estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v.6 n.3 (2018), p.134 - 138
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RESENHA
Post-truth: how bullshit
conquered the world
James Ball
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2018v6.n3.p134
Sofia José Santos
1
Recebido em: 15 de janeiro de 2018
Aprovado em: 22 de fevereiro de 2018
Se é fácil identicar a realidade da pós-verdade, mais difícil tem
sido compreender o que, do ponto de vista estrutural e conjuntural, lhe
dá forma e permite a sua criação e reprodução com evidente pujança, con-
sentimento e impunidade. É este o repto que James Ball, um premiado
jornalista de dados com trabalhos na área do jornalismo de investigação
no The Guardian, na plataforma ICIJ, no Bureau of Investigative Journalism,
entre outros, tenta dar resposta com este seu livro Post-Truth: How bullshit
conquered the world, publicado em 2017.
Num registo jornalístico e de escrita ritmada, com inúmeros exem-
plos e histórias, cruzamento de dados e fontes diversicadas, James Ball
propõe-se descortinar o lado processual que gera e reproduz a era da pós-
-verdade tentando responder à pergunta: se os políticos não se tornaram
mais falsos, os media não caram mais propensos a mentir e o público
não cou mais estúpido ou distraído, o que explica, então, o início e a
potencial perpetuação desta nova era?
O ponto de entrada do autor é a proposição de que 2016 foi um ano
de profundas mudanças em termos de discurso e comunicação estratégi-
ca em contexto de combate político - eleitoral ou de rotina democrática.
Se a construção de narrativas para inuenciar a opinião pública sempre
foi uma prática política comum e se as “notícias falsas” e as “não-verda-
des” têm precedentes disseminados no tempo e no espaço, a convergência
destas duas dimicas na comunicação estratégica das campanhas para
as eleições presidenciais norte-americanas e para o apoio ou oposição ao
Brexit no Reino Unido foi inédita. O recurso às “notícias falsas” e aos reto-
ricamente sosticados “factos alternativos” ultrapassou a linha que limita
o desviante, deixando a marginalidade que até então ocupavam, entran-
do na normalidade pela mão de líderes políticos de democracias maduras
(e não pela de pessoas anónimas ou jornalistas duvidosos, como se podia
supor), e sendo legitimado, em muitos casos, por meios de comunicação
social de renome, com códigos de ética e conduta convencionados e com
autoridade informativa reconhecida.
1. Professora Auxiliar Convidada na
Faculdade de Economia e Investiga-
dora do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra. É também
Investigadora Associada no OBSERVA-
RE, Universidade Autónoma de Lisboa,
e no Promundo-Portugal. É doutorada e
mestre em Política Internacional e Re-
solução de Conflitos pela Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra.
Coimbra/Portugal
ORCID: 0000-0001-9300-7452
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Numa tentativa de categorizar esta reformulação comunicativa do
mundo político ocidental, muitos autores arriscaram cunhar esta onda
disruptiva como era da “Pós-verdade”, termo que Ball subscreve. Para o
autor, no centro desta era não estão as “notícias falsas”, as mentiras ou as
inverdades, como é comumente entendido. Segundo Ball, este lado mais
visível e episódico da era da pós-verdade é apenas um sintoma ou ponta
do iceberg de algo mais profundo e preocupante. Para o autor, o ingre-
diente central da dinâmica e do sistema da pós-verdade é o logro, ou na
muito mais expressiva expressão de língua inglesa, o “bullshit”.
Esta diferenciação conceptual prende-se com uma estratégia analí-
tica que é central para a compreensão da obra e do seu argumento. Ball
elenca duas razões que justicam esta escolha. A primeira tem a ver com
a riqueza conceptual do termo face à realidade da pós-verdade que quer
descrever. Assumindo a denição generalista de bullshit – sem nunca a
explicitar, mas sabendo que traduz um discurso estúpido, falso ou mes-
mo absurdo e que é transmitido como verdade–, Ball entende tratar-se
do termo que consegue de forma mais bem sucedida cobrir as diferentes
nuances da realidade da pós-verdade, nomeadamente declarações falsas,
meias verdades e outras mentiras ultrajantes. Com esta escolha concep-
tual, Ball consegue agrupar e sistematizar metodologia e resultados.
A segunda razão prende-se com a existência do conceito de bull-
shit tal como denido por Harry Frankfurt no seu livro “On Bullshit” de
2005, onde este autor explora a diferença entre mentira e bullshit e, por
conseguinte, entre mentirosos e bullshitters. É com esta denição que Ball
consegue completar o puzzle analítico juntando à metodologia e ao re-
sultado o processo e a intenção. Ball é claro: para dizer uma mentira, pre-
cisamos de nos preocupar com alguma forma (e autoridade) absoluta de
verdade ou de falsidade. Quem mente e quem diz a verdade está a jogar o
mesmo jogo, ainda que em lados opostos. Ou seja, quem quiser apresen-
tar ou esconder factos assume que existem factos suscetíveis de serem de-
terminados e conhecidos. O interesse em dizer a verdade ou uma mentira
pressupõe que há uma diferença reconhecida entre fazer as coisas erradas
e fazer as coisas certas. Neste sentido, cada um responde aos factos, ainda
que a resposta de um seja guiada pela autoridade da verdade enquanto a
resposta do outro desaa essa autoridade. Porém, para Frankfurt e Ball,
ainda que mais próximo de quem diz mentiras do que de quem diz ver-
dades, o bullshitter ignora essa diferenciação e diz apenas e só o que fun-
ciona para conseguir o resultado que quer - é essa a sua autoridade - sem
se preocupar se é verdade ou mentira. Neste sentido, o bullshitter é um
inimigo da verdade muito maior do que o mentiroso. Ora, para os dois
autores, a vida pública - que Ball cola à era da pós-verdade - é gerida essen-
cialmente por pessoas que não se preocupam com verdade ou mentira,
mas sim com a narrativa que garanta o sucesso do seu objetivo.
Os bullshitters são o ímpeto da existência da pós-verdade, mas não
garantem por si só a sua existência. Esta é construída e alimentada por
um ecossistema que voluntaria ou involuntariamente alimenta o bullshit
e perpetua de forma confortável e impune a pós-verdade. É esse o argu-
mento principal de James Ball: há um ecossistema emergente, cada vez
mais robusto e dominante, que desvaloriza a verdade e que abala de dia
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para dia a sde das democracias. Como em todos os ecossistemas, o que
fabrica a era da pós-verdade é um todo composto por elementos interde-
pendentes organizados segundo regras, uxos e trocas.
Ao desenhar o tabuleiro do jogo do bullshit, Ball começa pelos ato-
res políticos. Perante uma espiral de descrédito que criou apatia no elei-
torado e o aumento da abstenção, as classes políticas tentam assegurar
o número suciente dos seus apoiantes para garantir a vitória, apresen-
tando, de todas as formas possíveis, o seu rival como uma ameaça aos
elementos fundamentais do seu eleitorado e sugerindo que a eleição a de-
correr é a derradeira possibilidade de os salvar. Do seu lado, os media, ao
manterem-se obedientes ao cânone do jornalismo e do mercado liberal,
seguem a notícia privilegiando as fontes institucionais e os protagonistas
políticos da notícia, reproduzindo, assim, o bullshit que circula no com-
bate político de hoje. Sendo notícia, essa informação irradia pelas casas,
cafés, ruas e redes sociais, dando origem a uma multiplicidade de publi-
cações, reações e novas notícias. O público, estando (na sua grande gene-
ralidade) mal-informado sobre os temas que integram o debate político
atual cam mais permeáveis às notícias falsas, reproduzindo-as amiúde
de forma acrítica. Porém, para Ball, o público não é uma entidade passiva
e apenas vítima da maledicência e dos erros dos outros. Segundo o autor,
tal como se escolhe em quem se vota, também se escolhe o que se vê, lê,
ouve e partilha. A lei da oferta e da procura robustece aqui o argumento:
o público/eleitor recebe os media que pede e, portanto, que merece. De-
pois da identicação das partes, Ball dá coerência ao ecossistema quando
identica a economia política dos media e a psicologia dos consumidores/
eleitores no atual contexto digital, vendo-os como uxos cruciais na en-
grenagem. Se, por um lado, o modelo de negócio dos media está cada vez
mais dependente de receitas publicitárias calculadas apenas com base nas
entradas de utilizadores nas suas páginas web e não na sua qualidade in-
formativa; por outro, à semelhança de outras lógicas de grupo, o ambien-
te das redes sociais potencia necessidades de pertença e aceitação que, por
sua vez, promovem a criação de câmaras de reverberação, o que facilita
a partilha de notícias anedóticas e/ou absurdas, particularmente quando
estas se dirigem contra um adversário comum. Em suma, o bullshit reve-
la-se lucrativo a três níveis: do ponto de vista nanceiro, para os media;
do ponto de vista psicológico para o consumidor/eleitor/utilizador; do
ponto de vista político, para os políticos. Por tudo isso, Ball antevê que a
saída desta nova era será morosa e difícil e exige uma participação ativa e
em várias frentes de todos os envolvidos.
Para desenvolver o seu argumento, Ball divide o livro em quatro
partes, cada uma com vários capítulos repletos de histórias reais, exem-
plicativas, acompanhadas de hiperligações que atestam a veracidade das
diferentes narrativas e contra-narrativas, facilitando a compreensão do
alcance e da rapidez dos processos em causa, assim como o caráter sisté-
mico da era da pós-verdade.
Na primeira parte, intitulada “O poder do bullshit”,
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Ball apresen-
ta em cada capítulo um dos dois casos que considera simultaneamente
inaugurais e exemplicativos da era da pós-verdade. No primeiro capí-
tulo, fala da eleição de Donald Trump para 45º Presidente dos EUA e,
2. Em inglês: “The power of bullshit”.
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no segundo, do referendo sobre o Brexit no Reino Unido, sublinhando a
atualidade e premência do livro e lançando os dados para as três partes
seguintes desta obra - as duas primeiras mais analítico-argumentativas
e a última essencialmente prescritiva. Na linha analítico-argumentativa,
a segunda parte - “Quem é que a está a espalhar?”-
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identica os atores
que desempenham um papel-chave na criação e divulgação do bullshit,
explorando as especicidades e interações de cada um deles e que ali-
mentam a teia da pós-verdade. Para cada ator, um capítulo - e por esta
ordem: “políticos”; “velhos media”; “novos media”; “falsos media”; “me-
dia sociais”; “… E você.
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Na terceira parte, James Ball concentra-se na
parte processual (e central) do seu argumento, explicando “Porque é que
o bullshit f unciona”,
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ideia que desenvolve em dois capítulos: o primeiro
onde esclarece “Porque caímos nela”
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e “Porque é lucrativa.
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Finalmente,
e na linha prescritiva, a quarta parte, intitulada “Como parar o bullshit”,
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apresenta logo no primeiro capítulo - “Desmascarando os mascarados” -
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potencialidades e limites de possíveis soluções, nomeadamente a criação
de websites dedicados a conrmar os supostos factos que circulam nas no-
tícias drias (como é o conhecido politifact). No segundo capítulo, o autor
é mais assertivo e direto, ainda que com algum toque de humor, fazendo
recomendações especicamente direcionadas a três grupos: políticos/de-
cisores políticos, media/jornalistas e leitores/eleitores.
Dirigindo-se a um público generalista, Post-Truth: How bullshit con-
quered the world descreve e problematiza de uma forma particularmente
rica e acessível a complexa dimica do bullshit, especialmente evidente
na comunicação política ocidental desde 2016. A inclusão direta do lei-
tor como co-responsável pelo bulshit é um passo arrojado que o desaa
a deixar o lugar de espectador e a envolver-se e rever-se diretamente na
problemática.
Há, porém, dois aspectos argumentativo-analíticos que considero
menos bem conseguidos no livro. O autor parte da ideia da ruptura, da
novidade, da entrada numa nova era - a da pós-verdade – no âmbito da
qual a ideia de bullshit é central, explicando esta novidade com argumen-
tos fundamentalmente assentes na política económica dos media e na
psicologia da era digital. Ora, a diferenciação central que Ball faz entre
bullshitter e mentiroso assenta numa avaliação psicogica e de um pro-
cesso de intenções que o autor não determina de que forma é suscetível
de diferenciar. Ou seja, podemos compreender a ideia de bullshit como
um termo mais abrangente que integra expressões diversas do mesmo
fenómeno e como uma prática que conquistou uma dimica relevante
na atual vida política; mas não como algo denido essencialmente por
oposição à mentira. Por outro lado, os argumentos que Ball invoca para
explicar o nascimento da era da pós-verdade existem desde muito antes
de 2016 e, por isso, podem ajudar a explicar parte do fenómeno mas não
a sua inteira complexidade ou novidade. Do mesmo modo, Ball atribui
um papel inaugural ou despoletador à eleição de Trump e ao referendo
ao Brexit, mas a verdade é que nenhum destes casos alterou fundamen-
talmente o que já existia, do ponto de vista da economia política dos me-
dia ou do funcionamento psicogico dos utilizadores das redes sociais.
Tanto num caso como no outro podem ter acrescentado intensidade ou
3. Em inglês, “Who’s spreading it?”.
4. Em inglês: “Politicians”; “Old Media”;
“New Media”; “Fake Media”; “Social
Media”; “...And you”.
5. Em inglês: “Why bullshit works”
6. Em inglês, “Why we fall for it”.
7. Em inglês: “Why it’s profitable”.
8. Em inglês: “How to stop bullshit”
9. Em inglês: “Debunking the de-
bunkers”.
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escala, mas não inauguraram algo de fundamentalmente distinto. A ideia
de entrar numa nova era deve implicar uma mudança estrutural e radical
que Ball não explica na sua totalidade e complexidade. Nesse sentido, - e
utilizando a própria lógica argumentativa de Ball - à semelhança das fake
news, também a eleição de Trump e o Brexit não serão mais do que sinto-
mas de dimicas políticas e sociais mais profundas que carecem de ser
analisadas na sua especicidade e continuidade.
Neste sentido, acompanhar/complementar as alterações regista-
das na comunicação política por análises culturais, socioeconómicas e
securitárias que permitam correlacionar as novas estratégias e proces-
sos comunicativos com o ambiente que espelham e que (re)produzem
é um desao que o livro acaba por deixar. A necessidade da (re)pro-
blematização do potencial emancipador e simultaneamente controlador
das narrativas e da tecnologia, assim como da identidade e alcance dos
(“novos) gatek eepers na era digital da pós-verdade são outras duas
pistas que o livro de James Ball nos deixa para investigar.
Referências
BALL, James. Post-Truth: How bullshit conquered the world, London, Biteback Publishing,
2017.