois, apesar de ser uma ciência secular e “profa-
na”, manteria ainda relações com as “ciências tradicionais”. Como ela é
frequentemente considerada uma “pseudociência”, isto sinaliza que não
sofreu uma “profanação” completa e irreversível (Dugin, 1997, L. 1, pt. 6,
cap. 6.1 Apud Segrillo, 2016, p. 297).
Abordaremos então a visão de mundo tradicionalista de Dugin, sem
a qual é impossível compreender o seu projeto geopolítico para a Rússia.
3 DUGIN E O TRADICIONALISMO
René Guenon e Julius Évola são duas inuências sobre o pensa-
mento tradicionalista duginista. René Guenon nasceu em 1886 no Cairo,
Egito, e foi fundador da escola tradicionalista e perenialista. Era crítico
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da modernidade ocidental, por ser afastada do transcendente e opres-
sora de tradões espirituais. Falava em “crise da modernidade”, sendo
descrente em relação ao progresso, à evolução contínua da humanidade
e aos valores do mundo moderno. As tradões dependeriam de rituais
iniciáticos para o contato com uma Verdade Primordial; o afastamento
desta Verdade levaria as sociedades a uma era obscura, até explodir em
luz novamente, reiniciando-se todo o ciclo.
Para Guenon (2009), o Cristianismo, envolto na modernidade oci-
dental, se afastou das práticas esotéricas iniciáticas e se limitou ao exo-
terismo - dogmas, doutrinas e rituais de massa voltados apenas para a
salvação da alma. Estaria então no Oriente as práticas religiosas ainda
voltadas para a iniciação.
O Tradicionalismo caracteriza-se pelos seguintes elementos: 1) re-
jeição da modernidade (decnio da religião em favor das coisas materiais;
fé no progresso e defesa da liberdade e da igualdade; etc). 2) Visão cíclica
do tempo (com um ciclo de quatro idades – ouro, prata, bronze e idade
sombria), que levaria à decadência e ao retorno à idade inicial após um
evento cataclismático, reiniciando-se o ciclo decadente. 3) Visão hierár-
quica dos grupos sociais (existência de castas diferentes de pessoas, com
cada idade sendo governada por uma delas: era de ouro – sacerdotes e teo-
cracia; era de prata – guerreiros e Estado militar; era de bronze – comer-
ciantes e plutocracia; era sombria – massas e democracia ou comunismo)
(Teitelbaum, 2020, p. 20-22).
Os tradicionalistas rejeitam a ciência, o racionalismo e a objetivi-
dade, e veem o Iluminismo como opressivo e reducionista. O aumento
da inuência do tradicionalismo deve-se à síntese realizada por Guenon
de ideias e elementos em sua maioria já parte do pensamento ocidental,
como a Inversão – a sabedoria poderia ser encontrada no Oriente, pois o
Ocidente teria regredido; o Perenialismo – as religiões possuem fragmen-
tos de uma religião nuclear original, a Verdade Primordial; e a Iniciação
– rituais iniciáticos ou práticas esotéricas (Sedgwick, 2020, p. 505 e 507).
Julius Évola, por sua vez, conduziu o Tradicionalismo para a ex-
trema-direita. Nascido em 1898, em Roma, Itália, Évola foi lósofo e es-
tudioso das religiões, e se relacionou com o Fascismo e o Nazismo, mas
rompeu com os dois por discordâncias, embora concordasse com os seus
pilares - antiliberalismo, anti-igualitarismo, antidemocratismo (Ferraresi,
2012).
Évola (1934) defendia a volta ao paganismo e a um passado “hiper-
bóreo” comum às estirpes indo-europeias. Possuía, assim como Guenon,
uma visão hierárquica das castas, associando as ideias das revoluções bur-
guesas de cunho liberal e democrático e o socialismo à decadência das
sociedades, pois representariam respectivamente, a “terceira casta” e a
quarta casta” (Évola, 2012).
Évola via a raça como elemento ordenador dos homens, defenden-
do a superioridade dos mais brancos e arianos em relação aos indivíduos
de pele mais escura, os semitas, os africanos e outros povos não-arianos.
Considerava como superior o elemento masculino em relação ao fe-
minino, enquanto em termos geogcos, o norte estaria acima do sul
(Teitelbaum, 2020, p. 23).
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Dugin absorve e reelabora parte do pensamento guenoniano e evo-
liano. No caso de Guenon, ele rejeita a sua compreensão do Cristianismo,
armando que as críticas guenonianas só cabiam ao Catolicismo ociden-
tal, e não à Igreja Ortodoxa, pois esta não haveria perdido sua “vitalidade
iniciática”. O Tradicionalismo duginiano conduz, não ao susmo islâmi-
co – como Guenon -, mas à ortodoxia russa como prática esotérica e exo-
rica (Sedgwick, 2020, p. 397).
Dugin discorda da visão evoliana da religião cristã como igualiria
e universalista, por ver o Cristianismo ortodoxo como hierárquico, basea-
do nas práticas iniciáticas de uma elite espiritual. Algo próximo ao que
Guenon acreditava ter existido no Cristianismo ocidental e que se perdeu.
O Tradicionalismo inspira a crítica de Dugin às inuências do
Ocidente sobre a a cultura e os modos de vida de outras sociedades. Ele
combina Tradicionalismo e neoeurasianismo, construindo um discurso
antiocidental em defesa da civilização eurasiana, do coletivo e do holís-
tico, como fundamento de um projeto de fortalecimento da Rússia no
cerio internacional.
4 DUGIN E A NOVA ORDEM MUNDIAL
Para compreendermos por que o neoeurasianismo tornou-se uma
alternativa à Rússia do pós-Guerra Fria, é importante salientar o enfra-
quecimento econômico e geopolítico russo nos anos 1990, após a disso-
lução da URSS. O governo Boris Yeltsin foi um período de subordinação
russa aos interesses do Ocidente. Adotava o neoliberalismo e estava de-
pendente econômica e nanceiramente dos países ricos ocidentais. Na
política externa, priorizava as relações com a Comunidade de Estados
Independentes (CEI), então formada por 12 ex-repúblicas soviéticas, em
detrimento da segurança russa frente à OTAN e aos EUA, acreditando-se
em uma estreita interação com o Ocidente (Zhebit, 2019, p. 423 e 424).
Ao assumir o Ministério da Defesa e das Relações Exteriores,
Evguêni Primakov3 criticou a política pró-ocidental do antigo ocupan-
te da pasta, Andrei Kozyrev, e centralizou a condução da diplomacia no
Ministério das Relações Exteriores, mudando a política externa russa
(Larrabee; Karacik, 1997 Apud Zhebit, 2019, p. 424). Saint-Pierre (2024)
fala de uma inexão da hisria, pois um conjunto de atores se organizava
para reagir às tentativas de controle unipolar do mundo pelos EUA, consi-
derando seus próprios interesses geopolíticos, econômicos e estratégicos.
Primakov foi o artíce da articulação russa junto a países em desen-
volvimento. Visitou a América Latina4, a Índia e a China, almejando uma
política russa multivetorial e um trilateralismo russo-sino-indiano, devi-
do à permanência da OTAN e à atuação norte-americana como “superpo-
tência”. Lançou a ideia do “trngulo estratégico” com a Índia e a China,
em 1998, para uma nova arquitetura multipolar da política internacional,
embora não houvesse a proposta de uma aliança militar (Primakov, 2015
apud Zhebit, 2019, p. 440). Antes, houve a declaração russo chinesa so-
bre o mundo multipolar e a formação de uma nova ordem internacional
(abril de 1996) e, posteriormente, a declaração sobre a parceria estratégica
com a Índia (outubro de 2000) e o Tratado de Boa Vizinhança, Amizade
3. Foi Presidente do Conselho da União
do Soviete Supremo durante o governo
de Gorbachev (1989-1990) e dirigente do
Serviço Central de Inteligência soviético
em 1991. Nos anos 1992-1995, dirigiu o
Serviço de Inteligência Externa da Fede-
ração da Rússia (1992-1995), foi ministro
das Relações Exteriores (1996-1998), pri-
meiro-ministro do Governo da Federação
da Rússia (1998-1999), deputado da Duma
(2000-2001), presidente da Câmara de Co-
mércio e Indústria da Rússia (2001-2011).
4. Na segunda metade da década de
1990, Primakov visitou México, Cuba e
Venezuela em 1996 e Brasil, Colômbia e
Costa Rica em 1997. Quanto ao Brasil,
uma aproximação mais estreita iniciou-se
no governo FHC, com a criação de uma
plataforma de cooperação na política
internacional e a assinatura de um
comunicado conjunto sobre a criação da
Comissão de Alto Nível de Cooperação,
lançando os alicerces de uma parceria
estratégica bilateral. (Zhebit, 2019, p. 440)
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e Cooperação com a China (julho de 2001), estes dois últimos concretiza-
dos no governo de Vladimir Putin (Zhebit, 2019, p. 440).5
Primakov não aceitou as analogias entre a Rússia pós-soviética e a
Alemanha e o Japão do pós II Guerra Mundial, pois estes barganharam
sua soberania nas relações internacionais integrando-se nos contornos da
arquitetura ocidental de segurança, o que não era o projeto russo, e o le-
gado de Primakov vem sendo aprimorado e consolidado por Putin.
Há acadêmicos que enfatizam a relação entre as ideias de Dugin
e as ações do governo putinista. Shekhovtsov (2008), arma que o apoio
de Primakov à corrente neoeurasiana levou Dugin a se destacar a par-
tir de 1999, ao se tornar assessor de Gennadiy Seleznyov, presidente da
Duma Estatal, que exigiu a inserção dos escritos de Dugin na educação
escolar, além de ter aumentado sua rede após a criação do Movimento
Internacional Eurasiano (2000), com a participação de nomes importan-
tes, como o presidente do Comitê Internacional do Conselho da Federação
Russa, Mikhail Mangelov.
Na mídia ocidental, Dugin é caracterizado como o “guru” do go-
vernante russo. Mas consideramos um exagero, visto que o real impulsio-
nador da mudança na política externa russa foi Primakov.
Segundo Barros (2019), não se pode confundir correlação de ideias
com relação causal. Para ele, Dugin não tem qualquer inuência prá-
tica na elaboração das atuais políticas russas.6 Há um estudo da Rand
Corporation, de 20177, que arma a pouca inuência de Dugin sobre as
elites russas, pois Dugin advoga a “desintegração territorial, a fragmen-
tação e a divisão política e administrativa do estado chinês”, algo não
realista e sem adesão entre as autoridades russas. Dugin chegou a ser
exonerado de seu cargo na Universidade Estatal de Moscou, após pregar a
morte dos nacionalistas ucranianos, e formulou várias críticas às políticas
de Putin na Ucrânia (Barros, 2022).
Segrillo (2016, p. 342-343) atesta que Dugin é o maior nome do eu-
rasianismo russo e há grande inuência de sua obra geopolítica em altos
rculos do poder, principalmente entre as forças armadas, onde seu ma-
nual de geopolítica é adotado nas escolas militares, pois há um vácuo de
conhecimento em Geopolítica herdado do período soviético, quando a dis-
ciplina era considerada “burguesa”, por não enfatizar a luta de classes. A
obra de Dugin preencheu este vácuo, por ser um compêndio da literatura
clássica em Geopolítica, o que é muito útil às academias militares russas.
Mas Segrillo arma que Dugin permanece “marginal” na Rússia devido ao
radicalismo de suas ideias. O elogio de Putin ao eurasianismo como patr-
tico limita-se à ala moderada do movimento, por temor “de alienar setores
da população russa que discordam do eurasianismo radical de Dugin”.
No caso da Guerra da Ucrânia, o acadêmico Sergey Karaganov,
amigo do Ministro da Relações Exteriores, Sergei Lavrov, é o grande
conselheiro do governante russo, tendo formulado a Doutrina Putin, que
interpreta o espaço pós-soviético como área de inuência da Rússia, onde
o Estado russo deve atuar em defesa da identidade russa e dos direitos das
populações russófonas (Hage, 2022, p. 11).
Dugin utiliza autores clássicos da geopolítica, entre eles Carl
Schmitt, incorporando os seguintes elementos da teoria schmittiana: o
5. O chamado RIC (Rússia, Índia e
China), ou o diálogo trilateral, começou
a funcionar em 2003, como um meca-
nismo diplomático que contribuía para
amenizar os conflitos entre os países
membros e fortalecia a cooperação
multilateral entre eles na ONU e nos
grupos de governança internacional.
(Zhebit, 2019, p. 441)
6. George Barrosé um analista de
Washington especializado em Ucrânia e
Rússia e pesquisador noInstitute for the
Study of War.
7. Russian Views of The International
Order. Disponível em https://www.
rand.org/content/dam/rand/pubs/
research_reports/RR1800/RR1826/
RAND_RR1826.pdf
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Natalia dos Reis Cruz Aleksandr Dugin, o Projeto Neoeurasianista e a Narrava sobre a Nova Ordem Mundial
conito histórico entre potências marítimas e potências terrestres, com
os EUA fazendo parte das primeiras e a Rússia das segundas; crítica ao
universalismo liberal e ao positivismo jurídico na conformação da ordem
internacional; defesa de um equilíbrio de poderes baseado no multipola-
rismo dos “Grandes Espaços” dominados por diferentes potências; crítica
à hegemonia norte-americana, ao seu globalismo e à imposição dos seus
interesses mascarados na defesa da liberdade e da democracia.
Para Schmitt, antes dos EUA tornarem-se a potência marítima he-
gemônica, a ordem internacional estava dividida em grandes espaços de
poder e, inclusive, a Doutrina Monroe (a América para os americanos) se-
ria inspirada nesta ideia. A partir dos governos dos presidentes estaduni-
denses Theodore Roosevelt e Woodrow Wilson, passou a predominar a
visão liberal-capitalista da “diplomacia do dólar”, transformando a “terra
em um mercado capitalista global” (Schmitt, 2009, p. 105 e 106).
Esta forma de agir estaria relacionada com a forma marítima de
pensamento e ordenamento social e econômico, e a história universal
seria permeada pela luta entre as potências marítimas (que tendem a não
respeitar fronteiras e espaços demarcados) e as potências terrestres (que
tendem a delimitar fronteiras no espaço). As “civilizões do mar” ou “ta-
lassocráticas” baseiam-se no sistema de comércio, no individualismo, na
disposição à evolução tecnológica, na industrialização e na modernidade;
já as “civilizações da Terra” ou “telúricas” baseiam-se em regras conser-
vadoras e hierárquicas e em valores como delidade, honra e trabalho
(Schmitt, 1952, p. 111-13).
Schmitt difundiu uma vio binária entre potências que pilham os
territórios alheios (as marítimas) e potências que possuem suas riquezas
pelo trabalho (as terrestres). Uma dicotomia que desconsidera o papel do
capitalismo nos expansionismos territoriais. Apenas a forma da expansão
pode ser explicada pelas características geogcas dos países, não a ex-
pansão em si, que está ligada à reprodução ampliada do capital.
Dugin reproduz a forma schmittiana de pensar, colocando a Rússia,
enquanto potência terrestre, no papel de vítima, e os EUA, enquanto po-
tência marítima, no papel de algoz do globalismo, sem atentar para a na-
tureza do sistema capitalista que baseia as disputas geopolíticas, escamo-
teando o fundamento materialista do problema da hegemonia norte-ame-
ricana e ocultando a pretensão de hegemonia russa, ainda que regional.
Os EUA seriam os principais arquitetos da Nova Ordem Mundial.
A democracia liberal, a “ideologia dos direitos humanos” e o livre merca-
do tornaram-se padrões aceitos em todo o mundo. Para isso, haveria três
caminhos possíveis, reetindo posicionamentos diferentes de grupos he-
terogêneos norte-americanos: o projeto dos neoconservadores de criação
de um Império Americano, baseado em uma área central desenvolvida
em consonância com espaços externos fragmentados e divididos; o proje-
to dos democratas (ao qual ele associa o ex-Presidente Barak Obama) de
criação de uma unipolaridade multilateral, sustentada na cooperação dos
EUA com “poderes amistosos” na solução de problemas regionais (entre
eles Canadá, Europa, Austlia, Japão, Israel, etc) e na pressão contra paí-
ses inimigos (como Irã, Venezuela, Bielorrússia, Coreia do Norte) e paí-
ses que lutam para assegurar sua independência regional (como a Rússia
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e a China); e o projeto do Conselho de Relações Internacionais (CFR)
- George Soros e suas fundações - de criação de um Governo Mundial,
com a globalização acelerada e a destruição da soberania dos Estados na-
cionais, surgindo o governo de uma elite global (Dugin, 2012, p. 22).
Dugin aponta para a ameaça chinesa à hegemonia americana e cita
outros países que tentam contrabalançar esta hegemonia - a Rússia, o Irã
e a Venezuela - e controlam vários recursos naturais, limitando a inuên-
cia americana. Refere-se também à Comunidade Europeia e ao Japão
como dois polos de competição entre os parceiros estratégicos e militares
dos EUA. (Dugin, 2012, p. 22-24)
Os termos “etnocentrismo e imperialismo” têm a função na narrati-
va duginista de apresentar a Rússia como uma das vítimas do processo de
dominação norte-americano, ofuscando o projeto hegemônico e também
imperialista russo. O conceito de imperialismo é acompanhado da ênfase
nos fatores étnico culturais, pois as vítimas seriam “países, Estados, po-
vos, culturas”, e não classes sociais.(Dugin, 2012, p. 26), O sistema capita-
lista não é criticado em sua infraestrutura econômica e social, as classes
sociais oprimidas não são o foco de sua alise e há uma idealização da
nação, povo ou cultura russos”.
Atores “terciários” ou “secundários”, múltiplos e heterogêneos,
perderiam com o sucesso da estratégia dos EUA. Eles são agrupados por
Dugin em categorias diferenciadas. Na primeira categoria, estariam os
Estados nacionais independentes que não se submetem a uma autoridade
supranacional exterior. Preocupados em preservar sua soberania, esses
países se subdividiriam em um primeiro grupo, que adapta suas socie-
dades e mantêm relações amigáveis com os EUA e o Ocidente (Rússia e
Cazaquistão, Brasil, Índia e Turquia); um segundo grupo disposto a coo-
perar com os EUA sem permitir a interferência em seus assuntos internos
(Arábia Saudita e Paquistão); um terceiro grupo que, ainda que coopere
com os EUA, ltra o que não é compatível na cultura ocidental com a sua
própria cultura e se benecia da cooperação para fortalecer sua indepen-
dência nacional (China, principalmente); e um último grupo que se opõe
aos valores ocidentais e à hegemonia americana (Irã, Venezuela e Coreia
do Norte) (Dugin, 2012, p. 25-26).
A segunda categoria de projeto não americano seriam os grupos
subnacionais, movimentos e organizações opostos ao americanismo por
razões ideológicas, religiosas e/ou culturais. Nesta categoria estaria o
projeto Eurasiano, multipolar ou de “Grandes Espaços”, baseado no con-
ceito de civilização (Dugin, 2012, p. 26). Este é o projeto do qual Dugin
mais se aproxima, daí sua valorização da obra de Huntington.
Vemos que Dugin é bastante crítico da ordem mundial calcada no
sistema de Estados nacionais, no modelo westfaliano (Dugin, 2012, p. 26).8
Tal crítica está ligada a um projeto de construção de um Império eurasiano,
em que a Rússia seria o centro hegemônico. O modelo de Estados-nação
seria um empecilho à dominação imperial russa na região da Eurásia. Há
uma contradição no seu discurso anti-imperialista, pois ele é conveniente
à contraposição duginiana à hegemonia norte-americana mas, no campo
regional, o projeto geopolítico é o de apagamento das soberanias nacio-
nais na forma de Estados-nação em proveito de impérios regionais.
8. O sistema westfaliano inaugurou
o moderno sistema internacional,
estabelecendo os princípios da sobe-
rania estatal, Estado-nação, igualdade
jurídica entre os Estados, a territoria-
lidade e a não-intervenção, e trouxe
a noção de que uma paz duradoura só
seria alcançada por meio do equilíbrio
de poder entre os Estados. Ver Aron,
Raymond. Paz e guerra entre as nações.
UNB/IPRI, 2002.
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Natalia dos Reis Cruz Aleksandr Dugin, o Projeto Neoeurasianista e a Narrava sobre a Nova Ordem Mundial
Dugin é, portanto, defensor da forma política do Império como
a mais adequada para a Rússia, pois o modelo Estado-nação teria uma
natureza secular e uma concepção de “nação” baseado no “conjunto de
cidadãos”, e não no “povo” holístico e orgânico, sendo também calcado
em valores profanos e burgueses, e não em uma “ideia divina” (como a
teocracia ou o “Santo Império”), constituindo-se em uma “ditadura da
lei” (“nomocracia”), que dá grande poder aos juristas e aos burocratas. A
Rússia, ao contrio, teria preservado os elementos teocráticos e o prin-
cípio aristocrático e, mesmo durante o período sovtico, mantiveram-se
“profundas tradões nacionais imperiais”. (Dugin, 1997 apud Segrillo,
2016, p. 324 e 325).
O modelo é civilizacional, e não nacional, por isso Dugin utiliza
Samuel Huntington (1994), que enfatiza o “conito de civilizações”. Não
se trata de Estados-nações soberanos, mas identidades culturais regio-
nais, o que nos traz uma luz para o projeto imperial de Dugin. As civili-
zações - que podem ou não entrar em choque – se opõem à globalização
(Dugin, 2012, p. 144-145), que homogeniza as culturas com base na forma
ocidental americana de ser.
Embora Dugin critique a tese do conito de Huntington, acredi-
tando ser possível o convívio entre as civilizões, aproveita dele a ideia
de civilizações distintas, através da noção alemã de Kultur, bem como o
uso do conceito de civilização para substituir a alise de classe e a utopia
liberal. E critica Fukuyana (1992), pelo universalismo de sua tese do “m
da história” e pela defesa do modelo das sociedades baseadas no mercado,
na democracia e nos direitos humanos (Dugin, 2012, p, 278).
A imporncia de Huntington para a assertiva de Dugin deve-se
também por ele apontar que as civilizações podem ser atores globais
em substituição ao Estado-nação, que vem perdendo a soberania sob a
inuência da globalização (Dugin, 2012, p. 280). A perda de poder dos
Estados-nação é um imperativo reivindicado por Dugin para a defesa de
uma ordem internacional baseada em grandes impérios construídos em
torno de um país-chave que represente uma civilização e seja o guar-
dião dela. No caso, a civilização eurasiana teria o Estado russo como seu
guardo.
Uma “globalização regional, não mais universalista, levaria à
uno de países e nações pertencendo à mesma civilização. Dugin se
inspira no pensamento de Georg Friedrich List, que formulou o princí-
pio da “autarquia econômica dos grandes espaços, a partir da consta-
tação de que o livre mercado mundial benecia apenas os países ricos
em detrimento dos menos desenvolvidos ou pobres, defendendo assim
o protecionismo, o dirigismo e as restrições alfandegárias para atingir a
independência nacional, estatal e estratégica. O livre comércio deveria
existir apenas dentro dos Grandes Espaços, entre os países que o com-
põem (Dugin, 1997, Liv. 1, Pt. 4, cap. 8.1).
Dentro dos “Grandes Espaços” haveria uma “inclusão social, mas
não com respeito a todos sem distinção, mas para aqueles que pertencem
ao tipo comum da civilização”. (Dugin, 2012, p. 285) A inclusão duginista
revela, portanto, uma exclusão dos que não pertencem à civilização dos
Grandes Espaços.
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Do ponto de vista de Huntington (1994), os “grandes espaços” se-
riam as seguintes civilizações: 1) Ocidental; 2) Confuciana (Chinesa); 3)
Japonesa; 4) Islâmica; 5) Hindu; 6) Eslavo-Ortodoxa; 7) Latino-americana;
8) Africana. Dugin discorda desta divisão, por colocar dentro da “civili-
zação ocidental” os EUA, o Canadá e a Europa, que são distintos quanto
aos interesses estratégicos, econômicos e geopolíticos, e formariam “dois
grandes espaços” dentro da civilização ocidental. A Europa teria “duas
identidades”, o lado “atlantista” (baseado no Reino Unido e na Europa
Oriental, associados aos EUA) e o lado “continental” (com postura mais
independente, tendo como base a França, a Itália e a Espanha, ou seja, a
“velha Europa”) (Dugin, 2012, p. 288).
Dugin não concorda que haja uma “civilização islâmica” de um
lado, e uma “eslava ortodoxa” de outro, pois a parte eurasiana incluiria
não somente os eslavos, e não apenas ortodoxos, mas também outros
grupos étnicos (incluindo túrquicos, caucásicos, siberianos etc) e uma con-
siderável parte da população que professa o Islã. (Dugin, 2012, p. 288) E o
mundo islâmico” seria dividido em vários “grandes espaços”: “o “mundo
Árabe”, a “zona continental do Islã” (Irã, Afeganistão e Paquistão) e a re-
gião do Pacíco com inuência muçulmana”, incluindo neste grupo tam-
bém a “África muçulmana” e as “comunidades muçulmanas na Europa e
na América” (Dugin, 2012, p. 289).
Para Dugin, o divisor de águas é a questão geopolítica, ao armar
que uma mesma civilização divide-se em mais de um “grande espaço,
além de colocar em um mesmo “grande espaço”, o “Eurasiano”, popula-
ções étnico culturais e religiosas distintas. Pressupõe-se que o que está
em jogo é o interesse geopolítico russo de ter domínio sobre um dado
espaço da Eurásia.
Huntington e Dugin desconsideram as diferenças e conitos den-
tro desses agrupamentos colocados dentro de uma única civilização.
Segundo Said (2001), existe uma negligência com a dinâmica e a plurali-
dade internas de cada civilização” e com a disputa quanto “à denição ou
interpretação de cada cultura” existente dentro delas. Como exemplo, os
muçulmanos se dividem por diferenças sociais e culturais (dependendo
da região ou país em que residam) e muitas vezes se identicam mais com
seus nacionais do que com os muçulmanos de outras nacionalidades (Ali,
2002, p. 380). O mesmo podemos falar da chamada “civilização ociden-
tal, se considerarmos a herança judaico-cristã, que se divide em católicos
e protestantes.
A divisão em “civilizações”, a pretexto de construir uma “ordem
internacional multipolar” e “plural, traz em seu bojo um projeto homo-
geneizador e imperial para dentro dos chamados “grandes espaços”. O
projeto duginiano é uma espécie de versão russa da “América para os
americanos” e da “Ásia para os japoneses”. Estaria Dugin defendendo “A
Eurásia para os russos?”
Existiriam três projetos globais e suas três respectivas armas - o
poder militar (Rússia e China), a economia de mercado (elites globalis-
tas - grandes conglomerados nanceiros) e o fundamentalismo islâmi-
co (Lideranças e governos muçulmanos), representando as três funções
clássicas da sociedade tradicional - “os sacerdotes religiosos (brâmanes),
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Natalia dos Reis Cruz Aleksandr Dugin, o Projeto Neoeurasianista e a Narrava sobre a Nova Ordem Mundial
os guerreiros (chátrias) e os comerciantes (vais)”. O ‘militarismo russo-
-chinês’ e a ‘Irmandade Muçulmana, representantes dos valores hierar-
quicamente superiores nas sociedades tradicionais, deveriam se unir para
derrubar a Ordem Mundial Americana, representante do materialismo
(Dugin, 2012, p. 39-40)
Quanto à China, Dugin parece ter mudado de perspectiva, pois
em um trabalho anterior, a China não estava incluída como parceira da
Rússia, pois ela teria se afastado da tendência eurasiana existente no pe-
ríodo maoista, considerando as reformas econômicas chinesas dos anos
1980 como uma inexão para o “modelo atlantista”. Havia então o proje-
to de enfraquecer a China, apresentada como um real inimigo que “pre-
cisaria ser desmantelado”. O desmembramento da China começaria pela
anexação russa do Tibet, do Xinjiang, da Manchúria e da Mongólia, for-
mando um “cinturão de segurança”. (Dugin, 1997, Liv. 1, Pt. 4, cap. 4).
No campo da geopolítica clássica, encontramos conceitos e concep-
ções que aparecem nas obras de Dugin. Halford Mackinder, base da geopo-
lítica inglesa e norte-americana, via o mundo dividido em duas zonas an-
tagônicas – o centro da massa continental eurasiana e a ilha mundial (zona
oceânica). Se uma potência controlasse a massa continental (o heartland),
ameaçaria a ilha mundial. A principal área de interesse geopolítico seria
a Eurásia, ocupada pela Rússia, podendo haver uma aliança Alemanha-
Rússia para controlar a Europa Oriental, o heartland e, em consequência a
ilha mundo, chegando ao controle mundial (Mackinder, 1904).
O “mapa geopolítico clássico de Mackinder” é citado por Dugin,
que localiza nele a Rússia e a China atuais. Segundo ele, o cerne do mun-
do global é atlântico – a potência marítima mor são os EUA – e a Rússia
e a China são a Eurásia, que representa o “heartland. Os EUA, o Poder
Marítimo, lutam pelo controle da Zona Cardinal (Heartland) para domi-
nar o mundo e impor seus valores, e confrontam-se com as forças eurasia-
nas (Rússia-China) (Dugin, 2012, p. 41-42). A preocupação dos EUA seria
evitar que a Rússia e a China tenham o controle da Eurásia e ameacem o
poder norte-americano.
Outro autor utilizado por Dugin é Spykmen, que formulou o concei-
to de Rimland, semelhante ao de “crescente interior” – área da Eurásia no
contorno do heartland. Segundo ele, os aspectos geográcos determinam
ao longo da história dois padrões principais de disputas entre as potências
da Eurásia: o primeiro, potências do Heartland e algumas potências do
Rimland contra outras potências do Rimland aliadas a uma potência na-
val; o segundo, alianças entre potências do Heartland e potências navais
contra um poder dominante no Rimland. Enquanto para Mackinder o
controle do heartland é mais importante, para Spykmen, o Rimland seria
a chave das disputas geopolíticas mais importantes da Eurásia, quem do-
minasse o Rimland deniria o futuro da Eurásia (Spykman, 1944).
A imporncia de Spykmen para Dugin é o seu enfoque na Eurásia,
colocando a Rússia como a potência do heartland, e a imporncia dada
ao controle do Rimland, tornando-o útil para a preocupação duginista
de proteger a Rússia das investidas norte-americanas no território antes
pertencente à antiga URSS ou parte de sua área de inuência – como a
Europa Oriental.
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Dugin situa a Europa Ocidental em um Rimland em relação à
Eurásia, vendo-a como uma espécie de “zona-tampão” ou “apêndice es-
tratégico dos EUA no âmbito da OTAN, e considera os países europeus
ocidentais como “colônias” norte-americanas, dominados pelos interesses
estratégicos dos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial. Mas vê a possibi-
lidade de a Europa Ocidental se aliar à Eurásia, percebendo a existência
de “dois Ocidentes” com signicados diferentes: o “Ocidente-como-EUA
seria um adversário geopolítico total da Rússia. Já o “Ocidente-como-
Europa” teria mudado seu sentido geopolítico nas últimas décadas, pas-
sando da condição de metrópole à condição de “colônia estratégica, cultu-
ral, econômica e política, não possuindo “vontade geopolítica e geog-
ca própria” e sendo apenas uma “base auxiliar na Eurásia”. Esta situação
poderia levar ao surgimento de uma “linha antiamericana, cujo primei-
ro passo estaria na criação da União Europeia, que pretenderia retomar
o signicado histórico e a soberania geopolítica da Europa. Do ponto de
vista da Eurásia, haveria grande interesse em retirar a Europa Ocidental
da inuência norte-americana e transformá-la em um aliado estratégico
da Rússia, mas isso só seria possível com a manutenção da unidade euro-
peia. A Rússia deveria então auxiliar a união da Europa, principalmente
apoiando os Estados da Europa Central, como a Alemanha, diante do
interesse dos EUA em provocar dissensões na região (Dugin, 1997, Liv. 1,
Pt. 5, cap. 5.1).
Outra inuência sob Dugin é o general Karl Ernst Haushofer, cujas
ideias inspiraram a expansão nazista. Ele propunha a criação de algumas
grandes áreas de dimensões continentais que, de Norte a Sul, formassem
uma zona ártica, uma temperada e uma tropical, permitindo a cada pan-
-região a autossuciência e a economia “autárquica. Cada pan-região se-
ria constituída por Estados periféricos, fornecedores de matérias primas,
e por um Estado-guia - na pan-região americana, os Estados Unidos; na
asiática, o Japão; na europeia, a Alemanha (Losano, 2008).
Segundo a proposta duginiana, a Rússia seria a guardiã e o cen-
tro do “grande espaço” formado pela “civilização eurasiana”, e podemos
supor que os países em seu entorno dentro do espaço eurasiano seriam
subordinados a ela, podendo exercer, inclusive, o papel de fornecedores
de matérias-primas para a Rússia9.
Dugin pensa ainda em alianças em torno de determinados eixos,
para construir a ordem multipolar eurasianista. Defende a formação
do “eixo Moscou-Berlim”, visando uma “real independência do contro-
le atlantista dos EUA” por parte da Europa Central. Quanto à região do
Oceano Pacíco, o papel central seria do Japão que manteria valores tradi-
cionais e uma posição antiocidental e antiliberal, sendo importante a for-
mação do “eixo Moscou-Tóquio. Outra aliança importante seria o “eixo
Moscou-Teerã, porque o Irã seria um país antiocidental e uma grande
potência continental ligada à Ásia Central, podendo solucionar a dicul-
dade russa de acesso aos mares quentes (Dugin, 1997, Liv. 1, Pt. 4, cap. 4).
O pensador russo chama o seu projeto geopolítico de Novo Império,
um agregado de sub-impérios e civilizões articulados para a construção
e preservação de uma ordem mundial multipolar. Analistas apontam que
o projeto duginista é distinto do projeto de Vladimir Putin. Este pensa
9. As relações econômicas da Rússia
com o espaço eurasiano demanda
pesquisas que confirmem ou não esta
relação de subordinação tal qual pen-
sada por Haushofer para as chamadas
“pan-regiões”.
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Natalia dos Reis Cruz Aleksandr Dugin, o Projeto Neoeurasianista e a Narrava sobre a Nova Ordem Mundial
em um renascimento nacional e retorno a um estado anterior, sendo o
passado czarista o modelo. Dugin defende a construção de um novo im-
pério, e não o renascimento do antigo, e “uma profunda negação tanto do
passado quanto do presente da Rússia” (Liebel; Neto, 2016, p. 397).
No projeto de Dugin, a Rússia é a grande líder missionária na
construção desta nova ordem internacional do Novo Império, liderando
a construção de “um gigantesco bloco geopolítico continental que seja
unicado em sua estratégia”, “um corpo indivisível no sentido militar
estratégico”, com limitações políticas aos seus sub-impérios, sendo “proi-
bido servir aos interesses geopolíticos atlantistas, sair da aliança estra-
tégica, causar dano à segurança continental. Este Novo Império seria
uma “confederação de Grandes Espaços”, sendo os quatro principais o
Império Europeu no Ocidente (em volta da Alemanha e Europa Central),
o Império do Oceano Pacíco no Oriente (em torno do Japão), O Império
da Ásia Central no Sul (em torno do Irã) e o Império Russo no centro (em
torno da Rússia). A posição central seria da Rússia, pois dela dependeria
toda a ligação territorial e a homogeneidade de todos os outros com-
ponentes do gigantesco bloco continental. O princípio da confederação
valeria também para dentro dos Grandes Espaços em relação às unidades
nacionais, regionais e étnicas menores (ou países e Estados). Haveria limi-
tações substanciais à soberania destes Estados quanto às questões estra-
tégicas e às relacionadas com as especicidades dos Grandes Espaços aos
quais pertencem, embora ele arme que leva em conta “as peculiaridades
históricas, culturais, geogcas e raciais de cada região” (Dugin, 1997,
Liv. 1, Pt. 4, cap. 4).
Mas as limitações à soberania dos países que compõem os Grandes
Espaços não signicariam uma “camisa de força” contra os pequenos
Estados agrupados na “grande civilização” guardada pelo Estado centro?
Estes pequenos Estados seriam obrigados a aceitarem a concepção de ci-
vilização e os critérios adotados como traços comuns entre os diversos
povos salvaguardados pelo Estado central e a se submeterem à autorida-
de das grandes potências guardiãs? Parece um projeto substancialmente
autoritário.
Outro problema seria o componente racista da sua proposta geopo-
lítica. Segundo Glazebrook (2019), o mundo de Dugin seria composto de
etno estados racialmente puros” dominados por uma “aristocracia euro
russa supremacista branca” com subordinação da Ásia à Rússia.
É preciso compreender, porém, que os eurasianistas não possuem
uma concepção de povo russo baseado na pureza eslava branca. Os esla-
los estavam mais próximos desta concepção, já que consideravam o
início do atual povo russo na antiga “comunidade kievana” de eslavos10.
Para os eurasianistas e neo-eurasianistas, o povo russo atual, os “Grão-
Russos”, seria diferente dos antigos eslavos de Kiev, pois resultariam da
mistura cultural e étnica com os povos das estepes asiáticas, durante o
domínio Mongol e no período de construção do Império Czarista. Os
Grão-Russos herdaram aspectos da cultura mongol, inclusive a capaci-
dade de construir um sólido e centralizado império, diferente da frouxa
confederação de Estados kievanos. Haveria, inclusive, uma desconança
por parte dos nacionalistas russos xenófobos em relação aos eurasianistas,
10. Existente antes do domínio mongol.
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não vendo com bons olhos propostas de incorporar como parte de uma
civilização eurasiana os povos muçulmanos asiáticos, conforme apre-
goa Dugin. Muitos o consideram um “traidor” e um “internacionalista”
(Segrillo, 2016, p. 344).
Dugin não parece preocupado em armar uma soberania branca
eslava no Grande Espaço da Eurásia. O racismo de Dugin é calcado no
novo racismo, que orienta os discursos da “nova direita” europeia, nota-
damente o pensamento de Alain de Benoist11, uma referência intelectual
importante em sua obra. Para esta “Nova Direita”, a retórica não deve se
basear na ideia de hierarquia entre raças e povos ou em concepções de su-
perioridade ou inferioridade, mas na defesa das identidades puras. É um
discurso “diferencialista” e “pluralista, que demarca os espaços de cada
povo, no caso de Dugin, de cada civilização.
Segundo Segrillo (2016, p. 345), Dugin acompanhou a viragem
ideogica da “Nova Direita” de uma visão biogica das diferenças entre
os povos para uma diferença cultural, um “neorracismo diferencialista,
exaltando-se o “direito de ser diferente”. Mas a terminologia de Dugin é
ambígua, pensando a etnia como resultado de fatores biológicos e cultu-
rais. E, embora discurse contra o “chauvinismo étnico”, se preocupa com
a manutenção das identidades étnicas, opondo-se à mistura entre elas.
Basta atentarmos para as suas referências teóricas a respeito da
questão étnica. O antropólogo austro-alemão Richard Thurnwald, uma
de suas inuências, tinha uma abordagem política colonial baseada na
biologia racial, posicionando-se contra a mistura racial, tendo delineado
os princípios da organização colonial, que deveria basear o desenvolvi-
mento nacional-socialista das colônias africanas (Rohrbacher, 2024).
o podemos negligenciar a presença do racismo no pensamento
de Dugin, ainda que ele apareça na forma do “novo racismo” da “Nova
Direita.
5 CONCLUSÃO
Dugin constrói uma narrativa Ocidente versus Oriente quanto
aos valores civilizacionais - o Ocidente individualista e universalista e
o Oriente holístico. Baseia-se em Rene Guenon (partidário do Oriente),
e em Julius Evola (crítico da modernidade e dos EUA), ambos parte do
Tradicionalismo (Dugin, 2012, p. 42).
O projeto neoeurasiano é uma adaptação que Dugin faz do eurasia-
nismo dos anos 1920 e do pensamento eslavólo, com ajuda das ideias da
geopolítica clássica, aplicando-as às disputas interimperialistas atuais en-
tre Rússia e EUA. Tem como base a chamada Quarta Teoria Política, que
pretenderia superar o Liberalismo, o Comunismo e o Fascismo, embora
aproveitando seus elementos “positivos”.
A retórica duginista defende um projeto hegemônico russo, não no
sentido de impor a civilização russa e eurasiana ao mundo, mas centrado
na Rússia como o centro de um Novo Império, composto por diversos
sub-impérios. Para fora, a diversidade e a pluralidade – já que a luta é con-
tra o adversário com tendências a unipolarização -, para dentro dos sub-
-impérios, as amarras de um ideal de “civilização, que incluiria apenas o
11. Um dos fundadores da Nova Direita.
Criou o conceito de Etnopluralismo,
baseado na existência de comunidades
étnico culturais individuais e frontei-
riças.
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Natalia dos Reis Cruz Aleksandr Dugin, o Projeto Neoeurasianista e a Narrava sobre a Nova Ordem Mundial
considerado “tipo comum da civilização”, e a Rússia como a grande força
hegemônica e sustentáculo do mundo multipolar.
A retórica da diversidade e da pluralidade sustenta a sua defesa do
multipolarismo na ordem internacional. No entanto, Dugin representa
uma ideia racista que se baseia na manutenção das diferenças, desde que
estejam apartadas umas das outras. Sua ideologia apresenta um racismo
baseado na não mistura entre culturas e civilizões diferentes, cons-
truindo um projeto de apartheids geogcos, e defendendo uma diversi-
dade de base étnica (no sentido do novo racismo), na qual o diferente só é
aceito fora dos muros erguidos.
A conclusão é a de que o discurso duginista contra a hegemonia dos
EUA e dos valores ocidentais encobre um projeto de imperialismo russo
dentro do espaço eurasiano, que impõe um conceito de civilização eura-
siana e amarra os pequenos Estados a ele em uma camisa de força, e um
projeto de hegemonia global russa, já que o Grande Espaço da Eurásia
sob domínio russo seria o centro e sustentáculo do mundo multipolar.
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