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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 11, n. 2, (jun. 2023), p. 38-52
A construção institucional na China e sua
dimensão consultiva
Institutional Construction in China and Its Consultative
Dimension
La Construcción Institucional en China y Su Dimensión
Consultiva
Diego Pautasso1
Isis Paris Maia2
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2023v11n2p38-52
Recebido em: 11 de setembro de 2023
Aprovado em: 19 de setembro de 2023
RESUMO
O presente artigo aborda as transformações político-institucionais pelo qual vem
passando a China. O objetivo é compreender como tem se sosticado os meca-
nismos consultivos-deliberativos. Argumentamos que tais reformas políticas na
China, tais como as econômicas, têm combinado experimentalismo e gradualis-
mo, com a absorção de aprendizados internacionais, mas sem replicar variações
do modelo liberal-ocidental. Para tanto, metodologicamente, a partir da revisão
da literatura, pode-se concluir que a proliferação de consultas públicas no sistema
político chinês tem fortalecido a legitimidade e a ecácia das políticas públicas.
PALAVRAS CHAVES: China; Instituições; Democracia Consultiva.
ABSTRACT
This article addresses the political-institutional transformations that China has
been going through. The objective is to understand how the consultative-de-
liberative mechanisms have been sophisticated. We argue that such political
reforms in China, such as economic ones, have combined experimentalism and
gradualism, with the absorption of international learning, but without replica-
ting variations of the liberal-western model. Therefore, methodologically, based
on the literature review, it can be concluded that the proliferation of public
consultations in the Chinese political system has strengthened the legitimacy
and eectiveness of public policies.
KEYWORDS: China; Institutions; Consultative Democracy.
RESUMEN
El presente artículo aborda las transformaciones político-institucionales por las
que está pasando China. El objetivo es comprender cómo se han sosticado los
1. Doutor em Ciência Política pela
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Professor Titular EBTT e autor dos
livros “Imperialismo - ainda faz sentido
na Era da Globalização?” e “China e a
Nova Rota da Seda”. E-mail: dgpautas-
so@gmail.com
2. Mestre e Doutoranda em Políticas
Públicas pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Coordenadora
acadêmica do grupo de pesquisa Gechi-
na-Asialac UnB. E-mail: isisparismaia@
gmail.com
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Diego Pautasso, Isis Paris Maia A construção instucional na China e sua dimensão consulva
mecanismos consultivos-deliberativos. Argumentamos que tales reformas polí-
ticas en China, al igual que las económicas, han combinado experimentalismo y
gradualismo, con la absorción de aprendizajes internacionales, pero sin replicar
variaciones del modelo liberal-occidental. Para ello, metodológicamente, a
partir de la revisión de la literatura, se puede concluir que la proliferación de
consultas públicas en el sistema político chino ha fortalecido la legitimidad y la
ecacia de las políticas públicas.
PALABRAS CLAVE: China; Instituciones; Democracia Consultiva.
Introdução
“Democracia, direito, liberdade, direitos humanos, igualdade e fraternidade não
são características exclusivas do capitalismo. Elas são os frutos compartilha-
dos das civilizações que surgiram na história do mundo inteiro e estão entre os
valores que a humanidade tem buscado coletivamente (Tradução dos Autores)
(WEN Jiabao, 2005, apud YANG, 2007, p. 61).
Na China tem se dado crescente atenção à reforma dos processos
político-decisórios e de seu sistema de governança. Desde A política de
Reforma e Abertura (1978), o país vem passando por transformações e
sosticação de seu arranjo institucional. Se combinam mudanças na es-
trutura estatal sob liderança do Partido Comunista Chinês (PCCh) com
a absorção de aprendizados internacionais, mas sem replicar variações do
modelo liberal-ocidental (Zhang; Yan, 2022). Desde então, o tema da mo-
dernização institucional tem ocupado importante lugar na formulação
política dos líderes chineses e em seus Planos Quinquenais.
O presente artigo visa lançar luz sobre um dos aspectos destas
transformações institucionais, neste caso em questão, os mecanismos
consultivos-deliberativos. Argumentamos que as instituições na China,
com experimentalismo e gradualismo, têm passado por grandes transfor-
mações, pois estão entrelaçadas ao seu acelerado desenvolvimento econô-
mico. Além de uma construção estatal com tradição milenar, com antiga
burocracia meritocrática e legitimidade política baseada na governança e
não em poder divino (Xia, 2014), agrega-se a trajetória do PCCh, da luta
antiimperialista à guerra civil, da revolução às reformas, da frente unida
aos mecanismos consultivos (Wang; Groot, 2018).
o resta dúvida sobre a proliferação de consultas públicas no sis-
tema político chinês (He; Warren, 2011). O resultado tem sido o crescen-
te número de estudos sobre democracia consultiva e temas correlatos de
governança, como identicou recente revisão sistemática que mapeou
mais de 500 artigos no Chinese Academic Journals Network Library publica-
dos entre 2004 e 2020 (Duan; Zhang; Wang, 2021). Metodologicamente,
realizamos uma busca na plataforma Capes Cafe e localizamos 51 ar-
tigos revisados por pares com o termo em língua inglesa (Democracy
Consultative China) - embora apenas 22 estivessem de acordo com os pro-
pósitos deste estudo.
Os desaos interpretativos do caráter e transformações da dimi-
ca institucional e política da China têm sido objeto de diversos esforços
interpretativos. Alguns autores têm conceituado como autoritarismo con-
sultivo, sob alegações de que o governo utiliza as informações para apoiar
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suas decisões e ações, bem como para produzir apoio e legitimidade ao
regime político (Truex, 2014; He; Warren, 2011). Aqueles que destacam a
matriz leninista também argumentam que se trata de permanecer no po-
der, inuenciando a opinião pública e promovendo sentimento nacional,
realizando reformas contínuas para se antecipar às demandas públicas por
democratização, bem como pragmatismo na gestão pública (Tsang, 2009;
Gueorguiev, 2021). Ao invés de uma estratégia para conter a democracia
(Tsang, 2009; Truex, 2014), sustentamos que a formulação, a participação
e a legitimidade das ações políticas é o próprio processo de democratiza-
ção em curso engendrado pelo PCCh. Para além das formalidades e pro-
cedimentos, tem ocorrido um aprimoramento dos processos consultivos
e deliberativos, pois estão cada vez mais amplos, transparentes e com
acesso a informações adequadas (Fishkin, 2017; Zhang; He; Wu, 2021).
o apenas o ritmo das transformações e as particularidades da
construção institucional levam a diculdades analíticas, mas também o
amplo domínio de bases interpretativas circunscritas ao universo liberal-
-ocidental. A bem da verdade, o próprio alargamento do sufgio e am-
pliação dos poderes representativos das democracias liberais não se de-
ram, como ressalta Losurdo (2006), sem sobressaltos e grandes pressões
sociais internas e anti-sistêmica (socialista). Com efeito, se desconsidera
tanto sociedades que estabeleceram relações políticas democráticas extra-
-ocidentais (Isakhan; Stockwell, 2011; Frank, 1998) quanto, modernamen-
te, fora dos pametros liberais. E após o vendaval que derrubou o bloco
soviético, buscou-se forjar um consenso acerca da democracia liberal e de
suas regras formais do jogo político, dissociadas da distribuição de poder
na sociedade e no Estado. Apesar do aprendizado com o exterior, a China
busca também seu próprio caminho institucional.
2. Democracia, instituições e ideologia
O conceito de democracia é tão polissêmico quanto atravessado por
capturas político-ideogicas, das suas origens na Grécia Antiga às formas
contemporâneas sob o capitalismo. A hegemonia britânico-estaduniden-
se nos dois últimos séculos teve a pretensão de universalizar a democra-
cia a partir dos parâmetros liberais e sob diversos arranjos institucionais.
Aliás, Losurdo (2006) foi exaustivo ao reconstituir as construções insti-
tucionais sob o universo dos países liberais, sobretudo seus arquétipos
(EUA e Grã-Bretanha), incluindo a histórica reação ao sufrágio universal
e ao sistema eleitoral proporcional, bem como a defesa e/ou apoio ao
poder discricionário contra os segmentos populares. Externamente, não
há como dissociar o liberalismo da política imperial que caracterizou a
ascensão e hegemonia destas potências (Losurdo, 2004; 2006).
Com efeito, a armação da democracia liberal como valor univer-
sal requer a combinação de uma série de imprecisões conceituais, sim-
plicações históricas e vieses ideológicos. Isso turva a compreensão dos
direitos do homem e do cidadão como produto da história e não como
idealidades paradigmáticas universais (igualdade, liberdade, fraterni-
dade, justiça, paz, felicidade etc.). Assim, a democracia não é universal,
como tampouco tais idealidades, e só faz sentido na construção histórica
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Diego Pautasso, Isis Paris Maia A construção instucional na China e sua dimensão consulva
concreta (Moraes, 2001), anal, as instituições e o Estado possuem media-
ções complexas entrelaçadas às relações entre poder e riqueza. A distin-
ção entre o conteúdo (quem governa) e a forma de Estado (como governa)
se relaciona com as classes e suas frações e se expressa de diferentes for-
mas e diversos arranjos políticos e institucionais (Fernandes, 2000).
Estamos diante de uma operação política voltada a tornar a de-
mocracia liberal um valor universal avesso a qualquer problematização,
sobretudo após o colapso do campo socialista em 1991 e a supremacia
do pensamento neoliberal. Alguns dos trabalhos mais emblemáticos se
referem a modelos de democracia (Lijphart, 2003) ou a tipos de Estados
de Bem Estar (Esping-Andersen, 1991) no âmbito do universo liberal-oci-
dental. De acordo com as conveniências geopolíticas dos EUA e seus alia-
dos, países com o exercício exclusivo por décadas de um partido no poder
ndia, Japão e/ou México) e o anacronismo das monarquias hereditárias
na Europa (Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Noruega, Países
Baixos, Suécia e outros principados e ducados) sequer são capazes de ar-
ranhar sua normalidade institucional.
Por seu turno, as experiências socialistas são consideradas “redu-
cionismo de classe” e suas “formas de opressão ou subordinação degra-
dantes” e antidemocráticas, como apresenta Cunningham (2009) em seu
trabalho Teorias da democracia. Assim, as singularidades das 32 expe-
riências socialistas surgidas durante a Guerra Fria (Visentini, 2017) são
frequentemente ignoradas, bem como os contrastes político-institucio-
nais existentes entre estes muitos países de diversos continentes. Não é
possível comparar Angola e Cuba, ou Vietnã e URSS — da mesma forma
que se o zéssemos com Noruega e Haiti diria pouco sobre capitalismo e
democracia. Ora, basta alguma objetividade cientíca para reconhecer as
diversas combinações entre mercado e planejamento (Nove, 1989).
Esta simplicação se completa com a adoção de categorias como a
de totalitarismo — em oposição ao assim chamado “mundo livre” centra-
do nas democracias liberais. Ou seja, supor que as experiências socialistas
eram sistemas monocráticos, abarcando todas as dimensões sociais, com
população atomizada e submissa, não explica a competição interna dos
partidos hegemônicos, do envolvimento político em outras esferas (bair-
ros, fábricas, instituições de ensino) — muitas vezes mais intensas e menos
distorcidas pelo poder econômico que em países ocidentais (Fernandes,
2000). Para além da propaganda anticomunista, essas premissas tiveram
muita adesão em cientistas e políticos, inclusive aqueles identicados com
o campo progressista.
Além das questões domésticas, frequentemente são negligenciados
os condicionantes sistêmicos para o desenvolvimento institucional, so-
bretudo o entrelaçamento entre imperialismo e democracia. Via de re-
gra, a pilhagem colonial favoreceu o desenvolvimento ecomico e insti-
tucional dos países centrais, aumentando os ganhos destes trabalhadores,
se tornando empecilho apenas quando o intervencionismo resultou em
perdas prolongadas, como o emblemático do Vietnã (Veltmeyer, 2009).
Ora, a história do imperialismo, mesmo que sob a defesa da “democra-
cia”, dos “direitos humanos” e do “livre mercado”, tem sido determinan-
te na obliteração da normalidade institucional. Não se pode discutir as
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condições objetivas de desenvolvimento institucional e democrático sem
levar em conta a imposição de modelos político-institucionais e de ajustes
macroeconômicos; as práticas de desestabilização e ingerências políticas
e militares; as crises econômicas e os estrangulamentos nanceiros; entre
outras formas de constrangimentos.
À luz da história, as construções institucionais - incluindo a demo-
cracia - são processos complexos e sinuosos. A democracia moderna, por
exemplo, emerge de conitos relacionados aos direitos formais e direitos
socioeconômicos – e à própria superação das ts grandes discriminações,
de classe, de raça e de gênero. A ampliação destes direitos no Ocidente
a partir do Pós-Guerra, incluindo a formação dos Estados de Bem Estar
Social, não foi concessão do universo liberal, mas resultado de lutas so-
ciais e da pressão do campo socialista. Não por acaso, com o advento do
neoliberalismo e sua expressão cultural pós-moderna, emergem formas
pós-democráticas, incluindo bonapartismo de novo estilo, adaptadas às
condições atuais da sociedade do espetáculo, cevadas pelas novas formas
de consciência, hiperindividualistas e hipercompetitivas. Assim, as trans-
formações tecnológicas lançadas pela 3ª Revolução se projetam com o si-
multâneo ataque aos direitos sociais, à precarização das relações de traba-
lho (uberização) e ao esgarçamento do tecido social, bem como à erosão
das formas cooperativo de organização social e política (Azzarà, 2022).
Apesar da força do pensamento dominantes sobre modelos institu-
cionais, se torna latente o debate sobre crise nas democracias Ocidentais.
Przeworski (2019), por exemplo, considera como crise as disfunções po-
líticas e a perda de conança nas instituições; o enfraquecimento da or-
dem pública; a erosão do sistema político-partidário; e fraca legitimidade
da própria institucionalidade e esfera pública. Segundo ele, isso não está
desassociado do baixo crescimento econômico, da ampliação das desi-
gualdades sociais e da precarização das condições de vida. A questão de
fundo é como os direitos formais se realizam em condições objetivas da
distribuição de riqueza e poder na institucionalidade liberal, seja no li-
vre mercado econômico ou na liberdade de organização, eleição ou ex-
pressão. Vejamos o caso das mídias digitais, cujas corporações (Big Techs)
potencializam o alcance da sua atuação, mobilizando algoritmos para o
marketing ou a mobilização da opinião pública3. Como sublinha Mascaro
(2013), não apenas os mecanismos de atuação político são condicionados
pela dimica de poder intrínseca ao desenvolvimento do capitalismo em
seu tempo espaço, como, quando confrontado, produz respostas não ca-
suais de constrição do poder (ditaduras, fascismo, nazismo, etc.) para lidar
com uma polaridade sempre contraditória.
Expliquemos melhor tomando por exemplo o arquétipo do mode-
lo democrático liberal, os EUA. Desde a origem, o uso do termo demo-
cracia se prestou a ns ideogicos: seja para dar nome ao partido que
se opôs até o limite à abolição da escravatura, seja para desencadear um
sem número de guerras e golpes (Losurdo, 2022). Para além disso, é um
país de baixo engajamento político, onde apenas pouco mais de 50% da
população em idade de votar tem participado das eleições4, revelador do
grau de politização, de legitimidade e de crença num jogo político-elei-
toral completamente plutocrático. Ou seja, além das barreiras legais à
3. O escândalo da Cambridge Analytica,
ao ter acesso ao volume de dados dos
usuários da rede social, influenciou
as eleições estadunidenses. Ver reporta-
gem: https://www.bbc.com/portuguese/
geral-43705839
4. Ver histórico de votação em: https://
www.presidency.ucsb.edu/statistics/
data/voter-turnout-in-presidential-e-
lections
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Diego Pautasso, Isis Paris Maia A construção instucional na China e sua dimensão consulva
participação de outras forças sociais e políticas, há enormes barreiras
nanceiras: a título de ilustração, o custo total da eleição estadunidense
de 2020 foi de cerca de 14 bilhões de dólares, enquanto uma cadeira no
Senado tem custo médio de quase 20 milhões e uma na Câmara de cerca
de 1,5 milhão de dólares5.
o há porque suprimir o voto quando há outros meios para se-
questrar suas consequências, dado que o nanciamento captura o con-
junto das organizações políticas e dene a agenda em torno de interesses
corporativos (Skocpol; Hertel-Fernandez, 2016). Daí decorre o absoluto
controle da política pelas elites WASP em detrimento dos cidadãos co-
muns, como detalharam Gilens; Page (2014) — o que dá sentido ao mono-
partidarismo competitivo denido por Losurdo (2004b). Não surpreende,
portanto, que a Pandemia de Covid-19 reita tais disfunções sociais e ins-
titucionais: a maior potência do mundo, com todos os recursos técnicos
e nanceiros e menos de 5% da população mundial, teve cerca de ¼ dos
casos e do número de mortes mundiais6.
A compreensão das instituições do universo liberal-ocidental em
dois séculos deve levar em conta continuidades e mudanças; discurso e
evolução histórica; avanços e crises políticas. A atual crise institucional
em diversos países do Ocidente se articula às transformações do pró-
prio capitalismo contemporâneo. Como veremos, o desenvolvimento da
China representa não apenas o deslocamento do epicentro geoeconômico
do mundo, mas transformações tecnológicas e institucionais com desdo-
bramentos obrigatórios para o século XXI.
3. A China em busca de seu arranjo político
A suposição que a revolução levaria ao m das classes e ao de-
nhamento do Estado foi ingênuo e retardou o desenvolvimento de teo-
rias sobre instituições e Estado no âmbito do marxismo. Certamente isso
inuenciou a hipertroa e as disfunções na dimica Estado-Partido no
imperativo de desenvolvimento e segurança institucional em países de
orientação socialistas (Fernandes, 2000). Ademais, é preciso levar em con-
ta que as experiências socialistas ocorreram em países da periferia do sis-
tema internacional, com diculdades econômicas, políticas e geopolíticas
a serem levadas em conta. Anal, é impossível tratar de desenhos insti-
tucionais sem considerar indicadores de desenvolvimento, alfabetização,
urbanização, entre outros. Inclusive os próprios países ricos, como bem
destaca Chang (2004), somente lograram o aprimoramento das institui-
ções após a arrancada industrial e atravessados por períodos de conitos,
contradições e sobressaltos.
A construção institucional da China, além da herança civilizacional
e política milenar, tem sido pela revolução e sua orientão socialista,
mas também pelo subdesenvolvimento e pelo contexto imperialista. Sua
participação no PIB mundial despencou de 32,9% em 1820 para 4,8% em
19787 — e, apesar da industrialização maoista, o padrão de vida seguia
estagnado e com importante insegurança alimentar (Weber, 2023), dada
a herança do Século de Humilhações e os sobressaltos do Grande Salto e
da Revolução Cultural. Além da guerra civil (1927-49), o país se envolveu
5. Ver informações a partir da repor-
tagem de O Globo em: https://oglobo.
globo.com/epoca/mundo/eleicao-nos-
-eua-2020-quanto-custa-corrida-para-
-casa-branca-24725951
6. Ver dados sobre a Covid nos EUA em:
https://www.worldometers.info/corona-
virus/country/us/
7. Ver estudo de Maddison Chinese
Economic Performance in the Long Run,
OCDE, 2007. Disponível em: https://
www.oecd-ilibrary.org/development/chi-
nese-economic-performance-in-the-lon-
g-run-960-2030-ad-second-edition-revi-
sed-and-updated_9789264037632-en
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em guerras na revolução coreana (1950-53) e vietnamita (1960-69), nas
crises com Taiwan (1956-58) e campanhas militares nas fronteiras com
Mianmar (1960-61), Índia (1962), URSS (1969) e Vietnã (1979), além do iso-
lamento internacional após a ruptura sino-soviética.
Diante dessa conjuntura adversa, o PPCh desencadeou a política
de Reforma e Abertura no nal da década de 1970, revelando capacidade
adaptativa e responsiva do regime. As reformas não aderiram à terapia de
choque neoliberal, optaram por implementar mudanças graduais que com-
binavam aprendizados de origens imperiais com experiência estrangeiras,
através de visitas ao exterior e debates com economistas internacionais e
participação do Banco Mundial (Weber, 2023). Não obstante as disputas
pela orientação das reformas, Deng defendeu a modernização institucio-
nal, mas persistindo o caminho socialista e da liderança do PCCh, como
expresso em 1979 em Uphold the Four Cardinal Principles (Xiaoping, 1995).
Sob Deng, a Constituição de 1982 representou novos parâme-
tros para as reformas políticas e a governança na China. A Assembleia
Nacional Popular, como seu poder legislativo central, e as Assembleias
Populares Locais em Vários Níveis (provincial, municipal, condados e
aldeias) passaram a desempenhar crescente papel legislativo, promul-
gando regulamentos detalhados sobre implementação de leis nacionais,
bem como criando sua própria legislação provincial (Cho 2006; Lin, 1992;
O’brien, 2009; Wang 2014 apud Huhe; Tang, 2017).
A Constituição também impulsionou a descentralização e o au-
togoverno em nível subnacional. Com efeito, o governo central dene
diretrizes e planos de longo prazo, cujo exemplo principal é o Plano
Quinquenal, abrindo espaço para inovação, ajuste e exibilidade institu-
cional multinível. A descentralização e a intergovernabilidade têm con-
formado redes institucionais (Yu, 2019), ampliando a participação e a ca-
pacidade decisória dos governos locais, ao passo que o Partido mantém
constantes mecanismos de avaliação e supervisão. Assim, o fortalecimen-
to provincial ampliou a formação de um sistema de freios e contrapesos
(check and balances) em termos de relações entre os poderes central e sub-
nacional, numa espécie de federalismo de fato (Zheng, 2006).
A 3ª, 4ª e 5ª Geração de Líderes (Jiang Zemin, Hu Minato e Xi
Jinping) têm, desde então, incrementado as reformas políticas e aprimo-
rado a governança de forma pragmática e gradual. É recorrente temas
relacionados ao fortalecimento da legalidade, das consultas públicas, da
democracia socialista e da construção de um estado de direito (Zemin,
2002; Jinping, 2014). Essa dinâmica institucional está relacionada a apren-
dizados relacionados à glasnost8 e ao colapso soviético, bem como a tra-
jetória dos Tigres Asiáticos e do mundo liberal-ocidental (Tsang, 2009),
combinando experimentação e avaliação criteriosa dos resultados em
busca de seu próprio caminho.
Um balanço dos últimos quatro Planos Quinquenais (11º, 12º, 13º
e 14º), evidencia um incremento nas diretrizes para a modernização ins-
titucional, com destaque para o papel do que denem como construção
socialista democrática e política. Nestes documentos, há uma ênfase no
aprimoramento do sistema de congresso popular e de cooperação mul-
tipartidária, bem como de consulta política liderado pelo PCC, com
8. A Glasnost foi uma das duas políticas
de reforma do governo Gorbachev. A
primeira tratava de reforma política e
segunda de reestruturação econômica.
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Diego Pautasso, Isis Paris Maia A construção instucional na China e sua dimensão consulva
destaque para as funções da Conferência Consultiva Política do Povo
Chinês (CCPPC) no cumprimento das suas funções de consulta políti-
ca, supervisão democrática e participação nos assuntos governamentais.
Trata-se do objetivo de expandir os canais de consulta para órgãos do
poder estatal, comitês da CCPPC, partidos políticos, organizações comu-
nitárias e movimentos sociais, fomentando mecanismos para eleições,
deliberações, acesso público à informação, relatórios de desempenho e
responsabilização dos funcionários a nível subnacional9.
Na mesma direção, foi publicado em 2005 o livro branco intitu-
lado Construção da Democracia Política na China. Suas linhas mestras
são a participação através de congressos, aldeias, comunidades e sindica-
tos; a autonomia das etnias em regiões autônomas; a cooperação multi-
partidária e a consulta política entre partidos e organizações sociais; e o
fortalecimento da democracia intrapartidária, judiciária e governamen-
tal (Chai, 2006). Em outro longo documento chamado China: Democracy
That Works10, lançado em 2021, o país traçou as linhas gerais de seu enten-
dimento sobre o tema, deixando claro o caráter universal da democracia
para defender seu valor histórico cuja evolução se dá no espaço e tempo.
Ou seja, tem sido uma preocupação do país a criação de procedimentos
institucionais bem coordenados e abrangentes para forjar canais demo-
cráticos diversos, abertos e bem organizados, numa complexa congura-
ção geográca (demográca e territorial). Als, na Declaração Conjunta
da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações
Internacionais11 de fevereiro de 2022, argumenta-se que “não existe um
modelo único, nem monopólio retórico ocidental baseado em ideologia
e “alianças de conveniência”, tampouco se restringe a impor o rito formal
das eleições em nível global por meio da força - não raro desconsiderando
diversidade civilizacional e autodeterminação.
Assim como no plano econômico, as singularidades históricas e ve-
locidade das transformações tornam complexas o entendimento da tra-
jetória institucional da China. Bell (2015) deniu o que chamou de “mo-
delo chinês” em três fundamentos: democracia na base, experimentação
no meio e meritocracia no topo. O primeiro remonta historicamente ao
autogoverno nas aldeias, reforçado por eleições e participação nos comitês
partidários locais. O segundo, é a experimentação entre os níveis local e
central de governo, a partir de sosticados mecanismos de descentraliza-
ção, intergovernabilidade e inovação política. Por m, a meritocracia se
baseia na seleção e promoção de quadros em função de desempenho e ava-
liação por superiores, colegas, subordinados e ainda com o público ao qual
trabalha (Bell, 2015). Anal, a reformulação da burocracia é crucial para a
melhoria da prestação de contas, ampliação da competição e a criação de
mecanismos de scalização e regulação do poder (Mahbubani, 2021).
As transformações institucionais têm sido impulsionadas pelo PCCh e
inclusive na dimica intrapartidária. O Partido, desde as reformas, tem de-
monstrado grande capacidade de adaptação às mudanças e demandas sociais,
um sosticado mecanismo de recrutamento das suas elites, buscando legiti-
midade e aderência às mudanças políticas (Li, 2021). Certamente não estar
submetida ao imediatismo do mercado eleitoral concorre para que o regime
consiga planejar a longo prazo os grandes temas nacionais (Naisbitt, 2010).
9. Ver a íntegra do 14º PQ disponível
em: https://www.fujian.gov.cn/english/
news/202108/t20210809_5665713.htm
10. Ver íntegra do documento em:
http://www.news.cn/english/
2021-12/04/c_1310351231.htm
11. Ver íntegra do documento em:
http://en.kremlin.ru/supplement/5770
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Em suma, há preocupações institucionais crescentes de combinar
liberdades e direitos com ordem e harmonia (Mahbubani, 2021). Trata-se
de uma construção institucional que tem, para além das formalidades le-
gais e ritos eleitorais, demonstrado a adaptabilidade política do sistema e
a capacidade de resposta às demandas e cenários de aceleradas mudanças
sociais. Como veremos na próxima seção, a dimensão consultiva das mu-
danças institucionais na China tem sido determinante da capacidade de
governança do sistema, bem como da ecácia e legitimidade das políticas.
4. Os mecanismos de consulta da política chinesa
Uma revisão de literatura sobre a temática da Democracia
Consultiva na China pela plataforma Capes Cafe indicou 51 artigos revi-
sados por pares com o termo em língua inglesa (Democracy Consultative
China). Destes artigos, apenas 22 foram classicados como de acordo com
a temática em questão (Quadro 1).
Quadro 1 - Revisão sobre Democracia Consultiva na China
Ano Autores Título
1955 Steiner, H. Arthur Constitutionalism in Communist China
2003 Pan, Wei Toward a Consultative Rule of Law Regime in China
2003 Diamond, Larry The Rule of Law as Transition to Democracy in China
2004 Cabestan, Jean-Pierre Is China Moving Towards “Enlightened” But Plutocratic Authoritarianism?
2007 Chan, Hon S. ; Suizhou, Edward Li Civil Service Law in the People’s Republic of China: A Return to Cadre Personnel Management
2008 Maréchal, J Chine brune ou Chine verte? Les dilemmes de l’État-Parti
2009 Tsang, Steve Consultative Leninism: China’s new political framework/Leninismo consultivo: o novo quadro político da China
2010 Stone, Richard Fresh Momentum for China’s Science Juggernaut/Novo impulso para o rolo compressor da ciência da China
2011 Xiaojun, Yan
Regime Inclusion and The Resilience Of Authoritarianism: The Local People’s Political Consultative Confe-
rence In Post-Mao Chinese Politics
2013 CHAI, H; SONG, H The adaptive state - understanding political reform in China
2014 Tan, Sor-hoon - Early Confucian Concept of “Yi” (议)and Deliberative Democracy
2015 Cheng; Fan Local Governments’ Consultative Budgetary Reforms in China: A Case Study of Wenling City
2015 Gangue, Chen From 17th to 18th Party Congress: Implications for Intra-Party Democracy Gang, Chen
2015 Yu, Bin Bounded Articulation: An Analysis of CPPCC Proposals, 2008–12
2018 Wang, Ray; Groot,, Gerry Who Represents? Xi Jinping’s Grand United Front Work, Legitimation, Participation and Consultative Democracy
2018 Thøgersen, Stig Politisk deltagelse under autoritær kontrol - ”Konsultativt demokrati” og overvåget offentlighed i Kina
2020 Xin-Yun, Hu,Mingming, Li Ecopolitical discourse: Authoritarianism or democracy? — Evidence from China
2021
Duan, Ying ; Zhang, Ying ; Wang,
Yi-Luo
Knowledge Mapping of Grassroots Consultative Democracy Research in China (2004-2020) – Bibliometric
Analysis Based on CNKI Database
2021
Zhang, Kaiping; He, Baogang;
Wu, Jinjin Double trouble? Effects of social conflict and foreign investment on consultative authoritarianism in China
2022 Tsang, Steve; Cheung, Olivia Has Xi Jinping made China’s political system more resilient and enduring?
Fonte: Elaboração dos autores
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Diego Pautasso, Isis Paris Maia A construção instucional na China e sua dimensão consulva
A obra de Steiner (1955) foi pioneira ao analisar a legislação do
PCCh logo após a revolução, especicamente o Programa Comum, a
Lei Orgânica do Governo Popular Central (CPG) e a Lei Orgânica da
Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC). Neste mo-
mento a revisão trouxe um lapso de 47 anos neste ltro - o que não quer
dizer que não foi tema de debate na própria China -, voltando após a
política de Reforma e Abertura e suas ações relacionadas ao desenvolvi-
mento institucional.
Tais transformações institucionais têm fomentado um debate sobre
sua natureza e a direção das reformas. Pan (2003) considerou a China um
regime de estado de direito consultivo”, enquanto Diamond (2003) subli-
nhou o aumento das ferramentas democráticas como forma de estabiliza-
ção política no país. Cabestan (2004) destacou a relação entre o processo
de democratização com as pressões dentro do próprio PCCh por “libera-
lização. Já Maréchal (2008) ressaltou o processo de democratização como
política do PCCh para enfrentar os desaos diante das constantes denún-
cias de corrupção que colocaram em xeque a legitimidade do regime.
Nessa direção, Chai, Song (2013) argumentam que mudanças ins-
titucionais são conduzidas pelo PCCh sem prejuízo às capacidades esta-
tais ao compartilhar poder tanto à sociedade civil quanto às instituições
representativas locais. Als, conforme Yu (2015), a própria democratiza-
ção está relacionada à gradual transformação dos procedimentos intra-
partidários em vários níveis, incluindo processos de votação e promoção
de quadros do PCCh. Inclusive, Tsang (2009) e Gueorguiev (2021) vão
considerar que a reformas de Deng, ao invés de abandonar o legado de
1949, molda o que chamou de “leninismo consultivo. Embora haja certo
consenso sobre a ampliação dos mecanismos consultivos, Tan (2014) deu
ênfase à inuência dos princípios confucionistas.
Os diversos estudos realizados sobre casos e experimentos con-
sultivos concretos sinalizam as transformações institucionais na China.
Cheng; Fan (2015) estudaram a ampliação da participação pública nas re-
formas orçamentárias. Já Hu e Mingming (2020), ao analisar três regiões,
observaram como as consultas têm feito com que as questões ambientais
sejam convertidas em propostas pelos deputados do Congresso Popular
e pelos membros da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês.
Outros autores, como Stone (2010) e Yu (2015), não obstante as diferenças
analíticas, reconhecem que o CCPPC tem papel importante na formula-
ção de políticas públicas.
As consultas têm se ampliado para diversos níveis administrativos e
segmentos sociais. Wang; Groot (2018) tratam do papel do Departamento
de Trabalho da Frente Unida como organizador de representação do nú-
mero crescente de forças sociais não partidárias. A proliferação de ca-
nais de consulta também tem se utilizado das novas ferramentas digitais,
como destacou Thøgersen (2018), ao lançar luz sobre a internet como es-
paço de críticas ao governo e, ao mesmo tempo, de mensuração das insa-
tisfações populares. O estudo de Zhang, He e Hu (2021), ao analisar 3.082
documentos de audiências públicas, mesmo destacando as diferenças re-
gionais, corrobora sobre o reforço das instituições consultivas. Mesmo
autores críticos à abolição do limite de mandato feita sob o governo de Xi
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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 11, n. 2, (jun. 2023), p. 38-52
Jinping, como Tsang e Cheung (2022), reconhecem seu papel ativo no que
diz respeito à participação popular. Fato é que os mecanismos consultivos
melhoram a governança e reforçam a liderança do PCCh, como destacou
Xiaojun (2011).
É inequívoco, de acordo com esta revisão, que as transformações
político-institucionais têm sosticado os processos intergovernamentais
e decisórios na China. Além disso, tem ocorrido uma ampliação dos me-
canismos consultivos e de participação pública, incluindo audiências pú-
blicas, orçamento participativo, coletas de opiniões online através de por-
tais governamentais, congressos populares, sistemas de eleição em nível
local, etc. (Huhe; Tang, 2007). Essa é uma das faces que revela a resiliência
e capacidade adaptativa do PCCh e do regime político chinês, incorpo-
rando opiniões, aumentando a eciência e legitimidade da gestão e, com
efeito, reduzindo os conitos sociais. Para Gueorguiev (2021), a participa-
ção e a consulta têm raízes mais fortes na revolução e no leninismo do
que em modelos ocidentais ou no passado chinês — mesmo que durante
o longo período imperial fosse recorrente descentralizar e delegar pode-
res para níveis inferiores.
Truex (2014) sumariza a literatura que demonstrou como os canais
de participação reforçam apoio ao regime. Em sua pesquisa empírica,
constatou “a satisfação com o regime, os sentimentos de receptividade do
governo e a vontade expressa de cumprir os regulamentos” através dos
canais de consulta e deliberação, com efeito ampliado de engajamento e
legitimação na população de menor instrução. Ao avaliar 393 casos de de-
liberações de base na China, Tong e He (2018) corroboram essa tendência
de fortalecimento dos mecanismos consultivos.
Aqueles que consideram um autoritarismo consultivo alegam que
a participação visa produzir apoio ao regime e capacidade de governo
(Zhang; He; Wu, 2021). Ora, a razão de ser das instituições estatais e seus
regimes é manter a ordem e consolidar o governo. Ressalte-se que inexiste
Estado sem assimetria, desigualdade, força e domínio e, portanto, a com-
binação de consentimento e coerção. E daí derivam conclusões equivo-
cadas ao supor que a China realiza “inclusões controladas” (Gueorguiev,
2021), revelando, no mínimo, completa ilusão sobre a política nas demo-
cracias liberais do Ocidente e sobre os constrangimentos que limitam as
possibilidades de votar, participar e constituir oposição política. Segundo
o mesmo autor, controle caracteriza o autoritarismo, mas não as demo-
cracias liberais, o que seria como supor que todos têm as mesmas possibi-
lidades de empreender no capitalismo.
o há dúvidas, contudo, que os processos políticos na China têm
envolvido um grande número de atores sociais. Entre os atores políti-
cos estão uma burocracia ministerial robusta; funcionários provinciais
e locais; um corpo crescente de grupos de pesquisa de políticas ociais,
grupos de reexão que alimentam as propostas diretamente no processo
político; interesses empresariais colocam mais pressão sobre as decisões;
uma vigorosa comunidade acadêmica e universitária; uma mídia diversa
que cada vez mais traz à luz questões de prevaricação ocial; e, por m,
uma voz cada vez mais bem informada de cidadãos que exigem mais
transparência e responsabilidade do governo (Dumbaugh; Martin, 2009).
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Diego Pautasso, Isis Paris Maia A construção instucional na China e sua dimensão consulva
Com isso, a combinação entre intergovernabilidade e consulta
permite ao governo central conhecer as preferências populares e as de-
mandas regionais, de modo a conciliar prioridades potencialmente con-
itantes dentro de vários segmentos em um país de grande dimensão
populacional e territorial, bem como diversidade social, étnica e regional
(Huhe; Tang, 2017). Assim, o governo central opta por deixar algumas
questões espinhosas ou desacordos para os governos provinciais para que
seja experimentada em escala local.
O aprofundamento dos canais consultivos ampliou a capacidade
de detecção de insatisfações e aprimorou a formulação de políticas. Isso
reduz o custo de debelar oposições e a necessidade de coerção, ao passo
que constrói consentimentos e reduz o risco de desestabilização (Tsang,
2009). E, mais recentemente, o crescimento de canais digitais abriu novas
oportunidades para a expressão de opiniões, interesses e até críticas ne-
gativas ao Estado, o que ajuda a evitar que as tensões se congreguem em
ações coletivas (Yu, 2015).
Nessa direção, no relatório do 19º Congresso Nacional do PCCh12,
Xi Jinping enfatizou o papel da democracia consultiva para a “cultura polí-
tica inclusiva” e o “aprendizado mútuo” e a “busca de um terreno comum”
de desenvolvimento. O fortalecimento da liderança de Xi coincide com o
aprofundamento da reforma política iniciada por Deng e fortalece a cons-
trução da institucionalidade na China e seus mecanismos consultivos.
5. Conclusões Finais
As políticas que suportam o desenfreado processo de desenvolvi-
mento da China, bem como seus desaos e contradições, estão entrela-
çadas a complexos e dimicas transformações de seus arranjos institu-
cionais. Ora, se as instituições importam, não há como entender legiti-
midade e a eciência lograda pelo PCCh e pelo regime, supondo proces-
sos decisórios discricionários e centralizados. Não se pode subestimar
que o Império Chinês, surgido no mesmo contexto do Romano, possui
continuidade civilizacional e, por óbvio, engloba lições institucionais
e política — apesar do etnocentrismo que subestima ou desconsidera
a trajetória dos países à margem do núcleo liberal-ocidental. Als, em
perspectiva histórica de longa duração, o excesso de autoconança de
tais países pode trair seu entendimento sobre seus sistemas sócio-polí-
ticos e sobre o mundo.
É inequívoco o fortalecimento dos mecanismos consultivos na
China, desenvolvidos, como a modernização institucional, combinando
experimentalismo e gradualismo. Não há dúvida também do papel de tais
mecanismos na maneira como as políticas públicas na China têm logrado
ecácia e legitimidade, bem como na capacidade responsiva do governo
num quadro geogracamente (territorial e demogracamente) comple-
xo. As controvérsias, por seu turno, decorrem de incongruências teóri-
cas relacionadas à confusão entre conteúdo (quem governa) e a forma de
Estado (como governa) e o consequente domínio das concepções liberais.
É óbvio que tais reformas institucionais visam garantir a liderança do
PCCh e, um modelo capaz de produzir desenvolvimento, legitimidade,
12. Ver reportagem da China Today,
disponível em: http://www.chinatoday.
com.cn/ctenglish/2018/zdtj/201803/
t20180301_800118954.html
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participação e estabilidade - tarefa nada trivial diante da velocidade das
transformações e dos desaos que o país tem enfrentado.
O fato é que replicar esquemas teóricos eurocêntricos e se aferrar
a convicções políticas e a classicações birias pouco auxilia para com-
preender a trajetória e a direção da construção institucional na China.
Ao contrário, é imperativo buscar decifrar esse enigma institucional e
político do país que se alça à condição de superpotência no século XXI
- justamente no momento em que as construções democráticas no mun-
do liberal-ocidental se apresentam frágeis. Trata-se de uma transição sis-
têmica que, para além da rivalidade sino-estadunidense, traz profundas
mudanças civilizacionais, tecnológicas e também político-institucionais.
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