Referindo-se ao ato com o qual o homem dispõe definitivamente de si mesmo, a palavra suicídio (do latim: sui + caedes = a morte de si) é, de certa forma, recente. Ao que tudo indica, o termo aparece apenas no ano de 1737, alcunhado pelo abade Desfontaines (1684-1745) ao escrever um dos artigos para a Grande Enciclopédia. A partir dessa época, o termo ganha fama e passa a traduzir, quase que indiscriminada e universalmente, toda ideia de autoextermínio, também com relação ao pensamento antigo e medieval. Assim, "apoktinnúnai eauton", "eauton diaftheíranti", "mors voluntaria", "seipsum necat"; "seipsum occidere" etc passam a significar suicídio quase com o mesmo peso semântico da época iluminista, era da crianção de "direitos", período em que o termo foi criado. Isso evidencia o quanto é ambíguo falar de suicídio também in litteris e na compreensão do próprio ato em si mesmo. Semelhante ambiguidade é que provocou à Sapere aude a construção do presente dossiê: Filosofia e suicídio.
O mundo contemporâneo, marcado pelo negacionismo e pela desinformação, representa um desafio para a ideia de verdade baseada em fatos. Isso porque o negacionismo fortalece o discurso de que as evidências ou os fatos não importam. O termo cunhado para indicar esse cenário de aniquilamento da verdade e dos fatos é “pós-verdade”. Assim, a pós-verdade aponta para um contexto em que os fatos não são mais levados em consideração para a análise da verdade de determinada informação. Inclusive, os fatos podem ser obscurecidos, selecionados e apresentados de modo a favorecer certa interpretação do que seja a verdade. Por isso, a manipulação dos fatos tem sido instrumento de grupos políticos com interesses ideológicos para direcionar o modo como as pessoas pensam e votam. Nesse sentido, existe uma tentativa de subordinar a verdade à ideologia política, de modo que os sentimentos passam a ter mais peso do que as evidências no processo de formação do conhecimento. Esse tipo de comportamento representa um risco à democracia
Essa EDIÇÃO ESPECIAL, com o dossiê LUZES, preparado pela Associação Brasileira de Estudos do Século XVIII (ABES XVIII), se estabelece como frutuosa parceria da revista de filosofia da PUC Minas, Sapere aude, com a produção e discussão filosóficas no Brasil. Os textos aqui reunidos agregam o amplo espectro de investigação da Associação, que vai desde o final do século XVI até o XIX. A diversidade de temas e autores aponta para a riqueza dessa área de pesquisa e expressa, decerto, os resultados expressivos das recentes produções acadêmicas, no contexto dos Programas de Pós-graduação do país. É, sem dúvida, uma alegria poder trazer à luz essa edição justamente na Revista que se intitula “Sapere Aude”, lema máximo das Luzes alemãs, mas que reverberam nas demais territorialidades.
É essencial falar, discutir, debater e refletir sobre essa dialogia entre a Filosofia, Literatura e novas linguagens, nessa segunda metade do século XXI, particularmente, quando se abre a um horizonte de expectativas em torno de relações entre o saber filosófico, o saber literário e as linguagens “novas(?)”. Pensar essas relações do lugar da Filosofia (esfera de Saber) nos põe em estado de alerta para refletir com cuidado também sobre acontecimentos linguageiros em torno da IA (Inteligência Artificial) que se apresentam como linguagem trans-fantástica.
O incômodo representado pela democracia pode ser percebido no aumento cada vez mais expressivo pelas lutas em torno das questões de gênero, pelo avanço das pautas feministas e o desvelamento de um protagonismo das mulheres encoberto por uma história contada a partir de um passado de exclusão, pela reação enérgica de parcelas significativas da população contra ataques racistas etc., mesmo que as leis muitas vezes tenham dificuldade de traduzir na prática essas reações ao ódio que aparecem em várias situações cotidianas. Se não estamos no melhor dos mundos possíveis, o lugar do incômodo existe e ainda funciona como uma clareira aberta no meio de tanta ignorância, tanto desprezo pela busca da verdade e tanta naturalização da violência.
Na Filosofia, a passagem de uma maneira de refletir a outra está carregada de incertezas e inexatidões. Na categoria dos conceitos, as mudanças deveriam nos impelir a um constante reexame dos delineamentos e modos de perceber a realidade. Em uma grande profusão de situações conflitivas no mundo, hoje se travam lutas entre as tradições, do mesmo modo que lutas entre as tradições e as tendências transformadoras e propositivas das mudanças. Menosprezar ou desconsiderar integralmente as heranças formuladas pela tradição firma-se como um comportamento audacioso que conduz a enormes erros e a embates inigualáveis. Por outro lado, pode-se também desprezar as tendências transformadoras. Confrontar esses pontos de vista disjuntivos por meio de reflexões nos conduz a aproveitar o melhor, tanto das heranças deixadas pelo pensamento universal, quanto das tendências transformadoras para os nossos tempos.
Dentre as inflexões do espírito humano, destacam-se duas ocupações de grande valor que se apropriam da pauta humana de todos os tempos: existência e liberdade. A despeito de qualquer obviedade, é preciso perguntar: existência e liberdade são compatíveis? São concomitantes? Liberdade sugere escolha, coisa que fazemos todos os dias da nossa vida, mas escolhemos o nosso existir? Ou seremos livres independentemente das nossas escolhas? Considere-se que o ato humano de refletir parte de um ponto de vista (e parece não poder ser diferente); mas se ele advém de alguma perspectiva, de alguma anterioridade, esse ato será ainda livre? Antes do ato não haverá o existir da sua possibilidade? Mas é razoável falar de uma existência possível, de uma existência antes da própria existência?
Em nosso presente momento, em que uma grande pandemia assola o mundo, é preciso que estejamos atentos às contribuições que a Filosofia pode dar à área da saúde, assim como as diversas áreas da saúde podem dar à Filosofia. É fato bastante conhecido que a Filosofia desde o seu início se debruçou sobre diversos temas, inclusive o tema da saúde, a partir da própria compreensão da natureza. O ser humano como ser-lançado-no-mundo (para usarmos a expressão de Heidegger) sempre se colocou diante da natureza com uma atitude ambivalente. Por um lado uma atitude de temor, espanto, e por outro lado com uma atitude de admiração e dependência. Esse caráter ambivalente da relação do homem com o mundo vai desenvolver-se em reflexões que ora destacarão o primeiro sentimento, ora destacarão o segundo sentimento.
A Sapere Aude dedica seu dossiê à Idade Média, nos longos e intensos séculos de construção de saberes, de arquiteturas conceituais e de medos diante do muito que ainda se desconhecia. De fato, a Idade Média não pode ser associada apenas à chamada peste negra e demais obscuridades — ao contrário, a Idade Média, como qualquer outro tempo da História feita pelas criaturas humanas, combina luz e sombra e, nem sempre, com o devido equilíbrio entre os matizes. Carregam-se as tintas, o que resulta em males de todas as cores. Os medievais foram iniciadores de diversas e riquíssimas discussões. Ousaram saber, ainda que em seu horizonte de compreensão não tenham podido contar com tecnologias e meios digitais para divulgação de suas pesquisas. Mas, como escreveu Horácio em sua Epistuale I “dimidium facti qui coepit habet: sapere aude” (quem começou já fez a metade: ousa saber). Os medievais começaram!
SAPERE AUDE - ISSN: 2177-6342 - PUC Minas - Belo Horizonte (MG)
Uma parte significativa da história do Ocidente foi edificada sobre cadáveres. Mas como a vida humana associada está alicerçada em crenças e valores, as sociedades sempre encontraram alguma forma de justificativa moral para a barbárie, e isso nos coloca um problema interessante que é a necessidade de pensar que nem toda a violência que experimentamos na história é feita por seres humanos despidos de qualquer senso moral ou movidos por distúrbios de ordem mental. [...] O necropoder decide quem tem o direito de viver, porque tem valor de mercado, e quem se pode matar ou deixar morrer porque a vida não tem um valor em si mesma, mas só pode ser valorada dentro de um certo jogo de relações em que alguns não podem jogar porque são meros joguetes, simples instrumentos de interesses que muitas vezes nem conseguem compreender
Nosso mundo hodierno se deixa exprimir e entender em múltiplas linguagens. A articulação do sentido que se dá na compreensão do mundo e na sua interpretação é linguagem. Hoje já se fala até em linguagens de máquinas! E há aquelas que nada comunicam, mas causam estrago. Há linguagens fake, há outras de tribos contemporâneas. Há muitas linguagens: fechadas, dogmáticas, outras relativistas e fragmentadas. Estaríamos próximos ao mito bíblico-teológico da torre de babel? Há a hipótese de que, diante das múltiplas linguagens, é-se tentado a anular a diferença e a legitimidade do outro. Por isso, o presente dossiê abre discussões para profícuo debate entre Linguagens, intolerância e dialogia.
Sapere aude – v. 10, n. 19, p. 7-9, jan./jun. 2019 – ISSN: 2177-6342
O lançamento e sucesso editorial de As Palavras e as Coisas em 1966 marcou a emergência no cenário filosófico do século XX de um de seus principais personagens: Michel Foucault. Inquieto, transgressivo e questionador, Foucault conquistará a partir deste momento um amplo público pelo mundo afora com suas análises desconcertantes, seu estilo envolvente e sua intensa militância. Tendo como mote a análise das condições teóricas de surgimento das ciências humanas, As Palavras e as Coisas são muito mais do que isso. A obra representa uma das mais bem-sucedidas cartografias do pensamento e da própria experiência da modernidade. Sua famosa conclusão – a morte do homem – tornou-se centro de um debate contínuo do qual talvez ainda sejamos tributários. O presente dossiê da Revista Sapere Aude é dedicado a essa obra decisiva de Michel Foucault.
É realmente com grande prazer que apresentamos mais um dossiê e, desta vez, como tema Epistemologia feminista. Sabe-se como a ciência moderna passou a se construir sobre bases de experiências específicas e situacionais, a filosofia não podendo se furtar a ampliar suas perspectivas epistemológicas nesse sentido. Não se trata apenas de recepcionar o reino da doxa em detrimento ao da episteme, mas de trazer para o próprio campo epistemológico uma maior amplitude cognitiva, que aborda a dimensão corpórea, sensitiva, e, pois, novas certezas e evidências. Nesse propósito também se questiona tudo o que gira ao redor da construção de um sujeito racional, universal e capaz de conhecimento objetivo, o qual ora se vê face a face com um novo espaço cultural – isto é, um espaço de recepção ao âmbito privado, pleno de relações paradoxais, sem quais quer veios de neutralidade e, pois, receptivo às vozes de um feminino heterogêneo que ressoa ao longo da cultura.
Um dossiê sobre Paul Ricoeur não é de modo algum tranquilo, mas traz em si a simbologia do conflito e de suas bases interpretativas. Este apresenta, em composição múltipla, várias perspectivas interpretativas, oferecendo ao leitor de Sapere Aude as “intenções filosóficas” de Ricoeur, assim homenageado nos 100 anos de seu nascimento. O que os vários autores, que aqui discutem o pensamento de Paul Ricoeur, nos fazem perceber, além da complexidade e profundidade das investigações do filósofo, é a necessidade de se descentrar a reflexão, dela exigindo novas formas de pensar um sentido que ultrapasse as razões da razão, reconhecendo assim a dimensão real de seus limites.
Ainda ecoam atuais as palavras de Aristóteles no início da Metafísica “todos os homens por natureza tendem ao saber”. Porém, mais desafiadora é a expressão do Filósofo de Koenigsberg, a qual remonta a Horácio, “Sapere Aude”. Tais expressões, ao nosso ver, constituem momentos intemporais da verdade que buscamos; intemporais no sentido de que perpassam os tempos e continuam desafiando a inteligência humana. Mas há ainda lugar para a filosofia? Ou antes, a filosofia já teve lugar efetivo na história da humanidade? Já passou da hora de não apenas declarar o seu fim – como de resto já foi feito –, mas também de conformar-se com a cultura dos tempos hodiernos, com a cultura técnica, com o pragmatismo? São questionamentos a que não se pode responder aqui. De qualquer forma queremos reafirmar a permanência do filosofar!