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estudos internacionais • Belo Horizonte, ISSN 2317-773X, v. 10, n. 2, (jun. 2022), p. 136-140
Percursos Diplomáticos, Sociais e
Literários: as Contribuições Intelectuais de
Guimarães Rosa
Murilo Vilarinho1
DOI: 10.5752/P.2317-773X.2022v10.n2.p136
Recebido em: 24 de outubro de 2021
Aprovado em: 02 de maio de 2022
A obra Guimarães Rosa: diplomata foi publicada, primeiramente, em
1987, quando do vigésimo aniversário de morte de Guimarães Rosa (1908-
1967), momento em que foi homenageado pelo Ministério das Relações
Exteriores (MRE) e pela Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), já
que havia sido um singular diplomata brasileiro. O livro, em sua terceira
edição revisada, foi idealizado e escrito pela embaixadora Heloísa Vilhena
de Arjo, diplomata brasileira, quem estudou, em profundidade, o pen-
samento literário e diplomático de Guimarães Rosa, fruto de tese douto-
ral sobre o assunto no Kings College de Londres, bem como de pesquisa
e alise de documentos sobre o diplomata, nos arquivos do Itamaraty.
Em Guimarães Rosa: diplomata, a embaixadora Heloísa Vilhena de
Arjo, especialista em Guimarães Rosa, apresenta ao leitor um livro que
não se concentra apenas na trama literária e poética do romancista de
Grande Sertão: Veredas, mas também no seu fazer diplomático, quase pla-
tônico, quando esteve à frente da Casa Barão do Rio Branco, a serviço da
República Federativa do Brasil. Sobre o signicado da expressão “ platô-
nico, Arjo (2020, p.12) comenta:
Assim, não excluindo interpretações possíveis de outros pontos de vista, a
interpretação “platônica”, em sentido lato, da vida e da obra de Guimarães Rosa
permitiu, em vista do material pesquisado, esclarecer maior número de áreas de
sua personalidade, fornecendo, ao mesmo tempo, um arcabouço que sustenta e
integra a atividade multifacetada do autor, em vários níveis de sua existência.
No que se refere à carreira diplomática, nota-se que é assunto que
ganha destaque nessa obra, já que, segundo a autora, é aspecto pouco
estudado no trato ao conhecimento de Guimarães Rosa. Nesta terceira
edição, a embaixadora, além de ater-se ao Acordo Ortográco da Língua
Portuguesa de 1990, também inseriu um caderno de fotograas do diplo-
mata e escritor, algo não presente nas edições anteriores.
No que concerne ao livro, ele foi lançado na Coleção História Diplo-
mática da FUNAG, contando com oito partes (capítulos), distribuídos em
268 páginas, nas quais se é contada a trajetória do literato em termos de
atividade diplomática e, também, literário-intelectual. Ele é redigido em
terceira pessoa do singular, cujo foco recai sobre a gura de Guimarães
1. É politólogo pela PUC-GO. Atualmen-
te, é docente da Faculdade de Ciências
e Tecnologia, da Universidade Federal
de Goiás. Pesquisa os temas relações
internacionais, ética, direitos humanos,
movimentos sociais e indústria 4.0.
E-mail: murilochv@yahoo.com.br.
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Rosa. Em termos de estrutura, o livro é dividido em Agradecimentos, em
que se tece uma breve apresentação que remonta ao ano de 1987, quan-
do foi publicado, pela primeira vez, em Brasília. Nesse sentido, a autora
embaixadora Heloísa Vilhena de Araújo conservou, portanto, a seção ori-
ginal. Nela, dentre as várias considerações, destaca-se o agradecimento
feito ao embaixador Marcos Azambuja, quem, naquela época, presidiu
a FUNAG, e solicitou à embaixadora um trabalho sobre o escritor, para
fazer parte do projeto de recuperação da memória do MRE.
As demais partes que conformam o livro são distribuídas da se-
guinte forma: Parte I Introdução, Parte II Filologia e hermeutica, Parte
III Eternidade e história, Parte IV Justiça e direito, Parte V Formação e técni-
ca, Parte VI Construção e crítica, Parte VII O diplomata e o homem, Parte
VIII Conclusão: nacional e internacional, Bibliograa e Anexos. No que se
referem aos anexos, podem ser descritos os seguintes títulos, que são ver-
dadeiros documentos sobre a atuação diplomática de Guimarães Rosa:
Memorandum para o embaixador do Brasil em Berlim, Relatório da visita ao
Centre dessai d’alesmes, Nota nº 92, de 25 de março de 1966 da Embaixada do
Brasil em Assunção, Relatório político da Embaixada em Paris, Memorandum
sobre correção linguística, Notas para o programa do concurso de provas do IRBr,
Memorandum da Divisão do Orçamento e da Secretaria do IRBr, Troca de cor-
respondência com Jorge Kirchhofer Cabral. Por m, há um Caderno de fotos
inserido pela embaixadora, ao nal, desta nova edição.
Na Parte I Introdução, sãos feitas breves considerações sobre Gui-
marães Rosa, considerando-se o aniversário de sua morte, àquela épo-
ca, ano de 1987. Tais notas falam sobre sua literatura que, apesar de bas-
tante estudada, ainda há muito a ser explorada. Além disso, a redação
e atuação diplomática de Guimarães Rosa são indicadas como perspec-
tivas que precisam ser mais exploradas pela intelectualidade, pois care-
cem de investigação e de reexões responsáveis. Nessa primeira parte, a
autora descreve como foi a abordagem dos documentos, para produzir
o livro, que foi encomendado pelo embaixador Marcos Azambuja. Ela
sublinha que, ao fazer a leitura sobre o material documental, percebeu,
em Guimarães Rosa, o homem justo em atitudes, conforme consta do
pensamento platônico na República. Desse modo, são palavras de Araújo
(2020, p.11):
Passados vinte anos da morte de João Guimarães Rosa, a literatura crítica relativa
à sua obra literária é considerável. Nada foi feito, entretanto, sobre outro aspecto
de sua atividade – a carreira de diplomata. A linguagem e a criação literária de
Guimarães Rosa estão amplamente estudadas, conquanto ainda não se tenha
esgotado o manancial que sua obra representa para a crítica. Longe disso. A reda-
ção e a atuação diplomática de Guimarães Rosa, entretanto, esperam sua vez.
Na Parte II Filologia e hermeutica, a embaixadora inicia o capítulo
falando sobre uma entrevista que Guimarães Rosa concedeu a Günter
Lorenz, em Gênova, em janeiro de 1965. Nela, o escritor falou de sua pos-
tura íntegra, ética (platônica) e renovadora que regia sua vida. Essa carac-
terização regia sua vida de médico e, também, de poeta. Para ele, a língua
era capaz de renovar o mundo. Sua obra, portanto, e sua vida eram aspec-
tos que se intercambiavam. Conclui-se que a vida de Guimarães Rosa é
a linguagem, que também está presente no seu fazer diplomático- ético.
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A autora, então, assevera “O escritor, portanto – de minutas diplomáticas
ou de literatura –, é aquilo que escreve” (ARAÚJO, 2020, p. 34).
Em se tratando da Parte III Eternidade e história, Heloísa Vilhena
de Arjo comenta sobre o distanciamento de Guimarães Rosa enquanto
diplomata do político. Para ela, a diplomacia contempla a essência políti-
ca. Sendo assim, Guimarães Rosa, em sua atuação em Hamburgo, des-
creve o domínio avassalador do político na Alemanha nazista. A tirania
da política, em suma, para ele, é injustiça. No consulado, em Hamburgo,
atuou em favor dos judeus. Sua atuação era diplomática, não política, pois
política era a abordagem do nazismo. O escritor separava diplomacia da
política, pautando-se pelo viés de que a política serve a interesses par-
ticulares, não comutativos. Esse entendimento pode ser conrmado no
excerto que se segue:
Ao perseguirmos a especicidade da atuação de João Guimarães Rosa como
diplomata, deparamos, de imediato, este desligamento, que ele expressivamente
opera, entre o diplomata e o político. Desligamento problemático, porquanto
a carreira de diplomata é, em essência, uma atividade política. Como e por que
Guimarães Rosa opera essa separação? Como consegue fazê-lo, tendo estado em
situações – cônsul em Hamburgo de 1938 a 1942 – em que a totalidade da vida,
em seus aspectos privados e públicos, estava dominada pelo político? O próprio
Guimarães Rosa descreve esse domínio avassalador do político na Alemanha
nazista, em seu conto “O mau humor de Wotan”. Nesse conto, ca claro o tota-
litarismo, a tirania da política na vida da Alemanha, penetrando os rincões mais
escondidos da vida da população. É a esse totalitarismo que ele se refere quando
diz a Lorenz, que lhe perguntara sobre sua atividade em Hamburgo em favor dos
judeus perseguidos pelo nazismo, “eu, o homem do sertão, não posso presenciar
injustiças”. A tirania do político é, para ele, injustiça. (ARAÚJO, 2020, p.36).
Na Parte IV Justiça e direito, a escritora trata-se do Guimarães Rosa
justo, para quem as vontades das partes devem prevalecer e conformam
o todo harmônico. Assim devem ser as relações de direito, ou seja, desti-
tuídas do uso da força ou da imposição uníssona da vontade sobre as de-
mais. Neste capítulo, ca exposto a forma por meio da qual o romancista
compreendia a atuação diplomática, isto é, essa deveria, sempre, primar
pela boa convivência internacional, pelas obrigações convencionais, pelo
respeito aos tratados. Nota nº 92, de 25 de março de 1966, da Embaixada
do Brasil em Assunção, parágrafo 104, ca clara essa postura de Guima-
rães Rosa, porque ele defende que, no que se refere aos acordos de limites
com o Paraguai o mútuo acordo entre as partes- Brasil e Paraguai- deve
ser endossado, precipuamente, pois a orientação básica na diplomacia deve
seguir “[...] em direção à harmonia e ao dlogo nas relações internacionais
não signica, entretanto, complacência e passividade, e não exclui, ao con-
trio, exige, atividade e rmeza nas negociações.” (ARAUJO, 2020, p.54).
No tocante à Parte V Formação e técnica, ocupa-se de um momento
da carreira de Guimarães Rosa, quando foi convidado a participar da con-
fecção das avaliações para o Concurso de Provas do Instituto Rio Branco,
em 1952. Naquela ocasião, o diplomata apresentou ao Diretor do Instituto
a ideia de que o exame, como tinha de ter a nalidade de avaliar os conhe-
cimentos de base na “formação da personalidade do candidato” (ARAÚ-
JO, 2020, p.56), o que revelaria a curiosidade intelectual e a vocação cul-
tural e consciência humanística do indivíduo. em suma, em Guimarães
Rosa, segundo a embaixadora Araújo (2020, p.57):
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[...] a realidade propriamente humana – histórica, que é, como vimos, [...] o cam-
po da atividade diplomática – é a realidade pensada, os fatos concretos articula-
dos pelo pensamento numa totalidade signicativa. O diplomata – o “sonhador”
– busca, nessas condições “criar” a realidade, fazer a história, por meio do pensar
os fatos. Por isso é que Guimarães Rosa se preocupa, na formação do diplomata,
com o desenvolvimento dessa capacidade de pensar, o que não é a mesma coisa
que o simples raciocínio técnico, limitado a um campo do conhecimento. Pensar,
para ele, inclui a imaginação, o que não é a mesma coisa que a simples fantasia,
fabulação relativamente independente dos fatos concretos. Pensar é a utilização
da imaginação na articulação desses fatos, da imaginação que leva em considera-
ção o concreto, que depende dele e que lhe dá sentido. É construir.
Sobre a Parte VI Construção e crítica, a embaixadora Heloísa Vilhe-
na Arjo referencia a postura restauradora, construtora, isenta de agres-
sividade de Guimarães Rosa. O diplomata mostra-se avesso a qualquer
tipo de ação cega e violenta. Essa natureza do romancista de Grande Ser-
o: Veredas ca nítida nas ideias expressas por Araújo (2020, p.59-60):
O fato de a postura básica de Guimarães Rosa, até aqui assinalada, ser aquela
do restaurador, do construtor, torna necessário fugir do perigo de idealizar sua
atuação, isentando-a de qualquer agressividade. Ao restaurar, Guimarães Rosa
destrói: uma coisa não pode ser feita sem a outra. Como foi possível vericar no
que se refere ao seu conceito de justiça, a restauração, para Guimarães Rosa, exi-
ge mesmo uma destruição: não uma destruição cega e violenta, mas uma refuta-
ção ponderada e raciocinada, expressa com rmeza: “Vossa Excelência, que tem
perfeita ciência da gravidade do assunto, conhece, não menos...” Na verdade, é
a ação cega e violenta que é refutada – destruída, desarmada – pelo exercício do
pensamento. O pensar desliga a ação do imediatismo, torna-a objetiva, desvincu-
la-a do emocionalismo subjetivo e do fanatismo. Com isso, não se quer dizer que
a desligue do sentimento, mas sim do instinto cego, por um lado, e da ideali-
zação, por outro. A ação de Guimarães Rosa é uma constante desconstrução
tanto do intempestivo e do violento, quanto da tentação de hipostasiar ideias, da
abstração. Assim, não tenta forçar a realidade num leito de Procusto, em nome
de um ideal abstrato de perfeição, inatingível, mas faz espaço para a admissão de
imperfeições e falhas, que procura remediar com justiça.
Na Parte VII O diplomata e o homem, visualiza-se o Guimarães Rosa
simples e genuíno em suas relações humanas e em seu ser. Heloísa Vi-
lhena Arjo, ao enfatizar esse lado do escritor, buscou uma ilustração
interessante do momento em que ele tomou posse como chefe da Divisão
de Fronteiras, em 1956. Naquela época, a sua declaração de bens e valo-
res resumia-se a Cr$ 900.000,00. A diplomata brasileira emprega parte de
uma entrevista de Guimarães Rosa a Günter Lorenz, por meio da qual o
mineiro de Cordisburgo enuncia:
[...] não me envergonho em admitir que Grande sertão me rendeu um montão
de dinheiro. Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não
adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comér-
cio de troca. Naturalmente, não co infeliz, quando tenho dinheiro suciente
para viver como quero. Mas não nego esse fato. A esse respeito, quero dizer
uma coisa: enquanto eu escrevia Grande sertão, minha mulher sofreu muito
porque nessa época eu estava casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela, para
lhe agradecer sua compreensão e paciência. Você sabe que tenho uma mulher
maravilhosa. Como sou um fanático da sinceridade linguística, isto signicou
para mim que lhe dei o livro de presente, e portanto todo o dinheiro ganho com
esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele
[...]. (COUTINHO apud ARAÚJO, 2020, p. 66).
A Parte VIII Conclusão: nacional e internacional encerra a obra em
questão. Nessa seção, apresenta-se, em tom de fechamento, que a diplo-
macia, assim como as letras, foi um dos aspectos da existência e Guima-
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rães Rosa. Sua personalidade justa e platônica performou seu fazer diplo-
mático, da mesma forma que o fazer literário. A diplomacia, enm, “[...]
segundo suas próprias palavras, contribuiu para torná-lo, sem sombra de
dúvida, um cosmopolita”, conforme consta do entendimento da embai-
xadora Heloísa Vilhena de Araújo (2020, p.70). Sua passagem pelo mundo
inspirou sua brasilidade (em constante construção, algo em aberto) e sua
brasilidade inspirou sua atuação internacional, para além de sua essência
regional – um mineiro do sertão.
Para requintar esse argumento, Araújo (2020,p.71) enuncia que:
A “brasilidade” de Guimarães Rosa, como se verica pelas citações acima, é, ao
mesmo tempo, rigorosamente determinada, especíca – o sertanejo de Minas
Gerais –, e não paroquial, escapando ao provincialismo, pois Goethe também foi
um sertanejo. Com efeito, a “brasilidade” de Guimarães Rosa é feita predomi-
nantemente de Europa – e é encontrada, não no aspecto puramente regionalista,
no sentido estreito, de sua vida e obra, mas sim numa maneira de comportar-se
no mundo, num estado de espírito, em que a mente e o coração estão intima-
mente unidos, integrados, harmonizados.
Em face da leitura e alise do livro Guimarães Rosa: diplomata, per-
cebe-se a signicância em se lançar em uma terceira edição o escrito que
é de interesse não apenas de intelectuais em seus estudos de aprofunda-
mento dos temas literatura, diplomacia, Guimarães Rosa; mas acima de
tudo de indivíduos que almejem entrever os demiurgos (o literato de Cor-
disburgo certamente faz parte desse panteão) de uma intelligentsia que
conformaram a imagem do Brasil. Nesse sentido, nota-se que a obra dis-
cute vários aspectos que circunscreveram a vida e a produção de Guima-
rães Rosa, de forma mais adensada e voltada para eixos pouco discutidos,
por exemplo, a ação e postura diplomática do romancista.
Por m, no livro, é perceptível que o lado justo e nobre do escritor,
algo angariado pela construção do eu, ao longo de sua vida, impregnou,
positivamente, seu fazer literário e diplomático- o que conferiu a ele um
modo especial de condução dos assuntos internacionais, quando perten-
cente ao quadro do MRE. Guimarães Rosa foi um diplomata no ápice da
palavra, pois exerceu com cautela, serenidade, inteligência, cosmopolitis-
mo, justiça, prossionalismo a salvaguarda dos interesses nacionais no
estrangeiro. A obra é um convite ao leitor interessado a mergulhar no
universo, por detrás das entrelinhas, que respaldou as veredas da vida do
idealizador de Grande Sertão.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ARAÚJO, Heloísa Vilhena de. Guimarães Rosa: diplomata. 3. ed. rev. - Brasília: FUNAG, 2020.
268 p. - (Coleção História Diplomática) ISBN 978-85-7631-837-8